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O Último Reino – Crônicas Saxônicas # 1 | Bernard Cornwell

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À esquerda está a capa do livro
#Acessibilidade Fotomontagem para divulgação. À esquerda está a capa do livro "O Último Reino" de Bernard Cornwell. Na capa tem um guerreiro olhando para a direita, seu rosto em perfil , no horizonte o mar e outros guerreiros segurando escudo. No centro da capa está escrito em letras maiúsculas e em preto "O Último Reino - Bernard Cornwell". À direita tem uma imagem montada com fundo sépia onde está escrito em preto "Inicie seus matadores ainda novos, antes que a consciência deles cresça. Inicie-os novos e ele serão letais."

Uma dívida precisa ser paga

A primeira coisa que é preciso entender sobre a saga As Crônicas Saxônicas é que ela é sobre uma rixa de sangue.

Sim, existe a história da unificação dos reinos que viriam se tornar a Inglaterra, existe a ascensão da Igreja Católica, o reinado de Alfredo e seu filho Eduardo, existe toda uma ambientação realizada por um grande historiador para você refletir sobre como era o modo de vida no séc. X. Existe tudo isso, claro, mas no centro de tudo tem um saxão chamado Uhtred: um garoto que sonha se tornar um guerreiro para retomar sua terra que lhe foi roubada e em matar a pessoa que hoje está sentada no salão que é seu por direito.

O Último Reino é o primeiro livro da saga escrita por Bernard Cornwell e se encaminha para o 11º, sem previsão de terminar. Entretanto, diferente de outras sagas (beijos para George R R Martin), cada livro conta um arco fechado e o autor publica com uma certa regularidade (o 1º livro é de 2004 e o 11º está prometido para 2019), então não há motivos para preocupação.

O cenário onde se passa a história é a Inglaterra antes de se tornar Inglaterra que conhecemos, quando existiam diversos reinos não unificados que tentavam prosperar naquele ambiente isolado. Ou não tão isolados assim, já que sofriam diversas incursões dos dinamarqueses e noruegueses que vinham saquear suas terras. Numa dessas invasões, o senhor das terras de Bebbanburg vai ao combate com seus homens contra os dinamarqueses, perde e seu filho Uhtred (ainda criança) é capturado pelos invasores. A partir daí ele começa a viver com seus captores, comendo com eles, lutando com eles, fazendo guerra com eles: enfim, tornando-se um deles. Com tanto sangue derramado, seja por terra, deuses ou ouro, um simples homem no meio de tudo isso pode ouvir seu sangue falar mais alto…

A parede de escudos forma o guerreiro

Um dos grandes talentos de Bernard Cornwell é a descrição dos combates. Seja uma pequena escaramuça entre bandoleiros numa ponte ou 2 exércitos se enfrentando num descampado, ele faz o leitor se sentir dentro da batalha. É quase possível experimentar o furor da batalha, enjoar com o cheiro de tripas e vômitos, sentir no rosto o sangue que jorra do inimigo abatido! A narrativa é crua, visceral, cheia de detalhes sujos e xingamentos que fariam um sargento corar de vergonha… E o auge da batalha, o motivo pelo qual o Crônicas é lembrado são as paredes de escudo. A famosa formação militar é colocada aqui como prova máxima do guerreiro e onde são decididos os destinos dos homens e dos reinos. Existe apenas um punhado de escritores que conseguem descrever tão bem uma batalha quanto o Cornwell.

Mas não só de paredes de escudos é formado esse livro. Pertencendo ao gênero “romance histórico”, é possível ter alguns vislumbres de como eram as relações de vassalagem daquela época e como foi a semente do que iria se tornar a Inglaterra algumas dezenas de anos no futuro. Claro que há uma certa liberdade narrativa para se contar a história, mas mais preocupado do que passar datas e nomes, Bernard transmite uma ideia de como eram as relações naquela época entre as pessoas que tinham o poder, as que serviam e aqueles que não pertenciam àquela sociedade (os invasores). No final do livro há um anexo do autor confirmando os fatos que realmente aconteceram e aqueles que foram incluídos/alterados para dar sentido à narrativa.

Em meio a História (com H maiúsculo) existe o pequeno Uhtred que tenta ser senhor da sua própria história, enquanto as moiras olham para ele e riem de seus pequenos planos. Alheio a tudo isso, ele prossegue o caminho de volta para Bebbanburg.

Afinal, uma rixa de sangue precisa ser paga.

Leitura que diverte e ensina

O Último Reino foi o meu primeiro livro do Cornwell (atualmente li mais de 10) e fiquei imediatamente cativado. Uma das minhas maiores surpresas foi como os personagens são bem construídos, sendo preciso apenas um parágrafo de descrição para saber quem eles são. Mesmo coadjuvantes como o Padre Beocca ou o dinamarquês Ragnar tem personalidades tão distintas que é fácil identificá-los, ajudando muito na leitura. Apesar do maior carisma pertencer ao Uhtred, todos os leitores com quem já conversei lembram de pelo menos mais 2 ou 3 personagens que os marcaram.

Como bom RPGista que sou, claro que as batalhas foram um atrativo a mais. Poucas vezes me senti tanto dentro de uma cena de luta durante a leitura de um livro! E não é uma cena “bonita”: o combate descrito aqui é sujo, fedorento e insano, nada parecido com os combates que normalmente vemos em livros de fantasia onde o oponente é abatido com uma flecha certeira ou um corte limpo da espada do herói. Sendo um grande fã dos livros do Leonel Caldela, logo fiz a comparação entre eles e os livros do Bernard Cornwell. Sem surpresa nenhuma descobri depois numa entrevista qual era uma das grandes inspirações do Leonel…

Outra coisa que chamou muito minha atenção foi a parte histórica. Eu aprendi muito mais sobre a formação da Inglaterra e a ascensão da Igreja na leitura deste livro (e dos próximos da saga) do que nas minhas aulas de História. Mais do que isso: eu ENTENDI o porquê e como esses reinos se uniram. E eu nem percebi que estava recebendo uma aula!

Por isso eu recomendo esse livro e o restante da saga. Você também pode ouvir os podcasts que fiz sobre os 10 livros da saga, o especial Covil de Livros 100 – As Crônicas Saxônicas – Parte 1 e Covil de Livros 101 – – As Crônicas Saxônicas – Parte 2.

Nota

Garanta o seu exemplar e boa leitura!

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Não esqueça de adicionar o livro no Skoob

Nome:
 O Último Reino (Crônicas Saxônicas #1)
Autor: Bernard Cornwell
Tradução: Alves Calado
Edição: 1ª
Editora: Grupo Editorial Record
Ano: 2006
Páginas: 364
ISBN:9788501073525
Sinopse: O Último Reino é o primeiro romance de uma série que contará a história de Alfredo, o Grande, e seus descendentes. Aqui, Cornwell reconstrói a saga do monarca que livrou o território britânico da fúria dos vikings. Pelos olhos do órfão Uthred, que aos 9 anos se tornou escravo dos guerreiros no norte, surge uma história de lealdades divididas, amor relutante e heroísmo desesperado. Nascido na aristocracia da Nortúmbria no século IX, Uthred é capturado e adotado por um dinamarquês. Nas gélidas planícies do norte, ele aprende o modo de vida viking. No entanto, seu destino está indissoluvelmente ligado a Alfred, rei de Wessex, e às lutas entre ingleses e dinamarqueses e entre cristãos e pagãos.

Covil de Livros 102 – Antologia Mitografias Vol. I – Mitos Modernos

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Fotomontagem para divulgação. À esquerda está a capa do livro
Fotomontagem para divulgação. À esquerda está a capa do livro "Antologia Mitografias Vol. 1 - Mitos Modernos". Na capa tem uma árvore cujas raízes possuem espaços preenchidos por alguns símbolos que representam mitos modernos como um computador. À direta está a logo do podcast Covil de Livros e embaixo o número do episódio 102.

Bem vindos amigos, a mais um Covil de Livros! Nesse episódio mitológico, Sr. Basso recebe Soraya Coelho do Cortesia da Casa, Hamilton Kabuna do podcast Quadrinhos e Narrativas e Paulo Vinicius do Ficções Humanas para falar sobre uma antologia nacional que foi uma grande surpresa: Antologia Mitografias Vol. 1 – Mitos Modernos. A coletânea foi feita pelos nossos amigos do site e projeto Mitografias e já em sua primeira edição nos surpreendeu com a variedade de contos e sua qualidade. Ela também venceu o Prêmio Le Blanc na categoria de Melhor Antologia Nacional no ano de 2017 e em breve será lançada em versão física através da Editora Penumbra. Prepare-se para se surpreender com esses escritos que estão refazendo a cara da literatura nacional e #LeiaNovosBR. Bom episódio!

Atenção!

Para ouvir basta apertar o botão PLAY abaixo ou clique em DOWNLOAD (clique com o botão direito do mouse no link e escolha a opção Salvar Destino Como para salvar o episódio no seu pc). Obrigada por ouvir ao Covil de Livros!

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Porque sou anarquista – Rudolf Rocker

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Tendo sido inicialmente influenciado pelas ideias anarquistas do alemão Johann Most e pelas reuniões com os anarquistas judeus de Paris, o órfão aprendiz de encadernador Rudolf Rocker acabou vindo a se tornar um dos pensadores mais proeminentes do anarquismo. Mais tarde acabou conhecendo outro grande nome do movimento, o geógrafo anarquista Élisée Reclus, que dentre muitos feitos é conhecido por ter sido o primeiro a cunhar o termo e iniciado a área de estudos denominada Ecologia Social, ainda em meados do século XIX – que mais tarde, nos anos 60, seria reapropriada por outro importante teórico anarquista chamado Murray Bookchin.

Apesar de durante em vida ter se aproximado dos pontos de contato entre o movimento anarquista e o movimento sindicalista que foram formulados e apresentados primeiramente na Confederação Geral do Trabalho (CGT) em 1895, e ter ajudado a fundar o que mais tarde veio a ser conhecido como anarcossindicalismo, Rocker sempre se declarou um anarquista sem adjetivos, termo que expressa a ideia de que as diversas escolas que compõem a filosofia e o movimento anarquista podem e devem conviver simultânea e pacificamente, uma vez que independente dos métodos empregados por essas escolas no que se refere aos fatores econômicos (que deste ponto de vista torna-se um valor secundário), o objetivo principal de todas elas ainda é garantir a liberdade pessoal e social dos indivíduos, independente sobre que bases econômicas ela se dê.

“Sou anarquista não porque acredite que num futuro milênio as condições sociais serão absolutamente perfeitas e não necessitarão de mais nenhum melhoramento. Isto não é possível até porque o homem não é perfeito e não pode criar nada absolutamente perfeito. Mas acredito, em troca, num processo constante de aperfeiçoamento que nunca finda e que só pode prosperar da melhor maneira sob as condições sociais de vida mais livres possíveis. A luta contra toda a tutela e todo o dogma, mesmo que se trate duma tutela institucional ou de ideias, é para mim o conteúdo essencial do socialismo libertário” (p. 3).

Por começar seu livro com essa frase e, também por conta do próprio título do livro, alguns de nós podemos ser persuadidos a pensar que Rocker vai nesta obra discorrer sobre os determinantes históricos em sua vida que o levaram a aderir ao movimento anarquista. Entretanto, o autor vai um pouco mais além e discute assuntos de natureza histórica e de base conceitual mais geral e que com certeza fogem à sua própria experiência pessoal, mas que com certeza foram determinantes para que este tomasse partido do movimento anarquista e não de outro movimento socialista.

Como se sabe historicamente, apesar de ambos serem considerados movimentos e teorias políticas de “esquerda”, o marxismo de Marx e Engels nunca conviveu completamente pacificamente com o anarquismo, porque apesar destes compartilharem o mesmo objetivo final que é a realização do socialismo, isto é, a criação de uma sociedade livre e igualitária, livre de classes sociais ou Estado, eles discordam significativamente quanto aos métodos que devem ser empregados para garantir essa conquista. É partindo deste gancho, que Rocker inicia a discussão falando da relação entre Marx e as ideias anarquistas.

Segundo o autor, ainda que mais tarde, o Velho Marx tenha feito de tudo para rechaçar e ridicularizar as ideias e os teóricos anarquistas, o Jovem Marx, ainda tateando dentro dos princípios socialistas, teria flertado (e muito) com ideias anarquistas e defendido as principais pautas destes como um anarquista legítimo. Segundo Rocker, ainda que no futuro Marx tenha questionado a competência tanto filosófica quanto econômica de Pierre-Joseph Proudhon (que por curiosidade, foi o primeiro pensador a se auto-intitular anarquista), tendo ainda acusado este de ser um “socialista utópico” (conceito que faz oposição ao chamado “socialismo científico”, que Rocker também adverte ser apenas mais outra distinção falsa, febril e ilusória de Marx), no início de sua jornada como um socialista, Marx teria enaltecido a obra O que é propriedade? de Proudhon, tendo em muitas ocasiões atacado o Estado e se defendido de contra-argumentos, utilizando-se das mesmas ideias que Proudhon expõe nesta obra.

Ainda nesta seção, Rocker apresenta evidências que foram primeiramente sistematizadas por V. Tcherkesoff de que o Manifesto do Partido Comunista não seria nada além do que um plágio mal feito da obra do socialista francês Victor Consideránt chamada Manifesto da Democracia, e que o que Marx e Engels convencionaram chamar de “socialismo científico” não são mais do que traduções livres e reapropriação de ideias encontradas em obras de socialistas franceses e ingleses, além de obras anarquistas da época, velhos escritos que podem ser encontrados nas obras de Consideránt, Demasy, May, Proudhon, etc., ou seja, que o conteúdo do “socialismo científico” foi retirado das ideias de autores que posteriormente Marx e Engels tentariam menosprezar chamando-os de “socialistas utópicos”.

No que se segue Rocker vai além dessa querela, e entra na polêmica Marx vs Bakunin, tentando convencer o leitor que diferente do que se propagava na época (e infelizmente ainda hoje em algumas leituras socialistas), a crise que se instaurou na Associação Internacional dos Trabalhadores, ou a Primeira Internacional, não se deve exclusivamente à polarização das ideias destas duas personalidades, mas é ela mesma um produto de mudanças históricas e sociais que já vinham se consolidando há  muito tempo.

“Tem se querido reduzir estas lutas interiores a querelas puramente pessoais e, principalmente à “rivalidade” entre Mikail Bakunin e Karl Marx e o Conselho Geral de Londres. Nada mais falso e infundado que esta ideia, que resulta duma ignorância completa dos fatos. Considerações de ordem pessoal desempenham, certamente, algum papel nestas lutas como quase sempre acontece em casos semelhantes.

Foram sobretudo Marx e Engels que, nos seus ataques a Bakunin, fizeram tudo quanto era humanamente possível; fato que o próprio biógrafo de Marx, Franz Mehring, não pôde ocultar. Mas seria um erro ver, nestas aborrecidas querelas, a verdadeira causa da oposição entre estes homens. Tratava-se, na realidade, de duas concepções diferentes do socialismo e, principalmente dos caminhos que a ele conduzem. Marx e Bakunin foram apenas os mais elementos mais destacados nesta luta pelos princípios fundamentais; mas o conflito ter-se-ia igualmente produzido sem eles. Porque não se tratava duma oposição entre personalidades, mas duma oposição entre correntes de pensamento que tinham e mantêm, até ao presente, toda a sua importância” (p. 23).

O próximo passo de Rocker é criticar e explicar o que significa na prática conceito marxista de ditadura do proletariado aos moldes do anarquismo e, explicar o porquê este conceito não se iguala ao de conselhos operários, ou apenas sovietes, argumentando que a “ideia de ditadura é de origem puramente burguesa e nada tem em comum com o socialismo” (p. 21).

“Não é um produto do movimento operário, mas uma lamentável herança da burguesia, oferecida em dote ao proletariado para fazê-lo feliz. Está intimamente ligada às aspirações do poder político que é igualmente de origem burguesa” (p. 26).

Por fim, o autor termina seu livro discutindo a função dos sindicatos na construção do socialismo e seu papel a ser desempenhado numa sociedade livre, articulando os principais pressupostos do anarquismo e do sindicalismo, ajudando naquele momento histórico, a construir o que se consolidou como anarcossindicalismo, argumentando ainda que sob uma ditadura ou governo qualquer, utilizando-se de ideias do teórico Piotr Kropotkin, os conselhos operários perdem naturalmente seu significado, sendo rebaixados ao mesmo papel inerte que tinham os representantes do Estado nos tempos da monarquista absolutista.

Nota

 

 

 

 

Nome: Porque sou anarquista
Autor: Rudolf Rocker
Tradução: Não informado
Edição: Não informada
Editora: CNT de Compostela
Ano: 2009
Páginas: 40
ISBN:Publicação Independente
Sinopse: Não informada.

Covil de Livros 101 – As Crônicas Saxônicas – Parte 2

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Bem vindos, amigos a mais um Covil de Livros! Continuando nossa saga pela histórica solidificação da Inglaterra, acompanhamos Uhtred em suas aventuras e amadurecimento nessa saga que conquistou milhões de leitores em todo o mundo! Para chegarmos ao final dessa parte da história sendo recontada, convidamos nosso ouvinte que nunca lê o livro, mas sempre ouve o cast Gustavo Bacelar, nossa ouvinte novata Claudia Rodrigues, a intrépida Camila Vieira e o nosso velho chato favorito Ezequias Campos para a grande batalha!

Com espadas em mãos, é hora de conversar sobre “A Morte dos Reis“, passar pel'”O Guerreiro Pagão“, chegar até o tal “O Trono Vazio“, avançar com os “Guerreiros da Tempestade” e olhar com esperança para além d'”O Portador do Fogo” à espera do lançamento dos próximos livros de Bernard Cornwell, já que o destino se prova, sempre, inexorável.

Uma boa batalha e um bom episódio a todos e todas!

 

 

 

Meia-noite na fronteira

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Madrugada era quando o ônibus parou na fronteira com a Bulgária, barulhos do veículo me fazendo acordar de um sono sem sonhos. Bocejei impaciente, xingando qualquer coisa baixinho, afinal eu mal tinha fechado os olhos. Logo vi o motivo das luzes acessas: hora do controle de passaporte, mais um dentre tantos que já passei, o mundo ainda dividido e obcecado por fronteiras. Um homem parrudo adentrou o ônibus, percorrendo o estreito corredor ao checar documento por documento, dedicando milésimos de segundo a cada passaporte. Olhou-me sem interesse, até que avistou alguma irregularidade no documento que eu carregava, sua expressão cansada dando lugar a uma excitação inesperada.

Folheando as páginas gastas do meu passaporte, o homem agitava-se. Num sobressalto perguntei o que estava acontecendo, também nervosa com o remexer de páginas, mas sem entender minhas palavras ele gesticulava, discutia comigo numa língua desconhecida como se eu tivesse a obrigação de entender seu idioma. Impaciente, num gesto bruto me mandou segui-lo. Os outros passageiros não mais demonstravam sinais de cansaço, todos querendo testemunhar o drama da turista branquela, talvez alguns até se regozijando na minha agonia. Segui os passos rápidos do policial da fronteira até o cubículo onde os oficiais se reuniam. Me perguntaram quem eu era, o que me levava até a Bulgária, porque não tinha um transit visa.

Nunca soube que precisava de um visto só para atravessar um país, coisa mais ridícula, pensei, afinal provavelmente saltaria do ônibus apenas para ir ao banheiro e olhe lá, e para isso precisava de visto? O mundo ainda se obcecava por meras linhas fronteiriças, burocracias atrasadas! Não acreditava que tal visto existisse mesmo, seria invenção para que uma graninha por baixo do pano chegasse às mãos ansiosas dos rapazes de uniforme? Em ambos os casos estaria perdida, não possuía nem o tal do visto nem dinheiro para molhar as mãos dos policiais, prática que com certeza o Brasil exportara para a Europa Oriental através das novelas dubladas nos tempos comunistas. Nó no estômago espalhava-se, preocupação incutida a cada palavra trocada entre os oficiais, completa incerteza do que aconteceria comigo. Me impediriam de seguir viagem? Num gesto vi meu destino tomar um rumo inesperado: aos gritos me mandavam tomar meus pertences para o ônibus seguir viagem. Eu ficaria para trás.

Mistério era como iria voltar para Istambul. Na calada da noite, sem dinheiro, sem nada. Os homens deram de ombros, seu dever cumprido. Peguei minha mochila, meus antigos companheiros de viagem espantados com a inesperada eficiência búlgara, meus olhos marejados com a interrogação do que aconteceria. Saí do ônibus naquele breu de fronteira onde nada se vê. Fiquei à espera de respostas. Meu corpo pulsava de medo, de agitação. Adrenalina.

Inevitável não cogitar que poderia ter evitado tal situação, era só permanecer na neblina prematura do outono de Munique. Tinha caído na balela de uma agência de viagem que cancelou minha passagem de avião de última hora. Não fosse Zeki, meu amigo orgulhosamente curdo, quer dizer, um pouco mais que um amigo, eu não teria conseguido nem a passagem de ida. Recebi um pequeno reembolso depois de muito insistir, mas não era suficiente nem para comprar a passagem de ônibus, quanto mais uma passagem de avião. Me passaram a perna, os turcos, não se incomodando em embolsar uma boa parte do meu salário miserável de estagiária.

Fui, mesmo assim para Istambul com a ingenuidade jovem de que tudo se ajeita, e lá usaria o meu jeitinho aprimorado depois de alguns meses morando na capital bávara. Ao chegar na velha Constantinopla, logo vi que o único jeito seria retornar a Munique de ônibus, me consolando com a possibilidade de ver as paisagens da Bulgária, Sérvia, Hungria e Áustria. Mesmo assim, alguma coisa tinha que dar errado, afinal, a viagem já tinha começado com o pé esquerdo… Eu tinha enfiado na cabeça que queria ir para Istambul antes de voltar para o Brasil, me perguntando se toda aquela paixão pelo curdo tinha alguma coisa a ver com a obsessão por países exóticos, o caos da antiguidade me chamando num sussurro. Tinha que ir para a Istambul; jamais me perdoaria se não fosse. Mochila feita, parti.

Meu coração pulsava, um tique-taque angustiado jamais sentido, as poucas lágrimas já secas no rosto. Procurava acalmar minhas mãos trêmulas com o sentimento de paz absoluta que vivi na Capadócia. Da hospedagem num cave hotel chamado Flinstones até as cavernas que esconderam os primeiros cristãos e santuários inteiros esculpidos em pedra, sentia-se uma vibração especial nessa comunhão de natureza bruta e humanidade, fé crua, sem o manto da religião. Na Mesquita Azul senti a mesma coisa, uma pulsação primitiva no peito. Era só fechar os olhos e lá estava eu novamente, tocando as pedras esculpidas pelo vento e pelo tempo, me apegando a esse momento com todas as forças, unindo Alá e Iemanjá num sincretismo de pedidos a Deus para me safar.

Lembranças me distraíam. Hagia Sophia, sua imensidão em mosaicos. As pitas cozidas em pedras quentes. Relíquias de Maomé no palácio do sultão, até dentes do profeta eu vi, essa loucura de preservar pedaços de santos e profetas é realmente um denominador comum entre religiões. Memórias persistiam na escuridão maciça; impossível enxergar meus dedos, meus pés. Me concentrei nas imagens vivas e reconfortantes, até que uma luz se fez no horizonte: um ônibus vinha justamente na direção que eu precisava.

O ônibus estacionou, os guardas recomeçando a mesma rotina de checar os passaportes, enquanto eu esperava pacientemente, coração em disparada. Um dos guardas fez a gentileza de conversar com o motorista, situação explicada, desculpas feitas, mas o homem dizia não com a cabeça num gesto abundantemente universal, suas mãos indicando que cada poltrona já tinha um dono. O policial insistiu, o motorista gesticulava com vigor renovado, vozes na discussão se elevavam, tensão. Fragilidade me invadia, mas os minutos passavam sem misericórdia, sem resolução. Era como se estivesse presa num limbo, nem na Turquia, nem na Bulgária, esperando um deus misericordioso me ceder a graça de livre passagem para o paraíso.

Se existe algum deus andarilhando os céus, me mandou ele um anjo na forma de uma moça que usava um hijab e continuamente ajeitava o lenço na cabeça enquanto jogava a lábia no motorista, cujo volume da voz foi aos poucos abaixando, os gestos escalafobéticos diminuindo, até ele me olhar de cima a baixo, aquela reles inconveniência pedindo favor. O homem finalmente cedeu.

Olhei a moça, seus olhos cândidos repletos de curiosidade, e nela me vi por um instante. O mesmo nariz levemente adunco, os olhos amendoados. O mesmo jeito de segurar as mãos, apertando-as. A mesma idade que eu devia ter, mas uma espécie de maturidade cobria sua pele, já mãe e prisioneira de tradições que eu, mesmo sem admitir, desprezava. Ela me ofereceu o assento da menina, mas recusei com um sorriso, tomada de susto com as semelhanças e diferenças. Incerteza incomum de conversar com uma pessoa tão diferente de mim, apesar de sempre ter gostado de conversar com desconhecidos, apareceu.

Me consolei com o sacolejo do ônibus, a lembrança do passeio num barquinho fuleiro que me levou para um tour pelo estreito de Bósforo na convergência entre ocidente e oriente. Algumas horas passaram-se assim, eu tentando formular o cheiro de maresia que tanto gostava no meio de uma estrada sem ligação com o mar, mas que a cada minuto ficava mais próximo. A turca fechou os olhos, cansada da viagem.

Ao pique da manhã a moça puxou conversa comigo, levemente bisbilhoteira, um brilho nos olhos que necessitava imaginar-se na pele de alguém desconhecido. Parecia mais jovem na luz do amanhecer, um sorriso que convidava a confidências, duas mulheres idênticas, dois destinos distintos. Dilek, apresentou-se, como você veio parar na fronteira, de onde você vem? Ânsia me invadiu, afinal o que eu poderia ter em comum com ela? Até que meu olhar não mais desviava do seu fulgor, e como um raio, transportou algum entendimento invisível que nos uniu além das diferenças. Trabalho em Munique, disse, e estou viajando por aí, procurei não dar detalhes. Me conta mais, pediu ela, insaciável. Há algumas semanas estive em Amsterdam, eu falei, e lá eu vi os canais da cidade, a arquitetura mais bonita que já vi. Com os olhos novamente jovens, confessou ela, sonho em ver Paris um dia, você já foi? Engoli em seco, minha boca não hesitou em responder, sim, a torre Eiffel à noite é maravilhosa, e a culinária, os vinhos… até notar que certamente ela não beberia uma gota sequer de álcool, algo que tira metade da graça em desbravar as ladeiras de Montmartre.

Fiquei receosa de revelar que fumei maconha na Holanda ou que dormi num albergue com mais de cem camas em Paris num grande dormitório para homens e mulheres, mas parte de mim queria chocá-la um pouco, instilar o desejo de quebrar regras. Sentia-se ela viva naquela prisão oculta onde vivia, incapaz de mostrar um fio de cabelo sequer? Me perguntei se fé deveria ser assim, uma gaiola dourada que nos impede de viver, de aproveitar as coisas boas da vida. Não seria fé algo mais íntimo, que nada tinha a ver com coisas exteriores à alma? O que importava se você comia porco, bebia álcool ou se transava antes do casamento? Nunca entendi essa forma de fé que nos priva de coisas que não fazem mal a outrem; é como se religião fosse uma velha coroca que fica contando cada asneira que cometemos. Seria Deus assim tão mesquinho? Em meio às minhas divagações revelei que fui perseguida pela polícia em Praga porque não paguei o tíquete do bonde, morrendo de vontade de esticar os limites da compreensão dela, mas ela apenas gargalhou uma risada deliciosa e sem fronteiras.

Olhando através da janela, Dilek cochichou que ela também gostaria de viajar, colocar uma mochila nas costas, sentir-se livre; sua voz medrosa de que alguém entendesse a inconsistência de seus desejos. Suas palavras falharam, até seu olhar amoroso mirar a filha pequena, amor transbordando dela como um rio após a tempestade. Apertando as mãos já calejadas, a turca olhou para a paisagem monótona da estrada, inconscientemente acariciando a pele jovem da menina, sabendo que jogar tudo para o alto seria impossível, inadmissível e… algo que ela não desejava, afinal. Tradição não me prende, como se precisasse se explicar, tradição é meu porto seguro, seus olhos afirmaram além das palavras, mas também entendi que certa liberdade lhe faltava, que talvez ela tenha fantasiado como seria tomar o meu lugar por um momento apenas. Um silêncio incômodo entre nós se fez presente, até Fatma acordar de seu sono profundo de criança e devolver alegria à nossa conversa. Então Dilek anunciou chegamos em Istambul e meu coração se sentiu um tanto vazio com a expectativa da despedida.

Na rodoviária, mal consegui esboçar um sağol em agradecimento; o marido de Dilek à espera emanava uma nuvem espessa de suspeita em minha direção. Sem dar importância aos desejos masculinos, calmamente ela tomou minhas mãos e nelas depositou um pedaço de papel surrado, piscou o olho num segredo compartilhado e sussurrou belki bir gün sağ, a esperança de que algum dia nossos destinos se cruzassem novamente nesse grande mundo. No papel deixado em minha mão a frase nenhuma estrada é longa com boa companhia. Provérbio turco. Meu coração deu um pulo numa aquarela de sentimentos, as contradições não me passavam despercebidas, mas me deixei seduzir por tradições de outros tempos, pela antiguidade da cidade que num sussurro me chamava. Por uma moça que poderia ser eu, sua alegria e tristeza misturadas em contraste com a imprevisibilidade da minha vida.

A caminho do aeroporto alguma coisa dentro de mim apelava para um lado irracional. Paguei uma fortuna para retornar a Munique porque deveria voltar, porém meus pensamentos tinham saído de uma jaula, com selvageria destruíam os planos eficientes que estavam à minha espera. Queria eu voltar? Algo na Turquia me fazia sentir viva naquele caos de séculos de um país dividido entre oriente e ocidente, da fascinação de palácios e monumentos exóticos, de frutas doces como mel, da comida simples e gostosa, do barulho de vida, do burburinho intenso, do cheiro de mar, das energias que te conectam com algo mais primitivo, mais humano. Era um mundo tão diferente da Alemanha, daquela perfeição irritante, do céu cinza, da obsessão com silêncio. Ordem, eficiência, regras; coisas que talvez me agradassem na maturidade, mas que me irritavam na juventude impaciente.

O avião começou o procedimento de embarque, as pessoas se movimentando, eu ainda quieta no meu canto, a fila cada vez menor. Deixei todos passarem na minha frente, pensando que, se pudesse ficaria mais algum tempo na Europa, colocaria uma mochila nas costas e viajaria por aí… faria um tour em homenagem a Dilek.

Um redemoinho tomou posse de mim, uma sensação de que ainda não estava pronta para desistir da vida de nômade, de sentir a pulsação da história a cada ruína, castelo ou templo em meu caminho, por um momento não querendo me contentar com coisas que contentariam muita gente. Emprego decente, namorado amoroso que em breve poderia tornar-se noivo, uma casa legal. Filhos. Carreira. Dinheiro. Queria tudo isso, mas precisava ser agora? À espera do avião, senti pela primeira vez as lágrimas que não vieram durante a crise da fronteira, de repente meu corpo dando vazão a uma enxurrada de sentimentos cheios de conflitos, dever e vontade opostos brigando por uma só escolha. Sentia as raízes que me prendiam subitamente relaxando, ficando mais elásticas. Ainda não tinha um porto seguro, diferentemente de Dilek; ainda estava à procura. Tudo em mim palpitava, meu coração quase saindo pela boca, a decisão que talvez ninguém entenderia tomando forma.

O embarque havia sido finalizado, com a exceção de uma passageira. A funcionária chamava meu nome pelo microfone, seus olhos frenéticos procuravam por mim. Meus pés não se moviam, como se estivessem soterrados por cimento. Meu cartão de embarque era o lembrete da vida sensata que ansiosamente esperava por mim, mas as únicas imagens que se desdobravam como fotos em minha frente eram as pedras da Capadócia, os minaretes da Mesquita Azul, a água parada da cisterna antiga com suas longas colunas, a magia dos bazares, os sabores e cores de Istambul, a história que me convidava a me libertar.

Lembrei-me de Dilek e seu conflito de seguir as tradições e libertar-se delas. Seria eu capaz de arrancar minhas próprias correntes? Meus pés então se moveram, mas tomaram a direção contrária da que deveriam. Corri para retornar à velha Constantinopla, enquanto a funcionária da companhia aérea continuava a chamar meu nome.

Este conto é parte da coletânea Ventos Nômades.


Manuela Marques Tchoe é uma escritora baiana que atualmente reside em Munique, Alemanha. Seu primeiro livro, Ventos Nômades, é uma coleção de contos que exploram o desejo de viajar e do exótico, os desafios e maravilhas de relacionamentos multi culturais e imigração, do qual “Meia-noite na Fronteira” faz parte. Manuela também escreve para o seu blog pessoal Baiana da Baviera e está presente no Facebook, Instagram e Twitter com reflexões sobre a vida de imigrante, viagens e literatura.

Vênus 2084

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Vênus dançava quando sentiu tanta dor que começou a vomitar. A perna esquerda latejava.Tudo começou quando ela perdeu peso e as dores se tornaram frequentes. No Brasil, em 2084, o Delirium corporis chegava para todos. Principalmente em Themi.

As outras mulheres foram ajudar Vênus; colocaram-na em uma rede e chamaram a Avó para que ela decidisse se já estava no momento da amputação. Vênus sabia que ele estava chegando, mas não conseguia aceitar. A perna convulsionava. Ela tentava se segurar, mas já não comandava o próprio corpo. A Avó se aproximou, retirou o cachimbo da boca, com a fumaça saindo em formato de espiral, e assentiu para as outras mulheres. Vênus teria a perna amputada. Logo ela, cuja única paixão na vida era dançar. Não se importaria em perder um braço, mas a doença sabia como machucar o corpo hospedeiro, como se conhecesse sua mente.

Themi era o último matriarcado anarquista do Brasil. Lá, o nascimento de uma menina era a maior felicidade da comunidade. Todas celebravam o sagrado feminino existente em cada uma e saudavam a deusa que havia dentro de si. A ligação que possuíam com a natureza e com a terra era considerada mágica. Moravam em uma área isolada, esquecida por todos, no interior do país. Todavia, sabiam da existência do Círculo Metropolitano de São Paulo, e sabiam que lá o Delirium corporis fora erradicado. Os mais ricos quase não pegavam a doença e, se pegavam, utilizavam membros sofisticados que ninguém conseguiria perceber serem próteses feitas de metal e silicone. Os mais pobres tornavam-se visivelmente ciborgues, isso quando conseguiam o privilégio de arranjar os membros substitutos.

Findada a convulsão, Vênus chamou a Avó. As lágrimas desciam de seus olhos, e o destino final dos pequenos rios  era sua boca.. A Avó, contudo, tinha paciência. E experiência. Vira muitas mulheres em Themi que haviam perdido membros. Conhecia aquela dor. Ela mesma não tinha mais a mão direita, uma das orelhas e um dos pés.

“Avó, eu não quero perder a minha perna. Quero fazer algo. Quero ir para São Paulo”.

O rosto da Avó permaneceu sério. Todavia, seus olhos incendiavam-se com fúria.

“Você quer conhecer o patriarcado? As pessoas são tratadas como ratos naquele lugar!”

“Eu preciso fazer algo pela minha perna. Não posso perdê-la”.

“Você prefere se tornar uma ciborgue?!”, a Avó vociferou, horrorizada.

Vênus segurou as lágrimas e a dor dentro de si e respondeu com toda a firmeza que conseguiu.

“Eu prefiro ser uma ciborgue a ser uma deusa.”

Perante essas palavras, a sina de Vênus foi determinada. Não conhecia nada daquele mundo; sabia apenas o que era contado pelas mulheres que fundaram Themi. Elas fugiram de São Paulo; diziam que já não havia mais nada de Real lá. Vênus não encontraria água ou comida Real, como as que elas plantavam no matriarcado. Ela apenas encontraria protótipos, objetos que pareceriam ser o que não eram, desde comida até pessoas. Ela encontraria seres que eram completamente feitos de engrenagens e programação. Não haveria céu azul, apenas o céu cinza, como um canal de televisão fora do ar. Ela mal conseguiria respirar o ar poluído.

Themi não conseguia entender tudo em sua completude. Crescera sem televisão, sem uma IA para ajudar nos afazeres e sua mente não recebera os nanorrobôs responsáveis pelo acesso à internet. Seu corpo era virgem de qualquer tipo de alteração tecnológica; ela apenas lia sobre isso nos poucos livros que chegaram até ela na biblioteca de Themi, mas faria qualquer coisa para continuar a dançar.

Quando a dor passou, ela sabia que teria pouco tempo até a próxima crise. Colocou seus poucos pertences em uma mochila, não havia muito que levar, afinal; em Themi, tudo era coletivo. Quando foi se despedir da Avó, ela não olhou para a garota, apenas segurava seu cachimbo com força. Prepararam o teletransporte para a menina. Tiraram a poeira do objeto ultrapassado que não era usado há tanto tempo e prepararam a rota. Vênus seria a primeira mulher a sair de Themi em cinquenta anos. Talvez não a aceitassem de volta. Ela voltaria como uma ciborgue, sim, mas voltaria com uma perna.

2.

Nada preparou Vênus para o que ela encontraria. Quando saiu do teletransporte e o viu sumir, de volta para Themi, caiu no chão, cega pelas luzes neon do Círculo Metropolitano de São Paulo. As pessoas passavam com pressa, pisavam em cima dela e reclamavam da forma como estava atrapalhando o caminho. Estranhavam sua roupa simples, como se ela estivesse cinquenta anos atrasada no tempo. Um frágil vestido branco, muito diferente das roupas metálicas e escuras que as garotas usavam em 2084. Os prédios eram altos, com mais de 200 andares, prestes a devorá-la com todas as suas luzes. As enormes publicidades pareciam gigantes reais andando pela cidade.

O trânsito era caótico. As cybermotos zumbiam, deixando lastros de luzes neon por onde passavam. A velocidade era tanta que não conseguia-se ver o rosto do motorista a olho nu. Por isso, os policiais passaram a ser IAs havia muito tempo. O cheiro do lugar começava a adormecer os sentidos da garota. Era como se plástico estivesse sendo frito. Sim, Vênus reconhecia aquele odor. Era plástico. Mas quando ela, paulatinamente, conseguiu abrir os olhos e se levantou, viu que o cheiro vinha de um restaurante. Imenso, com um grande M amarelo, como se fosse uma entidade. Não era plástico; era algum tipo de comida. Parecia algo que ela vira em um livro antigo — um hambúrguer. Mas Vênus não comia carne vermelha.

Estava na Avenida Paulista. Um IA policial se aproximou. Seus visores provavelmente diziam que era algum tipo de moradora de rua. Ela tinha Delirium corporis, isso ele já sabia.

Era a primeira vez que ela via um homem. Ou um androide. Ela colocou a mão em sua barba e em seu cabelo, surpresa com a textura. Eram diferentes dos pelos femininos com os quais estava acostumada. O IA não conseguiu processar o que acontecia e apenas a classificou como mais uma usuária de daisy e a deixou sozinha.

Enquanto andava, Vênus percebeu que estava mancando. A perna esquerda emitia uma dor aguda e ela já não conseguiria mais dançar, como planejava fazer para ganhar algum dinheiro. Ela seria do cybertariado, o novo proletariado que surgiu após a revolução cibernética e de todas as mudanças pelas quais o mundo passara. As histórias sobre exploração que as mulheres de Themi contavam começaram a fazer sentido quando notou a forma como os homens e alguns IAs olhavam para o seu vestido branco transparente enquanto andava pela rua.

“E aí, docinho? Quer comprar um ingresso pra arena dessa noite?”

Um homem com uma capa preta metálica longa e óculos espelhados apareceu ao seu lado.

“Eu não quero”, ela respondeu, seca.

“Ah, não? Tá a fim de ganhar um? Ou fazer dinheiro? Meninas com esse tipo de corpo, meio infantil, fazem sucesso gravando uns vídeos em um lugar que eu conheço…”

Ele passou a mão em volta de sua cintura. Um de seus braços era uma prótese de metal e, justamente com ela, ele apertava Vênus com força sobre-humana. Assim que ela sentiu o toque, o golpeou na costela com o cotovelo — um dos truques que aprendera nas aulas de defesa pessoal em Themi.

“Deixa ela em paz, Hasuke”, bradou uma garota com longos cabelos azuis.  

Ela estava dentro de um ônibus, algum tipo de comércio, como um foodtruck. Vênus nem percebeu que Hasuke fora embora, olhando-as com o ego ferido. Estava hipnotizada pela figura daquela mulher.

“Muito obrigada pelo apoio. É muito bom encontrar sororidade nessa cidade!”, Vênus agradeceu, animada.

“Você aparenta ser feliz. Não deve ser daqui.”

A mulher se inclinou no balcão do ônibus, estendendo a mão.

“Prazer, meu nome é Fiona.”

As lentes de contato azuis de Fiona se moveram e Vênus pôde ver o movimento de peixes dentro de sua íris. Era como uma sereia; o mais próximo da natureza que já vira no meio daquela multidão envolta pelas luzes neon e pelo ar de poeira cinza.

Fiona mexia em vários computadores ao mesmo tempo e estava conectada a diversos aparelhos. Podia-se ver que também estava conectada à internet pelo seu cérebro pela forma como, às vezes, seu olhar encontrava o nada, mas suas mãos continuavam em movimento. Era um comércio, afinal. Aquele ônibus fazia testes de DNA instantâneos. Havia um laboratório portátil em um canto do ambiente, perto de um aquário onde nadava um polvo-robô. O adesivo colado indicava que o nome do animal era Nebula. Ali era possível, para qualquer ser humano, descobrir sua paternidade. Bastava colher o sangue e o resultado saía em um minuto. Como uma cafeteira elétrica.

“Tá a fim de descobrir quem é o seu pai?”

Vênus sorriu e fez uma careta.

“Para falar a verdade, não faz diferença nenhuma pra mim. Eu nasci em um matriarcado anarquista. Lá não existem pais. Eu fui um espermatozoide congelado de um voluntário anônimo. Eu só tenho uma Avó”.

Fiona parou tudo o que estava fazendo. Tirou todos os plugues que estavam conectados em seu corpo. Seus olhos e os peixes que viviam nele focaram em Vênus.

“Você é uma das moradoras daquela tribo feminista radical que vive na floresta?!”

“Vocês sabem quem nós somos?”

“Há algumas lendas sobre vocês.”

Um garoto chegou com os amigos para fazer o teste. A maioria das pessoas se comunicava por uma língua que Vênus não conhecia. O português aparentemente caía, cada vez mais, em desuso. Em São Paulo, era imperativo saber japonês. O garoto pareceu um pouco chateado com o resultado e os amigos deram risada. Fiona apenas recolocou os fones de ouvido e os plugues e voltou a se conectar, indiferente à reação do menino. Já estava acostumada com aquilo. Fazia parte do trabalho. Descobrir quem era seu pai também fora uma decepção para ela. Não valera nem a dor da picada no dedo para a coleta de sangue.

Vênus pegou sua mochila para ir embora, ciente de que estava atrapalhando Fiona, quando a moça inclinou-se novamente sobre o balcão, derrubando seus longos cabelos azuis que iam até o chão. Vênus pôde sentir o doce aroma de mar, mesmo sem nunca tê-lo conhecido. Devia ser um daqueles perfumes com aromas alucinógenos dos quais a Avó lhe contara.

“A gente deveria sair hoje à noite.” Fiona piscou um de seus olhos azuis cheios de peixes.

Vênus sorriu. Ir para São Paulo fora a melhor ideia que tivera em toda sua vida.

 

Enquanto vagava pela cidade mancando, Vênus parou diante de uma vitrine. TVs de 600 polegadas mostravam 40 canais ao mesmo tempo. A garota pensou que fosse desmaiar. Todavia, se recompôs quando viu o comercial de um reality show. Nele, uma IA vestida de Marilyn Monroe sussurrava.

“Se você sofre de Delirium corporis, essa é a sua chance de ganhar um membro sofisticado feito com tecnologia de ponta!”

Imagens de pessoas felizes andando, correndo e se abraçando apareceram. Vênus assentiu para a TV. Sim, era exatamente isso o que ela queria. O programa se chamava Morra ou ganhe!, e aceitava inscrições de qualquer um. E ela ganharia — não morreria.

Ela se inscreveria mesmo sem saber o que faria ou sobre o que o programa se tratava. A Avó dizia que o capitalismo e o patriarcado faziam tudo por exploração, violência e lucro, mas Vênus acreditava que talvez ela apenas demonizasse demais esse mundo. Fiona fora tão legal com ela…

Vênus anotou o site. Acessou um dos velhos computadores da praça pública e se inscreveu; aprendera um pouco sobre tecnologia nos diversos livros antigos que lera em Themi. Na ficha de inscrição, contou toda sua história — sobre a vida em Themi, sua Avó, seu amor pela dança… Esperava que a produção se emocionasse.

Quando a inscrição chegou, Atena, a produtora do programa, realmente se emocionou — mas com o lucro que faria trazendo uma moradora da floresta para a TV. Seria como assistir a um animal exótico em um zoológico.. Ela seria uma ratinha perfeita para a gaiola que estavam construindo com tanto carinho. Atena finalmente conseguiria colocar um reality show no topo da audiência e receberia sua promoção. Não precisaria usar daisy com tanta frequência para ter ideias inovadoras; a ideia batera à sua porta. Finalmente poderia trocar seu corpo por um mais novo. Já não aguentava mais ter 30 anos.

*

Mais tarde, enquanto comiam sushi em um pequeno restaurante, Fiona se mostrou contra a ideia de Vênus.

“Você não é daqui. Nunca assistiu a esses programas. Num deles, deram um gato para uma menina cuidar. Eles viveram juntos por um ano, só os dois. No final, pra ela ganhar o prêmio, ela tinha que matar o gato, o único amigo dela, na frente das câmeras”, Fiona disse, enquanto encharcava seu sushi no molho shoyu. “Aquele episódio foi bizarro. Ela matou o coitado com um estilete”.

“Eu preciso tentar, Fiona. É a minha única chance de vencer a doença. Você viu que estou mancando! Preciso de uma prótese. A da perna é ainda mais cara que uma da mão ou do braço. Eu pesquisei os preços hoje”.

Fiona não insistiu; elas tinham acabado de se conhecer. Tentou aproveitar a noite, aprender o máximo possível sobre essa criatura fascinante que aparecera na sua vida. Conversaram a noite toda. Fiona parecia ter saído de uma distopia, com tantos fios escapando de seu corpo, seu estilo seapunk, suas lentes que se movimentavam e seu niilismo. Havia visores nas longas unhas e um filme sempre estava passando nelas. O da vez era Kill Bill. Vênus, por outro lado, parecia saída de uma utopia. Sempre falando da natureza e de coisas que já estavam extintas há centenas de anos, como livros físicos e comida de verdade. Mesmo aquele sushi nada mais era do que uma réplica. Falava sobre justiça e um mundo onde o Delirium corporis seria erradicado para todos; onde IAs teriam direitos como os seres humanos e não seriam escravizados. Fiona achava que ela parecia uma fada de uma história que há muito fora ouvida. Eram mundos opostos que se completavam.

Depois da refeição, Fiona chamou Vênus para passar a noite em sua kitnet. O primeiro beijo das duas teve gosto de sushi de plástico e, uma vez dentro da kitnet, começaram a se despir em um frenesi. Seus corpos nus se movimentavam em sincronia. Por um momento, Vênus se esqueceu da doença e se deixou levar pelas carícias de Fiona. Por um momento, não havia desigualdade, não havia tecnologia, não havia opressão. Tudo o que durava no mundo estava resumido na existência das duas dentro daquele quarto. Era como um poema de Safo — Vênus não conseguia falar nada, sua língua se quebrara. O fogo corria sob sua pele, o suor escorria. A pequena morte chegara.

No meio da madrugada, Vênus acordou e foi ao banheiro. Os peixes dos aquários a observavam. Começou a vomitar novamente. Logo, a convulsão viria, o delírio retornaria. Ela pegou seu vestido branco e enrolou em volta da perna para tentar controlá-la. Ninguém sabia de onde a doença viera; sabia-se apenas rumores de que tudo começara com a ingestão incansável de comidas com agrotóxicos, refrigerantes com substâncias cancerígenas e uso de hormônios nos animais que seriam abatidos. A indústria alimentícia sempre fora um pesadelo.

*

Como Vênus não possuía nenhum vínculo tecnológico para se comunicar com o mundo, Atena não perdeu tempo: decidiu rastreá-la e buscá-la pessoalmente. O show começaria mais cedo aquele ano. Todos sabiam que as emissoras de TV eram comandadas pelas grandes corporações — como a Sertronic, que construía IAs para o sertão brasileiro, e a Gênesis, que controlava São Paulo e toda sua tecnologia. Elas também controlavam o Governo; logo, o reality possuía aval para romper qualquer barreira que pudesse ser obstruída pela lei.

Encontraram a garota na kitnet de Fiona. Apertaram a campainha por uma falsa educação, mas câmeras já estavam ligadas. Quando Fiona abriu a porta, imediatamente colocou as mãos sobre os olhos para se proteger da intensa luz da equipe de filmagem. Uma mulher alta e com o cabelo raspado e pintado de branco, vestida em roupas douradas e metálicas, entrou no pequeno lugar — assim como a equipe, empurrando tudo o que viam pela frente. Os aquários caíram com alarde. Os peixes robóticos soltavam faíscas no chão, debatendo-se como se realmente precisassem de água para sobreviver. Atena foi em direção à garota cujo corpo não tinha intervenções tecnológicas.

“Você é Vênus?”

A garota assentiu.

“Aceita participar do Morra ou ganhe!?”

Vênus assentiu novamente.

Após a afirmação, Atena fez um sinal e a equipe levou a garota. Enquanto era carregada, Vênus tentou se despedir de Fiona, mas ela também estava sendo segurada. Tudo o que pôde ouvir foi a moça de cabelos azuis gritar:

“Eu vou te buscar! Eu vou te achar!”

Vênus não imaginara que usariam de violência. Todos carregavam metralhadoras semiautomáticas. Estava acostumada com a liberdade de Themi, acostumada com a dança que libertava todo o seu corpo. Sua perna tremia, ainda amarrada pelo vestido, enquanto usava uma camiseta de Fiona.

Colocaram-na dentro de um carro, que logo começou a subir e entrou no tráfego aéreo. Vênus olhava com atenção para as luzes neon quando colocaram uma venda sobre seus olhos. Sentiu que injetaram algo em seu braço.

Quando acordou, estava só e nua em outra kitnet, com várias câmeras como companhia.

4.

Tentou cobrir o corpo, mas não havia com o que se esconder. Era como se Eva tivesse sido criada antes, e não em um jardim, mas em uma kitnet minúscula, com uma pequenina janela com grossas grades. Havia algo ao redor de seu pescoço que pareceu a Vênus  uma coleira de cachorro, mas percebeu ser apenas um colar com um microfone. Tentou tirá-lo, mas não conseguiu. Havia seu nome nele; talvez, ali, ela fosse mesmo um cachorro.

As câmeras orbitavam-na. Tudo o que ela fazia chamava a atenção das máquinas. A porta estava trancada. Acreditara que, ao se inscrever no Morra ou ganhe!, entraria em uma daquelas competições em que teria que colocar suas aptidões em comparação com as de diversos outros jogadores, pois fora assim que conhecera as histórias dos reality shows em Themi. Não esperava ficar só. Sabia que exploravam o corpo das mulheres, mas agora percebia como fora ingênua. Eles não lhe dariam roupas. Não fazia ideia de quantas pessoas estariam assistindo àquele programa, mas todos a estavam vendo daquela forma. Cobria os seios e o Monte de Vênus malmente com os braços finos.

Sentia uma dor de cabeça inexplicável. Não sabia que, enquanto estava desacorda, Atena tomara uma decisão por ela. Quando acordou, Vênus percebeu que havia algo diferente. No canto esquerdo do seu campo de visão, via algumas palavras. Algo que indicava um manual de instruções para o primeiro acesso. Vênus não chorava com facilidade, mas chorou quando percebeu que haviam modificado seu sistema nervoso sem seu consentimento. Sabia que se tornaria uma ciborgue, mas queria ter plena consciência do que estava fazendo.  

Tudo o que havia na kitnet era um uma pia, um vaso sanitário e uma almofada verde. Percebeu que teria que tomar banho na pia, e beber água dali também. Não havia copos, nem canecas. Tudo dependeria de suas mãos. Teria que dormir sobre o chão e a pequena almofada seria o seu travesseiro. O lugar emanava um ar grotesco, como se risse dela com desdém. Não havia sinal de comida, e ela começou a ficar preocupada. Eles não deixariam que uma participante do show morresse, certo? Ou isso daria audiência?

Um holograma, então, apareceu. Era a mesma IA que vira no comercial, na cidade, igual à longínqua atriz Marilyn Monroe. Tinha o mesmo sussurro ao falar e a maneira lânguida nos movimentos.

“Olá, Vênus! Meu nome é Anima e eu serei a hostess dessa temporada de Morra ou ganhe!

A garota se aproximou lentamente do holograma.

“Você está ao vivo para toda a população brasileira!”

“Vocês não vão me dar roupas?”, Vênus mal abriu a boca para falar.

“Não, querida. Mas não seja puritana. Você terá que ganhar as suas próprias roupas. Nós e o público fizemos uma pergunta: será que um ser humano consegue viver sozinho apenas ganhando sorteios? Claro que uma IA conseguiria. Mas… e vocês? Por isso, o seu objetivo aqui, se quiser uma perna boa, é ganhar um milhão de reais em prêmios de sorteios.”

“Quando eu conseguir, poderei recuperar a minha liberdade e ganhar a minha prótese?”

“Claro! A melhor prótese de todas, feita pela Gênesis…”

Uma longa publicidade começou — uma das muitas que Vênus escutaria durante sua prisão naquele lugar. Sua mente ia ter que se acostumar a desligar nesses momentos. Anima terminou a transmissão repetindo a clássica cena do vestido branco encenada por Monroe em O pecado mora ao lado e sumiu.

Vênus não teria comida até ganhar alguma em um sorteio. Acessou o manual de instruções em seu cérebro. Sabia que seus olhos estavam voltados para o nada, assim como vira Fiona fazer no ônibus do DNA. Contudo, suas mãos se movimentavam para escolher as opções, como se uma tela de computador estivesse presente diante de si. Todos os sites estavam bloqueados, exceto aqueles em que poderia se inscrever para ganhar prêmios. Não havia muitos objetos úteis para sua sobrevivência, mas se inscreveu em todos. A única coisa relativa a comida era uma promoção de combo com hambúrguer e batata frita que sairia em uma hora. Vênus não comia carne vermelha. Ela era contra a exploração dos animais.

“Atena, eu sei que você está me escutando, eu não como carne vermelha. Eu preciso de comida. Vocês não podem me deixar só com o sorteio desse combo”, ela disse, olhando para uma das câmeras. “Eu imploro. Não me deixem aqui sem nada. Eu faço tudo o que vocês quiserem. Eu já estou fazendo”.

Atena, da sala em que dirigia o programa, apenas ria. A audiência se apaixonara e comprara a ideia da garota criada longe da tecnologia. Davam risada da forma como ela aprendia a acessar a internet pela mente, mais desastrada que uma criança. Os espectadores já compartilhavam vídeos do susto que ela levara ao ver o holograma de Anima. Vênus já era um sucesso. O público estava amando o fato de ela não ter o que comer. Amavam a forma como ela tentava esconder o corpo.

Não houve resposta. Vênus desistiu e se inscreveu no sorteio no combo. Sua barriga já começava a doer.

O programa escolhia quais prêmios ela receberia ou não. Tudo de acordo com o que teria potencial para virar uma história para o episódio do dia. Souberam da forte ligação que tinha com os animais devido ao passado em Themi, e Atena sentiu um gozo especial ao vê-la receber o combo. Ela não precisaria mais de daisy. Ela não receberia mais broncas do dono da emissora de TV. Essa menina era sua galinha dos ovos de ouro.

Quando Vênus abriu a porta, após ouvir seu nome ser chamado, um drone entregou o pacote.

Tentou se alimentar apenas das batatas, mas a fome era tanta que teve que comer o hambúrguer. Chorava enquanto comia, e as risadas de Atena aumentavam conforme a audiência crescia. Depois que terminou de comer, vomitou. Tentou limpar com o pouco papel higiênico que haviam lhe dado e, ali, percebeu que entrara em uma tortura televisionada.

Os prêmios tornaram-se cada vez mais sádicos. Ganhou um pacote de algo muito parecido com arroz, mas não havia como cozinhar. Em um ataque de raiva, jogou-o contra a parede. Quando percebeu seu erro, contentou-se em pegar os pequenos grãos do chão e comê-los, crus. Estava cada vez mais fraca. Emagrecia ininterruptamente. Já não se importava que vissem seu corpo; andava nua. Tomava banho quando se lembrava. Conversava sozinha diante da câmera. Contava histórias sobre Themi. Só se envergonhava quando pensava que a Avó pudesse vê-la daquela forma. Tentava não pensar nas pessoas que a viam ou no prazer que sentiam, após os cinco meses de programa.

Um de seus fãs conseguiu hackear o sistema e mandou mensagens diretamente para o seu cérebro. Os recados acordaram-na como bombas. Sam145X dizia que a amava, que entendia sua solidão e que a sequestraria. Eles ficariam juntos para sempre. Se ela não aceitasse, ela seria uma puta e ele contraria uma gangue para violentá-la. Vênus começou a gritar quando as imagens da ameaça tomaram sua mente. Sam145X mandou imagens explícitas que ela não pedira. Ela só pedia por sua perna.

Após as ameaças, Atena decidiu que, ocasionalmente, mudaria Vênus de kitnet . Eles esperavam ela dormir, injetavam o sonífero preferido da produção e a levavam para uma kitnet idêntica. Era parte da brincadeira – e da tortura. Apreciavam observar Vênus acordar e perceber que algumas coisas estavam diferentes, mas outras permaneciam idênticas. Ela se perguntava se estava ficando louca.

Ganhou uma bicicleta voadora, mas não havia espaço para se movimentar dentro da kitnet. Apenas subiu na bike e fingiu que pedalava. Imaginou que fugia. Que voava. No final, deixou a bicicleta de lado. Era apenas um lembrete de todas as coisas das quais não podia usufruir.

A perna estava cada vez pior. As dores sempre vinham à noite, e a audiência aumentava nesses momentos. Ela convulsionava de dor. Não havia com o que amarrar a perna; logo, deixava-se delirar até o momento em que vomitava e desmaiava. O programa não lhe oferecia serviço médico. Nesses dias, Sam145X mandava mensagens de preocupação e ela sentia medo.

Atena passou a deixar comida para Vênus quando Anima distraía os espectadores com as publicidades de sempre. Constantemente a comida era pegajosa, com a textura de um animal rastejante, como uma lesma. Ela nunca deixava de colocar carne vermelha para se divertir com a expressão de asco de Vênus.

Ganhou ingressos para o show de uma boyband, FutureBoys58, mas não havia como ir. Ganhou um Nintendo DS2000. Jogou Pokémon durante três dias seguidos, sem pausas, até perceber que aquilo lhe tirava o foco de se inscrever nos sorteios e deixou o DS de lado. Os objetos acumulavam-se e quase não havia espaço para eles. A maioria era feita de produtos cuja utilidade era próxima do zero. Apenas um monte de lixo que custava muito caro.

Começou a ficar inerte. Às vezes, ficava apenas deitada com a cabeça sobre a almofada verde, pensando em Fiona e em quantos dias teriam se passado. Cada vez mais sentia medo. Medo do hacker, medo da produção do programa com suas armas, medo de Atena. Perdeu a noção de espaço-tempo. Fiona dissera que a acharia. Ela olhava com esperança para a janela, entre as grossas grades, cega pelas luzes neon. Imaginava se alguém a buscaria, mas estava sozinha. Sentia raiva de Atena e sabia que fazer nada lhe prejudicava, pois não lhe traria audiência.

A produtora ficou com raiva nos primeiros dias. Voltou a usar daisy, mas as ideias não vinham. Quebrou uma garrafa de uísque na cabeça de um estagiário, o que lhe deu um insight magnífico sobre o que deveria fazer para sua ratinha se movimentar.

No dia seguinte, havia algo diferente na água colocada pelo programa. A água era sempre colocada quando Vênus dormia, para que ela não tivesse contato algum com seres humanos ou IAs. Ela apenas via o drone ou o holograma de Anima. Tentava conversar com a IA, mas ela estava ali para falar com o público, e falar sobre os patrocinadores do programa.

O resultado foi exatamente o esperado pela produtora — a euforia de Vênus era inigualável. Ela se inscrevia em mais sorteios do que o normal. Dançava, mesmo com a perna manca. Em um frenesi, jogava seu próprio corpo contra as paredes do minúsculo lugar. Todavia, quando o efeito passava, a depressão que vinha era intensa. As crises de Delirium corporis eram ainda piores. Deitava-se no chão e lá ficava, tremendo, ansiosa pelo próximo gole de água.

Depois de um ano presa, Vênus finalmente ganhou roupas. Um macacão fosforescente advindo de uma revista de moda adolescente. Vestiu, mas agora se sentia estranha com roupas. Não precisava do macacão. Tirou e deixou guardado em um canto da kitnet.

Vênus paulatinamente esquecia-se do que fora a vida antes do Morra ou ganhe!.

5.

Se aquele babaca do Sam145X tinha conseguido adentrar o sistema do Morra ou ganhe!, então Fiona também conseguiria. Ela sempre tentara seguir o lema que sua mãe lhe ensinara quando estava viva: “Se um homem consegue fazer, você também consegue”.

Todos os dias, quando acordava, a primeira coisa que fazia, ainda deitada, era acessar o pay-per-view e ver como Vênus estava. Sabia que ela sofreria, mas não imaginava que lhe torturariam daquela forma. Precisava ajudá-la. Pediu férias para o dono do ônibus de DNA, mas ele apenas riu. A palavra “férias” era inexistente em seu vocabulário. Foi demitida. Após tantos anos sendo explorada, ainda ouviu que havia filas e filas de pessoas e, inclusive, IAs desesperadas para trabalharem no ônibus de DNA. Viu o acontecimento como um sinal para finalmente meter o pé na porta. Alugou uma pistola com Hasuke e dedicou-se a procurar o lugar onde Vênus estava.

Em 2084, todos os jovens eram hackers. Tudo começara dezenas de anos antes, com a pirataria e torrents ingênuos de filmes e séries de TV, mas a tecnologia avançara e os jovens passaram a encarar a Rede como uma realidade mais “real” do que virtual. Fiona cresceu na comunidade hacker. Já havia ouvido falar de Sam145X; ele era como um herói cultural naquele meio. Os fóruns só falavam dele e da recente obsessão que ele adquirira pela “selvagem”.

Em uma dessas reuniões nos fóruns, Fiona conseguiu uma informação privilegiada. Viu que um dos usuários, amigo de Sam145X, citou um instalador esquecido. Então era isso que ele estava fazendo! A equipe do programa, na hora de instalar o software na mente de Vênus, deixou um instalador esquecido, uma espécie de senha.

Fiona acessou o instalador, seguiu as opções que apareceram e escolheu uma nova senha administrativa, mas não sem antes rir da senha que Sam145X reescolhera – “Ela-será-minha”. Fiona riu, e a risada solitária logo se tornou um ataque de riso. Ele não sabia que Vênus viera de um matriarcado anarquista? Ela nunca poderia ser dele. Ela não acreditava na propriedade privada.

As mãos de Fiona suavam enquanto ela gravava uma mensagem para Vênus. Tinha que ser discreta e rápida. Menos de três segundos, para que a produção do programa não captasse. Com a máxima calma que conseguiu reproduzir, disse:

“Eu estou indo te buscar”.

Quando Vênus acordou e ouviu essa frase, achou que estava sonhando. Mas a mensagem fora tão real quanto a daquele hacker maluco que a atormentava. Fiona mencionara que era hacker no encontro que tiveram; ela poderia encontrá-la. Era essa a única esperança que Vênus alimentava todos os dias antes de seguir para a rotina de entrar na Rede e se inscrever nos sorteios de objetos inúteis.

Naquele dia, a voz eletrônica costumeira chamou, mas não era um drone quem estava na porta. Era Fiona vestida de entregadora de pizza. A produção não se assustou. Às vezes, alguns humanos e IAs ainda faziam entregas. As duas se olharam, mas evitaram qualquer tipo de expressão. As câmeras voavam em volta da entrega presente nas mãos de Fiona. Quando ela abriu a tampa da caixa, não havia uma pizza, mas uma pistola. Com sua arma, ela atirou nas pequenas câmeras com pontaria perfeita.

Fiona estudara o prédio e sabia como elas deveriam sair dali sem serem pegas. Pegou a mão de Vênus e correu, mas ela estava muito fraca após todo o tempo presa na kitnet. Mancava, quase caía a cada passo que dava. Quando passava por uma janela e se deparava com a luz fraca que saía do céu cinza de São Paulo, seus olhos fechavam-se, como se estivesse cega. O pudor voltou; tentava cobrir seu corpo e os diversos hematomas que haviam aparecido.

“Nós precisamos correr, Vênus!”, Fiona gritava.

Vênus caiu no chão. Sua perna doía muito. Fiona tentava pegá-la nos braços e carregá-la, mas não aguentava o peso. As duas ficaram caídas no chão, olhando-se.

“Não vou conseguir sair daqui. Nunca”. Vênus começou a chorar. “Eu não vou ganhar, eu vou morrer”.

Vênus apontou para a perna que começara a necrosar.

Fiona também não conseguia mais segurar as lágrimas. Beijou a garota. Ainda tentava pegá-la nos braços.

“Você vai sair. Você está chegando perto do um milhão. Eu vou criar um plano melhor. Eu vou voltar”, Fiona dizia em um frenesi desesperado.

Atena apareceu com os seguranças. Todos seguravam suas metralhadoras semiautomáticas como se fossem seus filhos.

“Ora, ora, olha só quem está apaixonada”, ela riu. “Ratinha, de volta para a gaiola.”

Vênus, ao passar pela produtora, reuniu todo o seu ódio e toda a sua energia e cuspiu no rosto de Atena. Tudo o que ela pôde fazer foi reagir com bom humor e limpar o cuspe.

“Temos uma ratinha que ficará sem sua águinha hoje”.

 

Morra ou ganhe! já não era mais a vanguarda televisiva que um dia fora. Atena conseguiu comprar seu novo e caríssimo corpo de 20 anos e adquiriu novamente a atenção dos chefes da emissora. Estava preparada para filmar o piloto de seu próprio reality que exploraria o complexo de Édipo — mulheres seriam colocadas em situações de perigo extremo com seus maridos e seus pais e teriam que escolher apenas um para salvar.

As passagens do teletransporte já estavam compradas. Tudo o que Atena precisava era fazer com que sua ratinha ganhasse um milhão. Os prêmios ficaram cada vez mais aleatórios e os temas dos episódios também. Após a visita de Fiona, o uso de cocaína ficou ainda mais intenso para manter a participante do show em pé.

Vênus não fazia ideia do quanto tinha ganhado em dinheiro, mas sentia-se cada vez mais sufocada pela quantidade de objetos presentes na pequena kitnet. Quando estava prestes a fazer um apelo para as câmeras que orbitavam ao seu redor, um holograma de Anima apareceu. Ela não conseguia entender muito bem o que a imagem dizia, uma vez que, com um estrondo, vários homens armados entraram no local e a pegaram. Sentiu que injetaram algo em seu braço. Novamente.

Quando acordou, estava no meio do nada. Já não estava na kitnet, mas continuava nua. Ao seu redor, estendia-se uma grande cortina vermelha. Ouvia, ao longe, um zumbido. A plataforma em que pisava começou a se mover com rapidez. Tentou acessar algo pela sua mente, mas não conseguia. A opção de acesso à internet estava inviável no momento.

Quando a plataforma finalmente parou, a imensa cortina caiu. Uma festa báquica encontrou Vênus. Uma plateia de espectadores do programa estava ensandecida. Possuíam cartazes dizendo que a amavam. Sam145X tentou invadir o local, mas os seguranças o impediram. Descobrira-se que ele era apenas um garoto de 13 anos, muito magro, que vivera a vida toda na Rede. Nada parecido com as fotos que ele usava. Anima batia palmas e mandava beijos para a garota, que tentava esconder seu corpo, provocando risadas de todos os que estavam presentes. Todavia, todos já haviam visto o que ela tentava esconder. Já haviam até mesmo comprado todas as revistas que saíram.

Anima lhe entregou a prótese.

“Depois da cirurgia, você poderá dançar”, e piscou.

Ela finalmente havia ganhado o que precisava, mas sentia como se tivesse perdido muito mais. Olhava hipnotizada para o seu prêmio. Então era aquilo que tanto desejara. Parecia mais pesado na vida real. Já não havia algo faltando dentro de si. Conseguira.

Procurava Fiona em todos os lugares, mas não via os gigantescos cabelos azuis de sereia em lugar nenhum. Havia desistido dela? Por que ela não criara outro plano, afinal?

Os repórteres debatiam-se com violência, afoitos pela melhor forma de gravar um vídeo da vencedora. Era caótico. Vênus seria a manchete de todos os veículos da imprensa. Seu simples vestido branco com o qual chegara na cidade logo se tornaria a mais nova tendência em São Paulo.

Atena, dos bastidores, chamava Vênus com uma das mãos. Suas malas estavam ao lado. Logo partiria.

“Ratinha, você já pode ir para a sala de cirurgia”, disse, passando a mão sobre o cabelo desgrenhado de Vênus, de forma maternal.

Os IAs da equipe médica, todos vestidos de branco, colocaram-na em cima de uma maca. Sentiu que dormia lentamente. Ao acordar, não mancava mais. Sua perna fora substituída pela mais nova perna Gênesis que havia no mercado, feita do silicone chileno e com as ligas de aço trazidas do Japão. Ela desceu da maca e dançou. A coreografia era triste e melancólica. Dançava os movimentos reservados para os dias de luto em Themi. Os IAs olhavam, parados, em sua direção. Nunca haviam visto um ser humano expressar tanta dor com o próprio corpo — e com pedaços de metal.

Ao sair do hospital, Fiona a esperava na porta.

“Atena me manteve presa até o programa acabar! Eu juro!”

As duas se abraçaram por uma eternidade. Quando se soltaram, Vênus viu que havia malas junto à garota.

“Para onde você está indo?”

“Eu não quero mais ficar nesse lugar horrível. Essa cidade me enoja”.

Então Vênus esboçou um sorriso e respondeu com segurança:

“Eu conheço um lugar para onde nós podemos ir”.

7.

Fiona não demorou a se acostumar com Themi. Gostara particularmente do gosto da maçã. Nunca sentira algo parecido com aquilo em São Paulo.

“É real mesmo?”, sempre perguntava.

As mulheres se uniam ao redor da moça e faziam gigantescas tranças com seus cabelos azuis. As pequenas meninas brincavam de roda com elas. Fiona tentara acessar a internet, mas vira que ali não havia sinal. Não fazia diferença.

A reação da Avó ao ver que Vênus tornara-se ciborgue fora de dor, mas a perdoou assim que a assistiu dançar novamente. Quis saber se haviam machucado Vênus da mesma forma que machucaram a si no passado. Ela disse que nunca mais voltaria para lá. Agora entendia o ódio que seu povo sentia por aquele lugar. Agora sabia o que era ser explorada, subestimada e manipulada como um pequeno fantoche. Queria justiça. Queria colocar o mundo em chamas e mudar tudo o que vira. Mas não agora.

Agora, ela aproveitaria o seu lar com a mulher que amava.

Não demoraria, no entanto, a voltar a São Paulo. E, quando voltasse, estaria preparada. Prometeu para si mesma que mais nenhuma garota sofreria o que ela sofreu naquela cidade. Sentia o cheiro da revolução chegando. Sentia o cheiro do caos. Olhava para as mulheres fortes que moravam em Themi e via um exército. Fiona traria para o lugar todo o aprendizado que elas precisavam sobre a cidade. Vênus não deixaria que elas sofressem com o Delirium corporis. Iriam começar a estudar e construir, no futuro, as próprias próteses para que mais ninguém precisasse se vender em São Paulo.

Elas não teriam de viver isoladas. Podiam levar suas ideias para as classes oprimidas que viviam nas ruas perigosas daquela cidade luminosa.  Para aqueles que pediam esmolas e eram atropelados pelas cybermotos em alta velocidade.

Diferente do que Atena pensava, Vênus não era uma ratinha. Ninguém fazia ideia do que ela aprendera em seus momentos de isolamento. Sempre que ficara inerte no chão, saboreando a dor agridoce da necrose de sua perna, todos pensavam que ela já não existia. Mas era nesses momentos que sua alma pulsava com mais força. Seus olhos viajavam nos lampejos de luzes neon que via pela minúscula janela. Ela pensava em justiça.

Vingar-se-ia de Atena. Vingar-se-ia da produção e da emissora. Atacaria os chefes. Ela não se esqueceria de ninguém.

Enquanto divagava, Fiona aproximou-se e a abraçou.

“Fiona, eu vou precisar de sua ajuda com algo”.

“Você quer se vingar, não quer?”

“Como você…?”

“Eu também sinto isso. Em 2084, não conheço ninguém que tenha vivido em São Paulo que não tenha pensado em vingança”.

As duas se abraçaram. Viveriam no último matriarcado anarquista, por enquanto. Até que a revolução as chamasse.

 


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Laisa Ribeiro é graduanda em Estudos Literários na Unicamp, é feminista e tem um conto publicado na Revista Gueto.

Covil de Livros 100 – As Crônicas Saxônicas – Parte 1

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Bem-vindos, amigas e amigos, ao EPISÓDIO 100 DO COVIL DE LIVROS!!!

Nosso muito obrigado por todo mundo que acompanha nosso podcast. Para comemorar essa marca, atendemos a diversos pedidos e falamos sobre AS CRÔNICAS SAXÔNICAS, uma série de livros do escritor Bernard Cornwell, com ajuda dos ouvintes Patrícia Souza, Jéssica Souza, Samuel Muca e Rafael Jacaúna. E mais: nossos convidados de hoje são os OUVINTES!!! Isso mesmo. Nessa primeira parte chamamos 4 ouvintes do Covil para conversar sobre os 5 primeiros livros da saga. Como sempre, o programa está repleto de SPOILERS (até o livro 5, apenas).

Tenham um bom programa e ouçam até o final, porque tem sorteio!!!

Antologia Reimaginando Lobato

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Grande parte das pessoas se alfabetizou ou tomou gosto pela leitura através dos livros de Monteiro Lobato — especialmente suas obras do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Atualmente, porém, o teor racista e machista das obra de Lobato tem sido questionado, levantando dúvidas a respeito de a obra ser adequada ou não para crianças, de censuras, adaptações e tudo mais.

Com a iminência da obra do autor entrar em domínio público, nós, do Cabuloso Livros, resolvemos propor uma nova abordagem a essa situação.

Queremos fazer uma antologia de contos baseadas na obra de Lobato, incluindo mas não se limitando ao Sítio do Pica-Pau Amarelo. Contos que reimaginem sua obra, e que deixem para trás as posturas retrógradas do autor.

Queremos contos que criem outras realidades e aproximem a obra de Lobato da realidade atual da sociedade brasileira. Queremos conhecer um Morro do Pica-Pau Amarelo no meio do Rio de Janeiro, um Visconde de Sabugosa hacker num mundo cyberpunk, uma Narizinho ativista LGBT resistindo a um governo autoritário, uma inteligência artificial chamada eMil-IA que ganhou seu primeiro corpo físico. Em resumo, queremos contos que expandam ainda mais os limites do fantástico universo de Lobato, e que rompam completamente com qualquer traço conservador e/ou preconceituoso.

Envio do material

  • Envie seu conto para o e-mail contos@leitorcabuloso.com.br, com o título do e-mail nesse formato:
    • [LOBATO] Nome do Conto – Nome do Autor
  • Envie seu nome completo, uma minibiografia e uma foto;
  • O conto deve ser enviado em .rtf ou .doc;
  • Recomendamos a formatação com espaçamento simples, fonte Times New Roman 12 e com os negritos e itálicos necessários já aplicados;
  • O prazo para envio dos contos é de 31/01/2019.

O que publicamos (ou não)

  • O conto deve ter um tamanho entre 1000 e 8000 palavras, contos menores ou maiores serão descartados;
  • São aceitos contos de quaisquer gêneros literários;
  • O conto deverá ser uma história única e fechada, não serão aceitas histórias seriadas;
  • O conto deve ser inédito.

Avaliação e publicação

  • Os contos serão lidos e avaliados. Nos reservamos ao direito de rejeitar contos de acordo com critérios internos e absolutos, ou mesmo sugerir modificações e melhorias para que o material atinja seu potencial máximo;
  • Revise seu conto. Os trabalhos com muitos erros de português serão rejeitados;
  • É permitido o envio de mais de um conto, mas apenas um entrará no livro, caso aprovado.

Estamos esperando suas histórias!!

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A Justiça Chama (Magia em Jogo #1) – Annie Bellet

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Você segue as regras. Você trabalha, tem bons amigos com quem passa horas agradáveis jogando RPG ou videogame. Você lida com as coisas do seu passado da melhor forma e não faz mal pra ninguém. Nada mais certo do que sua vida continuar tranquila. Certo?

Errado. Ao menos para a Jade Crow que vê a sua tranquilidade começar a desmoronar após a chegada de um Juiz em sua loja de games e alguns outros acontecimentos macabros…

Pra fazer justiça é preciso usar magia

Jade Crow é uma feiticeira de vinte e cinco anos e finalmente está tranquila em uma cidade afastada de grandes problemas. Nerd e gamer, Jade passa a maior parte de seu dia em sua loja de colecionáveis, jogos, quadrinhos e outras coisitas geeks ao lado de seus amigos. Até que um dia, inesperadamente, um Juiz com grande poder no mundo mágico a visita acusando-a de ser responsável por um crime que ainda nem ocorreu. Não bastasse essa situação constrangedora, ela ainda terá que utilizar de sua magia, até então escondida, para ajudar a sua melhor amiga a procurar o responsável por cometer uma atrocidade com a sua mãe.

Nesse cenário, os personagens não são humanos. Além de Jade, que passou os últimos vinte e cinco anos de sua vida fugindo de seu maior inimigo que quer comer seu coração, seus amigos também são fantásticos: sua amiga Harper é uma metamorfa-raposa e seu grupo se fecha com um carcaju e um coiote.

Unidos para tentar quebrar o feitiço que pode matar a mãe de Harper e com o Juiz em seu encalço eles seguirão por uma aventura atrás de provas e culpados. E é melhor eles correrem se quiserem sobreviver!

Será que Jade tem coragem de usar seus poderes para salvar a si mesma e a seus amigos, podendo assim ser rastreada por seu maior inimigo? Quando a Justiça chama, a magia precisa entrar em jogo.

Análise Crítica

Livros infantojuvenis são uma boa opção para quem procura por uma leitura agradável e rápida. Explorar ambientes mágicos é sempre muito divertido, mas o maior ponto positivo dessa obra é seu subgênero e suas particularidades.

Falamos aqui de uma obra que parece uma aventura policial: acompanhamos as personagens e a cada novo capítulo nos é apresentado um pouco mais do background de Jade Crow. Annie Bellet surpreende nesse aspecto uma vez que ela nos conta apenas o suficiente para nos despertar a atenção e nos preparar para os próximos volumes, mas não entrega pontos a mais ou perde o fim da narrativa enquanto explora o passado da protagonista.

A protagonista é outro ponto positivo. Muitos novos leitores começam a sua jornada pela literatura através de obras infantojuvenis e o que encontram são meninos em frente de batalhas, vencedores e campeões. Em “A Justiça Chama”, a protagonista é uma mulher, jovem e divertida que tem capacidades além humanas e está disposta em proteger seus amigos. Mas não espere por estereótipos femininos de personagem frágil ou indecisa. Jade Crow sabe do que é capaz e sabe como medir a sua força para alcançar seus objetivos.

A leitura deste livro fluiu uma velocidade muito boa e terminei de lê-lo em dois dias. A diagramação do livro é muito bonita: todos os capítulos começam uma página nova e são sinalizadas com um dado de RPG. O capítulo anterior também tem esse sinal, o que deixa um efeito no livro muito bacana. As páginas são amarelas, a tinta é preta, então você pode esperar por uma leitura bem confortável. Todas essas características mostram mais uma vez o trabalho bem feito com que a Editora Avec cuida de seus projetos.

A tradução de Camila Fernandes está ótima e é impossível não ficar pensando em quais serão as próximas aventuras de Jade Crow a partir de agora.

Contudo, se você não se sente confortável em ler livros que fazem parte de séries e não sabe se quer começar esse, fique tranquilo! A estória de “Justiça Chama – Magia em Jogo Vol. 1” é fechada, com início, meio e fim. Continuar acompanhando Jade e seus amigos dependerá exclusivamente da sua vontade após terminar a leitura.

Nota

 

Garanta o seu exemplar e boa leitura!

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Nome:
A Justiça Chama (Magia em Jogo #1)
Autor: Annie Bellet
Tradução: Camila Fernandes
Edição:
Editora: Avec
Ano: 2018
Páginas: 120
ISBN: 9788554470128
Sinopse: Gamer. Nerd. Feiticeira.
Jade Crow vive uma vida tranquila em sua loja de quadrinhos e jogos em Wylde, Idaho. Depois de vinte e cinco anos fugindo de um feiticeiro poderoso que quer comer seu coração e tomar seus poderes. Cercada por amigos ainda menos humanos do que ela, Jade acredita que está finalmente segura. Contanto que ela não use sua magia!
Quando os poderes escuros ameaçam a vida de seus amigos, aparece um executor transmorfo sexy. Ele é o juiz, o júri e o carrasco de um mundo pouco mundano e acha que Jade é a culpada. Para limpar seu nome, salvar seus amigos e parar o vilão, ela terá que usar seu juízo … e seus poderes de feiticeira.
“A Justiça Chama” é o primeiro livro da série de fantasia urbana best seller do EUA Today. Os leitores que apreciaram “True Blood” provavelmente vão amar esta série.

Kindred: Laços de Sangue – Octavia E. Butler

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“Comecei a escrever sobre poder, porque era algo que eu tinha muito pouco”

Essa declaração de Octavia Butler se encontra logo no início do livro “Kindred: Laços de Sangue” e a editora Morro Branco não poderia ter escolhido melhor afirmação para nos preparar para o que vem a seguir.

Essa obra é grandiosa desde a década de 1970, quando vendeu mais de meio milhão de cópias, sendo apenas o começo do seu (mais que merecido) reconhecimento. Autora de mais de 14 livros, Octavia é a primeira escritora negra a ser considerada como uma das mulheres da ficção científica e venceu os principais prêmios desse gênero como Nebula, Hugo e MacArthur Fellowship, provas de seu inegável talento com as palavras.

Uma viagem ao passado

Uma estória sobre viagem no tempo que não conta como a viagem no tempo acontece. É isso mesmo. Esqueça toda a ideia de que você encontrará uma linha que explique como a viagem no tempo é possível, não é sobre isso que Octavia quer escrever, não é sobre isso que nós precisamos ler.

Kindred” conta a estória de Dana, uma mulher negra de 26 anos que acaba de se mudar para sua nova casa com Kevin, seu esposo. No dia de seu aniversário, Dana está arrumando a estante de livros quando começa a se sentir mal e ao, retomar o controle de seu corpo, se vê à beira de uma floresta, próxima a um rio onde um garotinho está se afogando. Sem pensar duas vezes, Dana corre para a água e salva a vida do garoto. Como resposta, ela se vê diante de um cano de espingarda e antes que possa tomar qualquer atitude se vê novamente em seu apartamento totalmente suja e molhada.

Como isso é possível? O que foi que aconteceu?

Dana e Kevin tentam lidar com o acontecido. Para ela, a experiência foi muito real: ela se transportou para aquela floresta e salvou o menino ruivo. Para ele, ela se locomoveu muito rápido de um ponto da sala a outro e, embora nada faça sentido, apareceu toda suja. A questão é que isso volta a acontecer de novo e de novo….

A cada viagem de Dana as coisas ficam mais claras e, para ela, mais perigosas. Dana é uma mulher negra que involuntarimente viaja no tempo e passa a viver por um período no século XIX em uma fazenda escravista localizada em Maryland. Nesse ambiente totalmente hostil para qualquer pessoa negra onde a escravidão, a violência, a morte e as doenças são comuns, Dana percebe que tem uma missão que se apresenta cada dia mais irrecusável: ela precisa manter Rufus, o garotinho do rio, vivo. Afinal, ela descobre que ele é seu antepassado e, se a história dele não se unir à da escrava Alice, a sua própria existência corre perigo. Todas as chances estão contra Dana, sendo que a sua única alternativa é tentar sobreviver àquele passado para que possa voltar ao futuro. Até quando isso será possível?

Análise Crítica e uma viagem ao presente

Kindred” é diferente de todo tipo de literatura de ficção científica que eu já li. É um daqueles livros marcantes e apaixonantes que você pode até demorar para ter coragem de começar, mas quando começa dificilmente consegue largar. No processo a sua vida muda. O motivo? É uma obra de arte impactante que nos leva a refletir e repensar atitudes e pensamentos, que nos leva ao nosso íntimo; é o tipo de livro que nos transforma e a transformação é necessária.

Em “Kindred”, Octavia nos transporta para um dos cenários mais vergonhosos da história da humanidade: a escravidão. Como pudemos fazer isso? Como? A resposta é mais simples e por isso mais dolorosa do que queremos aceitar. O que nos separa de nossos antepassados que escravizaram e exterminaram tantas pessoas e do antepassado dos negros e negras que conhecemos de serem as vítimas dessa atrocidade, é apenas o ano em que nascemos.

Tal pensamento nos coloca em cheque e nos faz perceber que ainda temos muito o que caminhar enquanto falamos de direitos iguais e reconhecimento de espaço de fala e vivência. O racismo existe e ainda mina as oportunidades e acesso de muitas pessoas e isso é, hoje, inaceitável. Cabe a nós repensarmos nossas ações, desconstruirmos nossos pensamentos quantas vezes forem necessárias e aprender a construir uma sociedade que seja mais justa. Reconhecer nossos privilégios e a nós mesmos como consequência desses atos de atrocidade pode ser o primeiro passo para a mudança.

Quarenta anos após seu lançamento, “Kindred: Laços de Sangue” chegou ao Brasil através de duas edições muito bonitas e cuidadosas da Editora Morro Branco. A edição de luxo traz capa dura, informações sobre a autora e uma proposta de questionário de pontos a serem discutidos após a leitura. Outro ponto positivo dessa edição é o marcador de tecido fixo, além das páginas amareladas que deixa a leitura muito mais confortável, com separações por páginas pretas. A tradução de Carolina Caires Coelho é magnífica. A leitura é muito fluída e vai muito rápido, desde o início da primeira página até a sua finalização. Por fim, a história é fechada, fica as marcas de uma obra tão boa em nossas mãos.

Nota

 

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Nome:
Kindred: Laços de Sangue
Autor: Octavia E. Butler
Tradução: Carolina Caires Coelho
Edição:
Editora: Morro Branco
Ano: 2017
Páginas: 448
ISBN: 9788592795207
Sinopse: Em seu vigésimo sexto aniversário, Dana e seu marido estão de mudança para um novo apartamento. Em meio a pilhas de livros e caixas abertas, ela começa a se sentir tonta e cai de joelhos, nauseada. Então, o mundo se despedaça.
Dana repentinamente se encontra à beira de uma floresta, próxima a um rio. Uma criança está se afogando e ela corre para salvá-la. Mas, assim que arrasta o menino para fora da água, vê-se diante do cano de uma antiga espingarda. Em um piscar de olhos, ela está de volta a seu novo apartamento, completamente encharcada. É a experiência mais aterrorizante de sua vida… até acontecer de novo. E de novo.
Quanto mais tempo passa no século XIX, numa Maryland pré-Guerra Civil – um lugar perigoso para uma mulher negra –, mais consciente Dana fica de que sua vida pode acabar antes mesmo de ter começado.
“Impossível terminar de ler Kindred sem se sentir mudado. É uma obra de arte dilaceradora, com muito a dizer sobre o amor, o ódio, a escravidão e os dilemas raciais, ontem e hoje” – Los Angeles Herald-Examiner.

Em Nome da Paz

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“INTERIJENTSU SHIKIBETSU! O PRODUTO QUE LHE PROPORCIONARÁ A PAZ DE BUDA!”

 

O SINAL TOCA E MEUS ALUNOS deixam a sala de aula, e eu mais uma vez estou afogado no silêncio do intervalo. Sento-me e tomo um gole de café para em seguida me levantar. Suspiro ao notar o quadro. Nossas regras são de limpá-lo antes de sair. Nós, professores, odiamos temos de fazer um o trabalho do outro. Não apenas pela diretriz, mas também por questão de educação, devemos limpar a lousa antes seguir para próxima aula.

Hoje faço a coisa certa e não esqueço de apagar a lousa. Não preciso me estressar e conversar com o Doutor Ricardo novamente; a senhorita Amélia não irá me dirigir uma palavra sequer; o Diretor não virá com seus panos-quentes. Não há nada sobre meu birô; espero cada aluno sair e arrumo todas as mesas e cadeiras; desligo o ar-condicionado. O que eles têm para falar dessa vez?

Com o semblante curioso de sempre, Pedro surge na porta. Ele passara toda aula em silêncio. “Nenhuma dúvida?”, eu perguntara à classe. Nenhuma, respondeu o silêncio. Não fora necessariamente mentira, e sim ocultação da verdade. Numa sociedade onde a paz vem em primeiro lugar, entendo: nem todas as verdades devem ser ditas.

“Pode me dar licença, Professor?”

“Sim, Pedro. Feche a porta, por favor”, regras são regras. “Temos dez minutos. Qual é a dúvida da vez?”

“Coisa rápida”, sempre é, Pedro, penso. “Então haviam guerras antes do Primeiro Ciclo?”

“Sim, exatamente…”

“E alcançamos a paz há trinta e três ciclos… Isso quer dizer que meus avós presenciaram os Conflitos?”

“Talvez… Muitos jovens da época presenciaram. E foram eles, como eu disse na aula, que moveram a Revolução…”

“Os avós do senhor participaram dos Conflitos?”

Com as mãos trêmulas, respiro fundo. Aquelas palavras evocam uma série de memórias, das quais eu não faço questão de recordar. Porém, apesar do meu desejo de expulsá-lo dali a pontapés, as Regras deixam claro: todas as perguntas feitas a um Professor devem ser respondidas. Pedro sabe bem disso; por isso pergunta. Sua educação espanca minha paciência.

“Sabe o que é um órfão, Pedro?” Não houvera um único dia, nos últimos meses, sem que uma das regras fosse quebrada.

“Sim, sei sim, Professor.”

“Pois deixarei claro: eu sou órfão.”

Os olhos dele buscam um falso consolo no chão.

“Espere. Não fique tímido. Você queria saber, não é?” (Alguma voz no fundo da minha mente pede calma.) “Não tive pais, nem avós, nem irmãos. Nada como uma família. Passei minha juventude inteira como um Acolhido.” (É o SensaTech 1.6.) “Sabe como é ser um Acolhido?”

Sua língua está pregada na boca; no entanto, não fico surpreso; as crianças são assim.

“Ser Acolhido é servir ao governo”, percebo meu tom de chacota. “Afinal, se você não tem pais nem dinheiro, e tem de ser sustentado pelo sistema, é o mínimo que se espera, não é?”

O silêncio faz-se por completo e dessa vez eu não tenho o canto do ar-condicionado como trilha sonora. O vírus da dúvida é removido da minha cabeça. Relembrar sempre tem esse efeito.

“NÃO É, PEDRO?”

Minha voz se sobressai ao sinal anunciando o próximo horário. A conversa me impede de perceber a pontualidade da porra da senhorita Amélia, na porta esperando ansiosamente por sua aula. Ou para me ver infringir mais uma regra. Ela adentra; eu grito com Pedro; ele desaba em lágrimas; ela desata em gritos de protesto; meus olhos sem expressão encaram os dela.

“EU SÓ FIZ UMA PERGUNTA! EU SÓ FIZ UMA PERGUNTA! TIA AMÉLIA, TIRE ESSE MONSTRO DAQUI!”

Moleque-mimado-filho-de-uma-puta, planejou tudo direitinho. Tinha acabado de retomar o juízo e outra vez estava pronto para perdê-lo… mas nenhuma Regra quebrada ainda. Minha paciência se desfaz tal qual a sensatez que deveria ter sido suprida pelo SensaTech 1.6.

(Produtos baratos de merda, nunca funcionam!)

“Professor”, a voz da senhorita Amélia zune puxando dados do meu cérebro; “está infringindo Regras… como de costume. Acompanhe-me até a Diretoria, por favor.”

“Como é?” Fito seus olhos profundos, minhas mãos tremem.

Mantenha a calma, mantenha a calma, mantenha a calma… O SensaTech 1.6 finalmente funciona… tarde demais.

“Me acompanhe até a Diretoria, professor…”, repete ela, pausadamente. Minha expressão a faz recuar.

“O que vejo é o seguinte: Pedro ser mimado pela senhorita, senhorita Amélia. E perdoe-me, mas quem está infringindo Regras aqui é a senhorita!” Enfatizo cada palavra. Entre os alunos assistindo tudo da porta da sala, o silêncio respira ofegante. “E você, senhorzinho Pedro, sabe o que as Regras determinam: nada de histeria. Portanto, eu mesmo o levarei ao acompanhamento psicológico.”

O primeiro passo para contar uma boa mentira: acreditar nela. Mentir é contra as Regras, mas eu quebrei uma na segunda-feira; quebrar outra não fará mal. Carregadas de confiança, minhas palavras me devolvem a razão. As pessoas novamente me veem lúcido. A verdade é: fico lúcido apenas por uns breves instantes; agora, outra vez alienado, finjo estar tudo bem.

O Diretor surge à porta (acompanhado de dois integrantes da Força); suas roupas brancas tentam impor uma falsa superioridade.

“Ora, ora, ora… É melhor manter a calma, não, Professor?”, diz, abrindo os braços. “Vocês!”, dirigia-se aos alunos. “Sabem que devem seguir às cabines de oblívio. A aula da senhorita Amélia acaba de ser cancelada.”

“Diretor, o senhor está enganado. O estresse aqui parte apenas da senhorita Amélia. Estou no controle da situação!”

“Ora, não me tome como idiota. Assisti toda a discussão pelas câmeras, Professor. E, mesmo que não tivesse assistido, seu precedente de estresses nos últimos três meses está me preocupando. O mais suspeito de desordem seria você.”

“Eu não causei desordem! Foi esse moleque!” Meu tapa acertou a cabeça do mimoso ator de um metro de altura. Suas lágrimas escorriam; quando elas acabassem, iria fazer escorrer sangue…

“Senhorita Amélia, pode acompanhar Pedro à cabine de oblívio, por favor?”

“Sem dúvidas, Diretor.”

“Obrigado, muito obrigado, senhorita Amélia.”

Ela sai pela porta abraçando o menino, nenhum deles olha para trás. É como se eu protagonizasse o Mito do Mendigo: invisível perante a sociedade. Talvez mendigos não fossem só mitos; talvez algumas pessoas se tornassem invisíveis.

“Professor, terá de me acompanhar até o consultório do Dr. Ricardo outra vez. Sabe o que as Regras dizem sobre isso, não?”

“Sei muito bem.”

“Ora, como sempre, presunçoso…”

Engulo minhas próprias palavras, quando as doses de hormônios do SensaTech 1.6 tentam controlar meu bom-senso; isso, porém, não muda o passado.

“Mas eu lhe digo, assim mesmo: se um cidadão quebra as diretrizes do Código de Regras de forma periódica, deve ser enviado para tratamento psicológico na Clínica, pois isso indica um distúrbio.”

Aquela era última semana do mês, um dos últimos dias. Não notei quantas vezes infringi as Regras, fui descuidado. O suor escorre por meu pescoço na vã tentativa de me acalmar. Inspiro, expiro, inspiro, expiro. Minha dor de cabeça decreta o fim da conversa. É o SensaTech 1.6 tentando manter minha sensatez. Como num monitor, quando a energia acaba, a escuridão vagarosamente toma minha mente. O dispositivo administra doses de calmantes direto na corrente sanguínea.

“Mas sabe, querido Diretor, quero que as Regras vão se…”

Um segundo e tempo se desfaz, tal qual minha consciência.

 

* * *

 

Acordar de braços e pernas afivelados me desespera. As doses de Clorpromazina do meu regulador de bom-senso parecem ineficazes. Ela está me olhando, e suas roupas brancas, como tudo ao redor, me dão tontura. Há mais dois. Um deles tem a pele escura; foco nela para manter a consciência.

“Onde estou?”, pergunto e olho nos olhos negros dele.

“Recebendo tratamento adequado, senhor. Não se preocupe.”

“Tratamento?” O pulsar dos meus batimentos acelerados são inibidos pela latejante dor no córtex.

“Não se preocupe. O Doutor fez alguns exames. Logo ele explicará tudo ao senhor.” Seu sorriso branco-artificial me dá náuseas. “A Clínica vai te disponibilizar o melhor serviço, graças ao plano de saúde integral dos professores.”

“O quê?” Minha cabeça pulsa dor. “Eu disse que não podia vir para Clínica…”, quero gritar, chamar atenção, porém toda aquela dor drena minhas forças. “Me tirem da…” e a voz suicida se enforca em minha garganta.

No crachá leio: Dra. Fernanda Hernandez. Ela se aproxima com uma seringa entrededos; a agulha despeja alguns mililitros no meu soro. Daqui a pouco não enxergarei nada, penso. Estou enganado. A substância dilata minhas pupilas e lentamente a dor escorre por meus ouvidos, até sumir.

“Tudo bem agora?”, Dra. Fernanda pergunta instantes depois.

Nada bem, me sinto grogue. Minto, ou então ficarei aqui por mais tempo.

“Sim, tudo bem, doutora.” Procuro onde focar a visão, as coisas parecem distantes. Meus pensamentos orbitam uma massa confusa e doída.

O enfermeiro se aproxima e checa minha pressão (sinto cada veia arder); o monitor de sinais parece ter defeito, as linhas subitamente riscam o monitor (tão latejante, quase desisto), em seguida, repetem um padrão nulo.

Isso significa: estou morto!

“Tudo bem?”, pergunta Dra. Fernanda. “Removi os aparelhos, já que está bem. Bernardo e Túlio o ajudarão com a cadeira de rodas.”

“Cadeira de rodas?”, é quando noto não sentir as pernas. Quando tento mexê-las, não obedecem. “O que fizeram com minhas pernas…?!”, meu tom começa alto e baixa até quase silenciar no fim da frase.

“Estão temporariamente sedadas. Mas não se preocupe; o efeito passará em menos de meia hora.” Não está tudo bem! “Levaremos o senhor ao Dr. Ricardo, que explicará tudo. Depois, os meninos te levam para o Chalé.”

“Chalé?” As palavras soam como a estranha sensação de se perceber respirando, previsível apesar de incômoda.

“Exatamente. É onde o senhor se hospedará nos meses de tratamento…”

Me colocam na cadeira com um cuidado simulado.

Tento falar; minha voz some outra vez. Meus braços não respondem aos comandos. Os enfermeiros empurram minha cadeira, enquanto tento manter o equilíbrio e o frágil fio de consciência.

Após deixarmos o leito, seguimos por um corredor; o cheiro dos hospitais me lembra a presença constante da morte. Através das portas transparentes consigo distinguir pacientes ficando para trás. Aproximo-me do fim do corredor e convergimos numa porta opaca, diferente da dos leitos. Uma placa de metal fixada na altura dos olhos (se eu estivesse de pé) indica: Dr. Cunha.

Normalmente, visitar a Clínica é incomum a professores. Contudo, nos últimos meses, tornara-se comum para mim. Ameaças me rondavam há semanas. Por isso atualizara meu ultrapassado Social Prudence System pelo SensaTech 1.6. Afinal, desde o fim de setembro eu precisava manter o que me restava de sanidade. Depois da separação as coisas não andam fáceis.

Túlio bate e em seguida abre a porta, Bernardo empurra a cadeira sala adentro. Atrás da mesa, o Dr. Ricardo me espera. Seu semblante diz o suficiente: acontecerá comigo se eu não for forte.

 

“SOCIAL PRUDENCE SYSTEM! UMA DOSE DE PRUDÊNCIA E ENFRENTAR OS PROBLEMAS COTIDIANOS SERÁ EASY!”

 

“EM NOME DA PAZ.” Os enfermeiros deixam-nos a sós. “Bom revê-lo, Professor.”

Conheço os discursos. O meu e o seu. As palavras dele podem me atirar no pior lugar da nossa sociedade, as minhas podem me libertar novamente; é um xadrez verbal. O mais articulado convencerá o Diretor, que escuta tudo remotamente. Neste momento percebo quão valioso é convencer meus alunos a permanecer em silêncio. Porém, diariamente o Dr. Ricardo dá notícias de morte, doenças terminais, envios ao tratamento. Sua frieza, por si só, é suficiente na arte do convencimento. Quantas vezes ele quase me convenceu…

“Professor, o senhor está perdendo o controle”, me diz. Já disse antes. Várias vezes.

“Estou mesmo.” Não nego como sempre faço no início. Não sei por que mudar a jogada.

“Tratamos cerca de trinta e oito alunos. Os traumas podem ser irreversíveis em pelo menos doze, sendo que dois foram enviados para a Clínica. Tem noção do impacto disso, Professor?” Seu lance não se apoia em prudência nenhuma; o Doutor começa com um xeque.

“Perdoe-me, Dr. Ricardo, mas creio que isso não tenha ligação com as minhas palavras. A senhorita Amélia. Ela, sim, provocou a situação toda, enquanto eu colocava um dos meus alunos em seu lugar.”

Os olhos do Dr. Ricardo perdem-se em mim, depois focam no monitor reproduzindo o vídeo das câmeras de segurança.

“NÃO É, PEDRO?”, cospe o alto-falante para me dedurar.

“O que exatamente Pedro fez de errado, Professor?” Seu semblante dramatúrgico falsamente expressa preocupação.

“Ele tinha dúvidas quanto ao Conflito. Queria saber demais… Sua tendência, como o senhor deve ter percebido ao assistir, indicava dúvidas. E me diga, Dr. Ricardo, com seu conhecimento tão amplo do funcionamento da mente humana, me diga: o que as dúvidas suscitam?”

Com meu cavalo derrubo seu bispo. O olhar marejado me fita; os lábios balbuciam. Não é a resposta para minha pergunta. Eu mesmo terei de dá-la, apesar do medo de dizer.

“As dúvidas suscitam a Revolução!”

Ele mexe numa gaveta; tira uma seringa dela. O Doutor está inquieto na cadeira. É pra mim? A mesa nos separando parece estreitar. Não. Apenas brinca com a agulha, esquecendo-se de mim.

“Começa com uma pergunta aqui e ali. Primeiro o professor, os tios, os pais e os avós. E os avós sabem bem o que aconteceu… Ao menos os que ainda são vivos e conseguem falar…”

Percebo como a força das minhas palavras contraria os ideais do Dr. Ricardo; ainda que atingido por elas, ele compreende a ideologia na qual se sustentam.

“Professor, algo nos eventos de trinta e três ciclos atrás o incomoda?” Ele desvia o olhar e espera por minha resposta. “Não acredita na Paz que construímos?”

“Não coloque palavras na minha boca, doutor.”

“Sabe quantos homens se foram em nome da Paz?”

“Não entendo aonde quer chegar. Só falei a verdade.” Mantenho algum tom de ingenuidade nas palavras; no entanto, soa um tanto irônico.

“O Professor”, expira, ao se concentrar na seringa, “por acaso, está diminuindo o esforço das pessoas que deram a vida para construir essa sociedade?”

“Eu não falei isso.”

“É, Professor, não disse. Mas… me responda: ultimamente o senhor não está em seu estado pleno, concorda?”

Talvez o SensaTech ainda tenha efeito, pois sinto minha pulsação diminuir e a clareza ser devolvida aos meus pensamentos. E o silêncio conta os segundos.

“Nós dois sabemos sua resposta: desde Carolina as coisas não andam bem.”

Não posso demonstrar fraqueza nem irritação. O juízo social baseado no Código tem razão, não eu. Disso eu sei; contudo, talvez não acredite.

“Convenceu o Diretor a não passar pelo Oblívio, mas vejo que agora…”

“Tenho ciência dos acontecimentos, Dr. Ricardo. Esquecer ou não: é uma escolha.”

“Sim, é uma escolha, mas apenas se tiver plenitude para escolher. Seu Índice Social vai de encontro a essa ideia…”

“Você enxerga esse descontrole? Porque eu não. Só consigo ver meu esforço como Professor. Devo me manter firme; do contrário, não há Paz na classe.”

“Professor, não é nada pessoal… mas não convence nem a si mesmo. Se isso é verdade, qual justificativa têm suas últimas visitas? Não responda. A situação é: eu quero o seu bem, quero que supere o fracasso do seu relacionamento. Pode escolher entre o Oblívio ou Clínica.”

“Não vou escolher nada!”

“Só queremos o melhor para o senhor, Professor.” Sua voz soa pacífica; sinto as veias pulsarem na minha têmpora. “Carolina escolheu o tratamento, reconhecendo seu descontrole. O senhor pode fazer o mesmo. Ajudará a superar.”

“Carolina só estava magoada! Nada daquilo deveria acontecer.” Minhas palavras são pequenas pílulas de desgosto.

“Já parou para pensar que talvez fosse o melhor para os dois?” Sua pergunta é corrosiva; minhas entranhas ardem.

“Não, não parei. Todos os relacionamentos têm bons e maus momentos…” Ele brinca comigo, como com a seringa. Contenho meus punhos apertados ao fitar seu pescoço.

“Se admitir sua insensatez, poderá ver Carolina novamente.” A sedução de vislumbrar esse momento não deveria mexer comigo.

“Não. A mulher que amei não é aquela mulher.” Carolina nunca mudaria.

O telefone toca. O Dr. Ricardo suspira; dessa vez não tem prazo, apenas ordens. O sorriso emoldurando seus lábios quase me faz levantar da cadeira e socar sua cara. Isso não adiantaria.

“Sim, sim, Diretor, eu entendo… Perfeito; os enfermeiros irão levá-lo. Não se preocupe com seu estado… O professor receberá o melhor tratamento possível!” A seringa está desguardada sobre a mesa. Meus olhos fitam sua garganta… Não tem nada para protegê-lo. “Sem dúvidas, Diretor. Ele ficará satisfeito com o resultado. Posso falar com Carolina, para visitá-lo na terapia…” Meus punhos cerrados tremem. “Talvez, talvez… O Professor será internado, como eu disse, então o tratamento poderá durar alguns bons ciclos…”

Não sinto minhas pernas, e isso parece fortalecer meus braços. De repente a pulsação é o combustível, não só do corpo como da alma. Pensamentos vislumbrados comprovam: o Dr. Ricardo tem razão. A ausência de sanidade possuiu, e não a mim: a ele mesmo. Tentam me afastar de todos, me prender, reprimir minhas dores… Malditos!

O Doutor desliga o telefone; no semblante traz a maligna satisfação de exercer seu trabalho. E penso se ele sorriu assim quando enviou Carolina ao Chalé… Respira fundo, ele e os segundos. Estamos paralisados.

“Tenho uma boa e uma má notícia, Professor”, e não enxergo sinceridade alguma nas suas palavras. “Qual quer receber primeiro?”

SensaTech 1.6, Social Prudence System, Judgement Civil Application, Interijentsu Shikibetsu… Nenhum implante manteria minha Paz; afinal, ela segue por água abaixo.

“Também tenho notícias, doutor… Boas e más. Comece com a boa e depois a má, farei o mesmo.”

“Como é?”, seus olhos buscam algo nos meus. Contudo, não há nada, não encontra nada neles. Volto-me à seringa.

“Por favor, fale. Me explicarei logo em seguida, doutor.”

“Tudo bem, sem problemas. Bem, a boa é que não precisará ser internado no Chalé. Estamos desenvolvendo um novo tratamento; talvez possamos ajudá-lo se aceitar ser cobaia do projeto. A má: se não aceitar o novo tratamento, possivelmente não encontrará Carolina no Chalé.”

“O que quer dizer com isso?” Talvez eu sempre soubesse.

“Quero dizer que Carolina não está mais internada, Professor.”

Ninguém nunca volta do tratamento. Todos sabem. Ninguém é burro para contestar… Seria falta de bom senso; assim, teriam o mesmo caminho dos outros: primeiro a Clínica e depois o Chalé. E por fim a…

“Ela morreu?” Mais uma prova: a sanidade se diluiu num mar de dúvidas. Os questionamentos são sintomas; minha doença é a mesma de um terço da nossa sociedade.

“Morte é uma palavra um tanto pesada. Mas…”

“Ela morreu, Doutor? Responda!”, minha voz se sobressai; ele recua.

“Não, professor. Não. Mas o que isso vai mudar?” Ele se levanta e abre os braços. “O senhor bem sabe: uma vez no tratamento…”, caminha a mim; todo meu corpo treme. “… ninguém mais…” É quase um sussurro abraçando meu ouvido.

Por um instante o tempo para. Minha vida são cenas desconexas diante dos meus olhos. Esse clichê geralmente faz referência à morte: toda sua vida num segundo… No entanto, eu sempre soube: a vida passar diante dos seus olhos não tem a ver com a morte, e sim com a liberdade.

Naquele instante, os nós se desatam, as correntes se partem, as amarras não existem mais.

Sinto o calor da sua voz sussurrar pescoço abaixo. As palavras ecoam crânio adentro: “ninguém jamais volta…” Aconteceu com Carolina, aconteceu com meus pais… Se um dia amei uma pessoa, aconteceu com ela. O pulsar das minhas veias repele a virosa sanidade que me resta. Sei o que devo fazer. São comandos expressos da loucura.

Ouço o sibilar assassino de uma voz feminina: “ACABE COM ELE!”

Não tenho certeza se é o SensaTech 1.6 ainda não removido ou a minha própria consciência armada da sanidade restante. O mais sensato a se fazer nesse momento é…

 

* * *

 

Minha mão afoga o grito prestes a lhe fugir boca afora. Com papel suficiente para fazer um laudo sobre mim descendo garganta abaixo, o Dr. Ricardo não consegue gritar.

“Qual o gosto da merda dos seus relatórios, Doutor?!”

Estamos no chão; seu pescoço sob meus dedos, meu corpo sobre seu tronco, seus arrepios sob minhas tremedeiras. A escrivaninha tombou. Nossos olhos encontram-se, os dele esbugalhados, os meus avermelhados. Os dele buscam algo pelo chão. Somos um só naquele momento. Um pecado.

Puxo-o pela garganta para em seguida atirá-lo contra o piso, e deixar o rastro de sangue colorir o branco ambiente estéril. Nós dois, em tais circunstâncias, soamos destoantes de todo mundo. O último homicídio, relatam, aconteceu há doze ciclos. Estou para mudar isso agora.

O Doutor tenta balbuciar, no entanto minhas mãos enforcam suas palavras. As veias saltam dos meus braços infectando o pescoço do Doutor; sinto-as, as minhas e as dele, sob as palmas das minhas mãos. Lembro de Carolina, nos últimos momentos: se comparada a mim, ela tinha sanidade para liderar nosso povo inteiro. E percebo: não tenho nenhum laço com essa vida, não há nada entre mim e a loucura.

Para minha surpresa, o Dr. Ricardo me chuta. Tombo de encontro ao chão e o vejo levantar catando migalhas. Apressado, abre a porta que dá para o corredor e chama por ajuda. Ele está estático do lado de fora; procura-me por precaução. O pontapé no saco me tirou o juízo; ao tentar me levantar, a pulsante ardência se mistura a uma dose de adrenalina se espalhando por todo o meu corpo. Com esforço e amparo da parede, estou de pé. Ao me ver, o Doutor se lança corredor afora, me deixando sozinho. No meio do caminho, ele topa com Túlio e Bernardo; a história mudou. Eles se voltam a mim; juntos, avançam para conter o potencial homicida. Os enfermeiros agora estendem as mãos enluvadas em látex e o Doutor traz a seringa.

Fecho a porta sem pensar. A chave na fechadura ajuda, entretanto não será suficiente; agora empurro a mesa do Dr. Ricardo contra a porta. Olho ao redor, preciso de mais peso, mais tempo. É quando me encolho entre a parede e a estante, apoio as pernas e uso toda minha força. Fecho os olhos e a força torna-se desnecessária. O grito avisa: tombei o móvel em cima da mesa.

Admito o sorriso delinquente estampado na minha face.

Escuto a primeira pancada.

“Ei! Professor? Saia já daí!”

A voz dele me lembra das Leis. Mentalmente folheio as páginas do Código… Gotas de suor passeiam por minhas costas: tentativa de assassinato é penalizada. Não há mais tratamento para mim, acabou…

“Professor, abra essa porta para que possamos conversar…”

Preciso de mais peso, mais tempo. Me enfio na fresta entre a parede e o armário, uso a parede como apoio para meus pés e estico meu corpo de forma a empurrar o móvel até o derrubar sobre a porta. Minha segurança está garantida; o essencial é pensar em algo melhor. Com o peso daqueles móveis, irão demorar para abrir a porta.

“O que… O que está fazendo… O que está fazendo, professor?!”

“Conheço seus métodos, Doutor… Estive de olho na porra da sua seringa! Não vão me pegar! Não vão me pegar, seus filhos da puta!”

“A seringa é falsa; uso-a para conter possíveis pacientes impulsivos. Professor, ninguém lhe fará mal; abra essa porta e levaremos o senhor para tratamento. Tudo ficará bem. O senhor só está doente.”

“E minha esposa, Doutor? Disse isso a ela?”

Nossas gargantas normalmente são salvaguardadas pelos implantes de sanidade… Porém, meu SensaTech 1.6 foi tão eficiente quanto tomar sopa de garfo.

E se o Doutor tem algum implante na cabeça? Não, não tem porra nenhuma. Isso é coisa para a massa de manobra, como nós. Afinal, precisamos ser mantidos sobre controle. O Dr. Ricardo Cunha, reconhecido acadêmico, respeitado por tantas universidades, Presidente da Associação de Paz e da Clínica de Tratamentos Psicossociais… Ele não tem merda nenhuma ligada no sistema nervoso; tem dinheiro suficiente para evitar isso. Quem garante que ele não fez parte da criação disso tudo?

“Sua esposa está viva, Professor…”

“Não! Ela morreu! Você mesmo disse!”

“Eu disse?”

Não, não disse. Aquilo me faz estremecer.

“Abra a porta e te explico o que aconteceu, Professor…” Eles não batem na porta, nem parecem tentar empurrá-la. O expediente dos enfermeiros deve ter acabado, o ambiente está calmo.

“NÃO!”, apenas o ambiente. Implante e nervos fritam na minha cabeça.

“Se abrir, prometo explicar o que aconteceu com Carolina, Professor.” Sua voz pacífica parece sincera; como todos nessa sociedade, o Doutor tem um talento nato para dramaturgia.

“SEU-MENTIROSO-FILHO-DE-UMA-PUTA!”

“Viu o que eu disse? Precisa se tratar, Professor! Provavelmente seu implante apresenta defeito. Um novo implante, aliado com algum tempo de tratamento, resolverá isso. Escute bem: já lidei com casos semelhantes ao seu antes e…”

“Não tenho nenhum PROBLEMA, Doutor! NENHUM PROBLEMA! VOCÊ tem problema! ELES têm problemas! Essa SOCIEDADE tem! EU ESTOU BEM!”

“Está bem? Não ouve as barbaridades que diz, não vê as coisas que faz, Professor? Tentou me matar, Professor… Tentou me matar! Está fora de si, não adianta negar.” Não sou nenhum idiota, ele mudou seu discurso. De ordens a pedidos educados. Não vão me manipular, não mais… Já chega!

“É o que merece pelo que fez com minha esposa!”

“Não fiz nada com Carolina, Professor… Quer saber? A culpa de tudo é SUA! Por isso surtou! Você cansou Carolina, cansou a mente dela com suas loucuras… POR ISSO ELA FICOU LOUCA!”

“MENTIRA!” O calor me invadindo não pediu permissão. “MENTIROSO DESGRAÇADO! Carolina cansou do Sistema! Cansou das imposições dessa merda de sociedade! Acha que sou idiota para cair no seu papinho?”

“Ela cansou das suas imposições, Professor, das suas loucuras! Nossa sociedade nada tem com isso!”

“Não? Assim como ela, estou sendo recriminado por me expressar!”

“Corrija-se, Professor… Sendo recriminado por perder o bom senso e incitar desordem na comunidade.”

“Enfie a desordem no cu da sua comunidade! Não sabe nada do que aconteceu, Doutor! NADA!”

“Eu sei, eu sei muito bem… Seus pais morreram, mas isso não é nossa culpa!”

“MEUS PAIS FORAM ASSASSINADOS NA LUTA CONTRA VOCÊS!”

“Baseado em quê faz tais conclusões?” Suas palavras balançam ao sopro da dúvida.

“Tenho acesso aos arquivos, Doutor. Com meu sobrenome consegui rastrear registros de todos os meus parentes… Conheci a verdadeira história de como toda essa merda chegou ao poder! De como vocês acabaram com todos que foram contra!”

Meus batimentos acelerados são a trilha sonora para o suspense me aguardando. Ouço um sussurro e o nada reverbera a seguir. Em silêncio, eles esperam por mim.

“VOCÊS ESTÃO AÍ?” Meu grito parece não atravessar a porta. Só a ausência deles justifica. “Alguém me responda! RESPONDAM!”

Ninguém. Nenhuma voz. Nenhum som. Sinto o vazio da minha voz silenciada gritando desesperadamente. Se não te ouvem, você não significa nada, não existe. É o que temo…

Segundos, segundos e segundos… É como se o mundo fosse durar apenas mais um deles… Minutos e minutos… Devem estar tramando algo neles… Hora… Já faz uma e percebo talvez estar enclausurado naquela sala. Afinal, poderiam simplesmente esperar eu abrir ou morrer de fome. Não muda nada para eles.

E quando o fio de esperança que me resta de desgarra, ouço uma nova voz… O problema é: não é uma voz tão nova, na verdade.

“Amor…”

 

“JUDGEMENT CIVIL APPLICATION TE TRANSPORTA PARA A SOMBRA DA TORRE EIFFEL! EXPERIMENTE OS MELHORES CALMANTES FRANCESES!”

 

DE MÃOS DADAS À VOZ está o ruído da ligação. Não acredito… Faz meses desde a última vez que ouvi Carolina. No entanto, ali estava ela, e eu do outro lado.

“Carol?” É um devaneio, uma ficção, concluo. Não é possível.

“Amor, sou eu, meu amor. Carolina” Não é um sonho: é um truque!

“Seus-merdas-filhos-da-puta! Acham que vou cair nisso? Carolina jamais falaria assim! Nós brigamos, ela não me chamaria de amor… NUNCA!”

Do outro lado silêncio… Não! Espere. Consigo ouvir cochichos, baixos demais para discernir qualquer coisa.

“EI! Não me deixem sozinho outra vez!”

“Tudo bem, Vitor… Está tudo bem, agora… Eu preciso te convencer a sair daí. É o mínimo que posso fazer por Ricardo…”

“O quê?”

“Fique calmo. Abra a porta ou terão de chamar a Força.”

“Acha que sou idiota, Doutor?! É um simulador de voz? Digitalizou a voz da minha esposa ou alguma merda dessas?”

“Por favor, Vitor. Não dificulte as coisas. Eu não tenho o dia todo, nem o Ricardo. Você perdeu o controle, tem que abrir essa porta e se internar, como eu fiz… É o único jeito.”

“VOCÊ ESTÁ MORTA! VOCÊ NÃO ESTÁ AQUI!”

“Vitor, pela Paz, não dificulte as coisas! Se não abrir essa porta logo, Ricardo vai ter que chamar a Força. Ninguém quer mais desordem. Abra a porta e tudo vai ficar bem…”

“Por que eu deveria ouvir você? Você não é real! Você morreu… Não vão me enganar; não vou ter o mesmo destino que Carolina!”

“Eu não morri, Vitor. Ninguém morre quando se interna na Clínica.”

“Prove que é você ou não responderei mais!”

“Provar?”

“Isso mesmo… Prove que você é mesmo Carolina. Prove!”

“Você e sua necessidade de coisas concretas… Por isso não demos certo.”

“Prove!”

“Não preciso provar nada, Vitor. Se você não abrir, eles irão. Independentemente do que aconteça, estou tentando te ajudar, porque sei como é estar nesse estado… Por isso estou aqui.”

“Aqui?!” Não é piada, apenas parece.

“Não posso simplesmente contar.” Sua voz soa tão viva…

“Claro que não pode, você nem existe…”

“Esse é seu problema! Sempre coloca sua opinião como verdade absoluta. EU ESTOU VIVA, VITOR! ACEITE!”

Meu silêncio reconhece: não é uma simulação de voz. É mais… Devem ter extraído suas memórias para uma inteligência artificial… Não sou capaz de conceber tais barbáries.

“Quer saber a verdade, Vitor?” Eu ouvira a mesma pergunta um dia antes de assinar o papel e a Força levá-la.

“Verdade…” Minha melhor arma é desdenhar. Afinal, não há nada a fazer.

“Quando assinou os termos e a Força me trouxe, prometi jamais falar com você, ou te matar, se tivesse uma chance… Olhe meu estado: queria te matar! Estava no fundo do poço.” O peso da respiração sufoca suas palavras por instantes. “Antes do Chalé, assim como todos, passei pelo Dr. Ricardo. Presenciando meu estado deplorável, o Doutor decidiu me ajudar. Conversamos por horas e ele me mostrou as gravações das nossas discussões. Aquela não podia ser eu…” Um suspiro meu. Um dela. Um silêncio perfurando nossos ouvidos. “O Dr. Ricardo me fez duas propostas. A primeira: eu podia escolher o tratamento, depois que estivesse melhor, estaria livre. A segunda: podia sofrer oblívio e nunca mais ser eu mesma novamente; simplesmente recomeçar trabalhando voluntariamente para nossa sociedade. Escolhi me tratar, e não foi fácil… Mas não queria esquecer quem eu era. Me internaram no Chalé e o Dr. Ricardo me visitava periodicamente. Com o tempo, as coisas melhoram. Comecei aceitando minha loucura; afinal, o que passa na cabeça de alguém que ignora o que construímos? Temos a Paz, muito amor e união… Foram trinta e três ciclos até aqui. Agora, finalmente podemos viver sem ter medo. Sem medo da violência, das guerras, do mal… É o Paraíso, Vitor. Vivemos no Paraíso…”

“Paraíso…” Só pode ser lavagem cerebral, e deve começar com alguém mergulhando sua cabeça na privada. “Se isso é verdade, por que não me procurou depois de ser liberada?”

“As pessoas mudam! As pessoas mudam, Vitor.” Uma ardência espalha-se por minhas bochechas, meu queixo estremece. Conheço os sintomas. “Eu não te amava mais… eu não te amo mais. Simplesmente fugi daquilo tudo. Mudei minha vida, segui meus sonhos e me esqueci do passado.”

“E agora está melhor? Sozinha na porra desse mundo hipócrita, onde todos vivem suas ficções, onde todos mascaram seu verdadeiro eu? Valeu a pena? É lavagem cerebral, Carolina, é a porra da lavagem cerebral que você falava tanto!”

“Primeiro: EU NÃO ESTOU SOZINHA! Acha que não tenho capacidade pra superar nosso relacionamento e me envolver com outra pessoa? Inclusive estou bem melhor sem você, se quer saber.”

“Outra pessoa?” Não, não, não! “Como você pôde?” Desgraçada! “É isso que chama de ‘amor para toda vida’?”

“O que queria que eu fizesse? Passasse a vida inteira presa a você? Não fode, Vitor, sou jovem demais para isso!”

“Quem é?!” A derrota rasteja até meus pés.

“Não é da sua conta…”

“QUEM É ESSE MERDA?!”

“O tempo está acabando”, escuto o Doutor avisar.

“Não se meta, doutorzinho de merda!”

“Abra a porta, Vitor. Estamos aqui há muito tempo… A Força vai vir e não vai ser divertido. Você pode abrir, se tratar, superar tudo isso e seguir em frente… É só uma fase, um tempo de dúvidas. Mas passa. Você pode superar isso. Perdeu o controle por tudo que houve… Abra, por favor…”

“Me diz quem é e eu abro…”

“Isso não vai mudar nada, Vitor.”

“Diga e prometo abrir depois… Preciso saber.”

“Precisamos que ele saia, Carol… Por favor, diga de uma vez. Cuidarei das consequências, não se preocupe. Mas saiba, Professor, se ela disser e não abrir, a Força entrará e o levarão a…”

“NÃO SE META! Diz logo quem é!”

“É o Ricardo, Vitor. É o Dr. Ricardo.”

“O QUÊ? Eu devo ter entendido errado… Não é possível que me trocou por esse filho-da-puta!”

“Ele me ajuda muito. Diferente de você, que passou a vida toda dificultando tudo, como está fazendo agora… Só abre, você me prometeu.”

“O quê? Eu te ajudei a vida toda, sua ingrata de merda! Estive lá sempre que precisou! Três meses sem mim e você já está dando pra outro?”

“Quem é você pra me julgar, Vitor?”

“SOU O CARA QUE NÃO FODEU COM OUTRA PESSOA TRÊS MESES DEPOIS DA MINHA ESPOSA SER LEVADA!”

“Vou desligar, Ricardo. Desculpa mesmo, mas não dá para conversar com ele… Eu não consigo…”

“Vá à merda! Desligue, tanto faz! É o que aprendeu no Chalé, não é? A esquecer as pessoas!”

“Foda-se o que você pensa!”

“Querida, se acalme por favor. Desligue… Tome suas pílulas, não pode ter uma recaída. Desligue e descanse…”

“Espere!”, não terminei! Ela não pode desligar ainda!

Entretanto, em sintonia com meus descontrolados batimentos, o som avisa: a ligação caiu. Percebo o fundo de verdade nas palavras de Carolina… Não tenho mais controle, estou perdido. Não apenas eu, todo esse mundo está.

Como numa aquarela pintada por lágrimas, um sorriso doentio ilustra meu rosto. Nos meus pensamentos, os versos poéticos ordenam uma ode à mais trágica faceta humana (a loucura, sussurra o SensaTech). Tudo está errado… Eu, Carolina, nossas vidas, nossos sonhos, nosso mundo. Contudo, é um erro único. Portanto, perfeito. Assim se tornando arte. A mais pura forma de arte.

Preciso do terceiro ato dessa peça, o desfecho perfeito para o show… Preciso de um Gran Finale. Preciso encerrar sorrindo para morte.

 

* * *

 

“Professor, o senhor prometeu abrir”, diz o Doutor. “Se não abrir, terei de…”

“Vou abrir”, interrompo-o antes que chegue nesse ponto. “Eu vou abrir.”

“Tudo bem, Professor, está tudo bem…”

Não é mentira, não por um todo.

“Doutor?”

“Sim, Professor?” A educação é uma ótima moeda de troca para a confiança, como o riso.

“Se a Força estiver presente, só prometa que não avançarão sobre mim quando eu sair.” Preciso ter certeza ou meu plano escorre ralo abaixo.

“Nenhuma unidade da Força foi convocada. No momento estamos sozinhos…”

“E os enfermeiros?”

“Sabe que horas são, Professor? As pessoas têm de ir para casa…”

“Por que está aqui, então? Poderia estar fodendo com minha esposa.”

“Ex-esposa. Sou profissional; não posso simplesmente abandonar um paciente no seu estado. Dispensei todos porque sei que se sentiria mais à vontade.” Ele tem razão.

“Esse papo de profissionalismo não convence… O que tem a ganhar, ficando?”

“Acredite se quiser, Professor, mas todos ganhamos se o senhor ganhar…”

“Se me internar vai ser mais fácil foder com minha esposa, né?” A palma da minha mão arde depois de estapear a porta.

“Caso o senhor não se mantenha calmo e abra a porta, terei realmente de convocar a Força… E, como o senhor já presenciou, isso não ajudará em nada.”

A noite envia suas sombras através da janela. Há tempos não acredito em bondade, se é que um dia acreditei.

“A questão é que, como Clínico, Professor, eu nunca acreditei em alguns métodos. Por exemplo: o conceito de medicação sempre me pareceu mais uma distração neurológica do que algo realmente efetivo. Minha área de estudo, a psicologia, adere muito a tratamentos alternativos. Quando tenho de aplicar uma injeção, isso me corrói por dentro. Porém, se é necessário passar um dia com um paciente, fico sorridente a semana inteira. Por isso estou aqui… Por isso quis cuidar eu mesmo do seu caso. Não por Carolina…”

“Não?” Sua mentira me foge entre os dedos, e ao atingir-me é mais convincente.

“Não. Quero garantir sua reintegração social. Esse é meu trabalho.”

“Prove! Prove que quer apenas ‘meu bem’, como diz.”

“Professor, a prova é que ainda não usei de violência, apesar de o senhor a ter usado contra mim. Tenho meus motivos. No fundo, creio que seja um bom sujeito, que está num momento ruim…”

Há um fundo de verdade naquelas palavras. Preferia não passar por aquilo, preferia simplesmente… Preferia esquecer.

“Você pode me fazer esquecer disso tudo?” (Como se uma gota de chuva caísse em um lago…)

“O oblívio não é total. Nunca apaga tudo.” Não sabemos de nada, porém refletimos na ausência de luz. “É como se a ferida se tornasse uma cicatriz…”

“Não tem mesmo jeito para mim” (… minhas esperanças se diluem num incompreendido mar de ignorância.) “Se a ferida não pode sumir, nunca vai deixar de me atormentar, Doutor.” A esperança dentro de mim é deletada, mas a varredura não detecta meu maior anseio…

“Algumas coisas nunca cicatrizam, Professor. Mas aprendemos a lidar com elas assim mesmo.”

Na escuridão as melhores piores ideias florescem. Sua mente pari seu pior lado. Sem motivos para manter a sanidade, sem vislumbre ou expectativas, sem ter pelo que viver ou sonhar, você se agarra a qualquer sentimento. Abraço o meu. De punhos cerrados, eu digo:

“Doutor, vou abrir. Me desculpe.”

Os móveis parecem pesar menos agora… Arrasto um por um; meus pensamentos reverberam no silêncio. Eu preciso disso. Preciso respirar o vazio, experimentar a sabor do nada. Logo ele estará ao alcance das minhas mãos, poucos passos nos separam.

“Professor, tudo bem?” Seu tom é sempre calmo. Se ele tem um implante, é dos bons. Afinal, nunca perde a paciência.

“Sabe, Doutor, talvez o senhor esteja errado, talvez eu não tenha mesmo jeito…”, arrasto a escrivaninha; mais algumas cadeiras e estarei livre. “Acreditei que fosse uma fase, como Carolina disse. Mas… Se me lembro bem… A noção de Paz nunca me agradou…”

“Apenas saia daí e conversamos. Está nervoso agora, Professor, é normal…”

“Sempre estou nervoso, Doutor! Esse é meu problema… Li uma vez que, na antes da Paz, houveram homens que, graças a um problema neurológico, simplesmente não se importavam com o certo e com o errado… Quantas vezes não me peguei pensando no que significa o certo e o errado…” A principal cadeira, a chave, e pronto: liberdade.

“O que separa o certo do errado é a situação. Pensar nisso não atesta que seja um psicopata, Professor.”

“Estava tentando lembrar a nomenclatura…” Não soa tão bem quanto na minha memória. Está frio. “Talvez eu seja… Quem sabe?! Não acho que exista o certo e o errado. É dicotômico demais, doutor…”

“Concordo.” A última cadeira já não está emperrando a maçaneta. “Porém, se o senhor fosse um psicopata, não aceitaria tão facilmente. Geralmente eles…”

Abro a porta após girar a chave; nossos olhares se encontram. Minha boca inundada de saliva… Não restam palavras para aquela conversa, elas se afogaram. Ele cumpriu sua promessa. Sinto a morte sussurrar na altura do pescoço. Está sozinho, as mãos atrás das costas. Lá estamos. O Professor e o Doutor.

Sinto o sangue circulando em minhas veias, os batimentos no ritmo comum. O suor não escorre, não me acalma. Talvez minhas mãos estejam tremendo. Talvez…

“Que bom abriu, Professor!” O Dr. Ricardo abre os braços, ainda segura a seringa, caminha na minha direção.

Meus olhos encontram seu pescoço e sinto o impulso de esganá-lo. Porém, não consigo. Ele me abraça, permanecemos imóveis por alguns segundos. Meus olhos ardem, parecem úmidos. Tudo está calmo agora, tão calmo. Sinto meus batimentos, os dele também. Lágrimas escorrem por meu rosto ilustrando meus sentimentos. Onde foi parar o frio? O Doutor Ricardo me espanta com seu abraço.

Quando minhas mãos supostamente vão ao seu encontro, o mundo gira. Não removeram o SensaTech… O aparelho está aplicando doses de calmante em mim, só pode ser isso. Afasto o Doutor de mim, apenas o suficiente para agarrar sua garganta e apertar até ouvir sua traqueia romper e ele engasgar-se com o próprio sangue.

Mas falta força…

“Nada mal, Professor, nada mal mesmo.” Sua voz é um eco distante na minha cabeça. Eu desencontro seu pescoço. Apoio-me na parede, evitando a queda e buscando uma resposta.

A seringa! Há uma seringa na sua… A seringa… (Deveria ter notado antes.)

Quando percebo estou no chão.

O Dr. Ricardo ri.

(Tudo se torna escuridão.)

 


Matheus Ferreira nasceu em setembro de 1999 em Jundiaí, mas é de família sergipana e cresceu e vive em São Cristóvão. É integrante dos podcasts SobrEscrever (Leitor Cabuloso), Podcast Persona (Agregarium) e Wattcast (todos em hiato, fazer o quê), nos quais costuma falar sobre literatura. Escreve prosa de ficção e está trabalhando no seu primeiro romance. De vez em quando publica artigos, resenhas e contos internet afora.

O erro de “HAL 9000” em 2001: Uma odisseia no espaço | Homenagem aos 50 anos da obra

1

Quando Kubrick concluiu Dr. Fantástico (Dr. Strangelove – 1964), ele decidiu produzir um filme de ficção científica leve, algo que não tomasse o tempo de seus primeiros filmes. Nessa pesquisa, ele acabou lendo o conto O Sentinela de Arthur C. Clarke. Neste conto, Clarke trabalha com o conceito de uma entidade alienígena que acompanha a evolução da humanidade para relatar aos seus criadores o momento exato no qual a humanidade estaria pronta para encontrá-los.

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Kubrick não gostou do conto, mas achou a ideia promissora e passou a desenvolver com Clarke o que seria o roteiro de “2001”: durante dois anos, ambos estudaram Sociologia, Física e Antropologia para poder desenvolver e finalizar o roteiro e o livro (já que Clarke também estava escrevendo o romance simultaneamente).

Kubrick e Clarke no set de 2001: Uma odisseia no espaço (1968)

Em sua estreia, 2001: uma odisseia no espaço causou um alvoroço. Na primeira exibição, cerca de 241 críticos levantaram-se antes do término da sessão. A esposa de Kubrick, a atriz Christiane Kubrick, tentou ligar para o marido para avisá-lo que havia críticas positivas sobre o filme saindo em outras mídias, como por exemplo, o rádio. Como afirma em depoimento para o documentário Stanley Kubrick: a life in pictures, o cineasta estava preso em reuniões com os acionistas da MGM e não sabia que uma parte do público estava adorando seu novo filme.

Acredito que este seja o principal mérito de uma obra como 2001. Não importa quantas vezes você a assista, ainda terá sobre o que discutir. Mas de todas as divergências interpretativas que pude encontrar na obra, livro e filme, a que me chamou mais atenção foram as atitudes tomadas pelo computador HAL 9000 no terceiro ato do filme. O momento em que deliberadamente HAL matava todos tripulantes da Discovery, com exceção de Bowman, é sem sombra de dúvida um dos mais controversos do cinema e da literatura de ficção científica.

Para compreendermos o tal “erro” de HAL é preciso analisar suas atitudes no filme e no livro, porque são relatados de formas diferentes.

Hal pede a Dave (Keir Dullea) para lhe mostrar seus desenhos.

No filme, HAL 9000 é um computador dotado de uma grande capacidade. Ele controla toda a Discovery. Bowman e Poole são meros vigias caso ocorra algum problema do qual HAL não consiga dar conta. E é exatamente isso que ocorre quando, durante uma conversa “informal” com Bowman, HAL descobre uma falha na unidade de comunicação AE-35, que logo depois ficamos sabendo que não apresenta defeito algum. Poole a recoloca e é neste momento que HAL, em controle de uma das cápsulas, ataca Poole e o mata.

PORQUE HAL?

Essa cena no filme precisa ser compreendida em seus detalhes. O que teria levado HAL a fazer o que fez? Seria um complexo de Frankenstein? Não verdade, HAL não é uma inteligência artificial, ele estava apenas seguindo a sua programação. Vamos atentar para alguns fatos importantes:

  1. Quando Poole está jogando xadrez com HAL, ele faz uma jogada “errada”, é o próprio astronauta que revela isso ao dizer que aquela fora uma péssima jogada. HAL pede desculpas, mas logo que Poole faz a sua jogada, descobrimos que HAL “errou” de
    HAL 9000 jogando xadrez com Poole (Gary Lockwood)

    propósito para atrair Poole a uma armadilha e após uma série de lances faz o jogo chegar a xeque. Percebendo a derrota eminente, o astronauta desiste.

  2. Bowman também passa por um blefe de HAL. Assim que mostra seus desenhos para o super-computador, HAL lhe faz uma pergunta pessoal. HAL afirma que Bowman está inseguro quanto a missão, mas diferente do que esperava HAL, Bowman não responde, pelo contrário, devolve a pergunta. A máquina então apresenta o problema na unidade AE-35.
  3. HAL mata todos os tripulantes, com exceção de Bowman. Por quê? Diferente de Poole, Bowman “continua a jogar”, mesmo depois que HAL blefa sobre o erro na unidade.
  4. HAL recebeu a real missão no meio da jornada a Júpiter. A missão na verdade consiste em chegar a fonte do sinal que fora
    Cena na qual Poole é atacado por uma cápsula contrada por HAL 9000

    enviado pelo monólito dezoito meses antes da cratera Tycho na Lua. Não é possível saber quais instruções ele teria recebido, no entanto, diante do descaso de Poole e sabendo que HAL conhecia os demais tribulantes em estado em hibernação, já que ao dialogar com Bowman antes de identificar a pane na unidade AE-35 HAL afirma que os outros tripulantes passaram por treinamentos individuais que Bowman, aparentemente, não tivera acesso, poderia o computar sabê-lo?

  5. Se a resposta a cima for sim, HAL poderia ter analisado que diante dos dados que lhes fora enviados da Terra somando ao que sabia dos tripulantes que apenas Bowman seria capaz de completar a missão.
  6. Poole, além de propor que HAL seja desligado, também mostra-se um ser humano descrente da própria missão. Lembremos a cena em que ele recebe uma mensagem de feliz aniversário dos seus pais e o astronauta permanece impassível. Fora que, se HAL detinha o conhecimento real da missão, ao querer desligá-lo, Poole estava interferindo no progresso da mesma.
  7. Mais um ponto que confirma essa teoria é que HAL usa a cápsula para matar Poole lançando-o no espaço, mas o mesmo parece não fazer o mesmo quando Bowman, dentro da cápsula, deseja entrar na Discovery. O computador apenas fica repetindo a mesma, e famosa frase, “I’m sorry Dave, I’m afraid I can’t do that” (“Me desculpe, Dave, mas receio que não posso fazer isso.”).
  8. É importante lembrar que o próprio Kubrick era um hábil jogador de xadrez. Quando HAL deixa Bowman fora da nave, dentro da cápsula, desafiando-o assim como um “xeque” que antecede o “xeque-mate”. Mais uma vez, Bowman não desiste e consegue entrar na Discovery desativando HAL e completando a missão. Ou seja, a cálculo feito por HAL estava correto: Dave era o único capaz de chega a Júpiter, encontrar o monólito e concluir a missão.

A trajetória da minha reflexão até Júpiter

Essa sequência de fatos é para mostrar que HAL não sofre de um complexo de Frankenstein. Ele não ficou com inveja dos seus criadores e decidiu exterminá-los. HAL 9000 apenas seguiu sua programação que não conhecemos em totalidade, pois as instruções dadas a ele durante a viagem a Júpiter somente ele sabia e somente ao desativar o computador é que Bowman fica a par dessas informações.

No entanto, como o livro escrito por Clarke, trabalha esse momento? Será que na obra escrita em paralelo com o filme o computador teria entrado em contato com o monólito e adquirido consciência? Se o post já estiver publicado basta clicar no link abaixo. Caso não, aguarde que em breve publicarei o desenrolar deste eventos no livro.

E para você, seguindo os elementos que temos no filme, o que aconteceu com HAL 9000? Deixe nos comentários abaixo suas impressões.

Batismo de Sangue

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1

 

Luzes de sirenes iluminavam a frente da casa. Os dois observavam as paredes negras e a fumaça que ainda escapava por qualquer abertura. Tudo fedia. Cheiros de água e fuligem atingiam o nariz torto do mais velho.

— É aqui mesmo?

O mais novo, com seu nariz arrebitado, puxou o ar. Farejava o ambiente em busca de informações.

— Só pode ser. Muito cheiro de sangue.

— Então vamos.

Os bombeiros ainda mantinham a área isolada. Muitos curiosos se aglomeravam para acompanhar o combate ao incêndio. Algumas pessoas eram atendidas na calçada. Com a interdição da rua, repleta de ambulâncias, viaturas da polícia e dos bombeiros, o trânsito precisou ser desviado.

Com autoridade, o de nariz torto se aproximou da faixa que impedia os curiosos de chegar mais perto. Sua barba por fazer e olheiras acentuadas não passavam uma boa impressão. Ele levantou a faixa e um policial se aproximou:

— Cidadão, essa área está isolada.

— O que disse?

— Não pode passar. Você é cego? Não tá vendo a faixa?

— Boa noite, qual sua patente?

— Soldado Peixoto — ele respondeu e apontou para o nome gravado na farda.

— Soldado, vá à merda.

— Como é? — O tom de voz do policial subiu e ele levou a mão à pistola. — Tá preso por desacato, seu merda. Mão na cabeça, vai.

O nariz torto puxou uma carteira comum do bolso e mostrou para o policial que, de imediato, tremeu e se apressou em dizer:

— Senhor, desculpe! Não sabia que o senhor…

— Soldado, vá a merda… Mostre-me quem está responsável pela ocorrência.

E assim ele fez.

— Ele está comigo — disse, apontando para seu companheiro.

— Claro, Major. Podem passar.

Enquanto iam em direção ao responsável, o mais novo perguntou:

— Fico impressionado com esse truque da carteira… Como funciona? Você mostra qualquer carteira e faz com que a pessoa veja o que você quer que ela veja?

— Quase isso… Eu só faço com que ela veja o que mais teme ver. Nesse caso, nosso amigo se cagava de medo do Major Almeida.

— Mas qual seu nome mesmo?

— Enquanto estivermos aqui, Major Almeida.

— Quero saber o real…

Ele parou, abaixou-se para ficar na altura do rosto de seu companheiro e, de olhos arregalados, decretou:

— Major Almeida.

— Prazer, eu sou João — disse. Estendeu a mão e ficou esperando um aperto que não veio.

A mesma estratégia utilizada para conseguir passar pelo isolamento foi usada para entrar na casa.

— Você pode me contar como funciona esse negócio da carteira? Sei que é minha primeira vez em um caso desses, mas já queria aprender algumas coisas.

— João, se você não calar a boca e parar de encher meu saco, vou te ensinar como engolir a própria língua. A partir de agora, você só fala quando eu mandar. Entendido?

Sim, ele havia entendido. Tentou verbalizar e a voz não saiu, não controlava mais a parte do cérebro responsável pela função. Os olhos daquele homem de nariz torto disseram mais do que a boca. João, de imediato, soube que ele se chamava Gregório, mas outros o chamavam de Greg. Não gostava de muita conversa e poderia mergulhar na mente de qualquer um que olhasse em seus olhos.

— Vou perguntar de novo e agora quero que balance a cabeça — disse Greg. — Você entendeu?

João acenou positivamente.

 

2

 

Sozinhos na casa, caminharam em meio aos escombros. Com a mente do responsável pela operação sob sua influência, tinham tempo suficiente para fazer o que era preciso.

Todo o primeiro andar fora lambido pelo fogo. Greg ajoelhou, tocou as cinzas com as pontas dos dedos e aslevou até a boca. Deixou que o material se dissolvesse e entrasse em contato com suas papilas gustativas e cuspiu. De nada adiantou, sua capacidade de percepção através dos sentidos já não existia mais como antes. Aquilo só alimentava ainda mais a raiva que sentia pelos novatos.

Após percorrer a casa, João chegou até as escadas. Olhou para Greg em um claro pedido para que pudesse falar.

— Fale logo.

O bloqueio mental se foi e João apontou para a porta no topo da escada:

— Eles estão lá.

— Vá na frente.

— Mas… E se… — João não sabia o que deveria temer mais, Greg ou o que o aguardava adiante.

A expressão ameaçadora de Greg ao notar sua hesitação foi de grande ajuda para que ele se decidisse.

A porta entreaberta facilitou a entrada. A primeira cena já fez com que João desse meia-volta e jorrasse um jato de vômito nos degraus. Greg apenas lançou-lhe um olhar de reprovação e entrou. Três cadáveres davam boas vindas aos que entravam. Dois, de joelhos e abraçados, ocupavam o centro do cômodo. O chão ao redor deles era negro, consequência da evidente morte em decorrência do fogo. Carbonizados, seriam considerados uma obra de arte macabra caso fossem expostos em um museu — ideia que agradava a Greg. Quero uma dessas na minha sala, pensou.

Já recuperado, João retornou ao lugar com cautela. O terceiro cadáver tinha o rosto mergulhado em uma poça de sangue.

— O que houve aqui?

— Isso é você quem vai dizer.

— Como assim? Do que você está falando?

— Você acha que veio aqui só para encontrar o local?

— Foi o que me mandaram fazer. O que mais você quer de mim?

João se aproximou da porta; estaria preparado para correr em caso de necessidade… mas ouviu o estrondo violento da porta se fechando.

— Me deixe sair — implorou.

— Nós vamos sair… Juntos. Mas antes você vai me ajudar a entender o que aconteceu.

Ao estudar melhor o lugar, João notou a presença de outro cômodo. Seria possível ver o interior do lugar se o vidro que formava uma espécie de vitrine para lá não estivesse pintado de vermelho.

— Aquilo é sangue? — perguntou.

Greg se aproximou da entrada do outro cômodo, repleta de pegadas do que parecia ser sangue, e examinou o interior.

— Olhe isso.

O que João viu não era suportável. O frio subiu por suas pernas e roubou-lhe a cor dos lábios. Todo o vermelho que cobria o lugar ficou lento, embaçado… Escuro.

 

3

 

Despertou sozinho. Passou a mão pelo rosto molhado pensando ser suor. Sangue escorria do corte aberto em seu supercílio direito que, na queda, atingiu a quina da porta.

Greg ajoelhou ao seu lado:

— Se você tiver mais um desses ataques, farei questão de dar um jeito de essa ser sua primeira e última vez nos ajudando.

Ainda zonzo argumentou:

— Eu não controlo essas coisas… O que é esse lugar?

— Julgando pelos instrumentos encharcados de sangue, um estúdio de qualquer banda de metal dos anos oitenta.

João ficou em dúvida se deveria rir e pediu ajuda para levantar. Seu parceiro o ignorou e disse:

— Venha comigo.

Os dois patinaram sobre o sangue e chegaram até o corpo da mulher. João precisou segurar a nova ânsia de vômito e só conseguiu por não ter mais o que colocar para fora. Próximo a ela, encontraram uma tábua, também coberta por sangue. Greg tirou um lenço do bolso e limpou a superfície o máximo que pôde.

— Uma tábua de Ouija — constatou.

Um olhar mais cuidadoso evidenciou que a mulher ainda respirava com dificuldades e em longos intervalos.

— Ela está viva, Greg!

— Não se pode chamar isso de vida. — Ele levantou seu vestido e revelou a barriga dilacerada.

João viu tudo escurecer mas, antes que apagasse, um tapa atingiu seu rosto.

— Já falei: se der outro ataque, você já era.

O que veio a seguir foi sua prova de fogo. A mão de seu parceiro mergulhou nas vísceras expostas da mulher, que contraiu os músculos e soltou um gemido baixo.

— Você ficou maluco? Ela está viva! Tira a mão daí!

— Ela não vai sobreviver…

— Não importa! Ela está sofrendo!

O braço entrou por completo e ele foi capaz de segurar o coração da mulher. Um aperto mais forte e o sofrimento se foi.

— Pronto. Agora me deixa trabalhar em paz.

Sem reação possível, João se calou. É um teste, pensou. Nada disso pode ser real.

— Eles conseguiram…

— Greg… Eu não quero mais…  

— Sua escolha foi feita quando veio até aqui. Preciso que você acesse as memórias dela.

— Eu não sei fazer isso… Só… me deixe ir.

— Não. Basta olhar nos olhos dela. Quero as lembranças; faça isso e me passe o que viu.

João buscou coragem em seu desespero.

— Vai logo. Você não tem muito tempo; em breve as memórias desaparecerão.

Demorou para que as lágrimas secassem e João pudesse ver com clareza. Aproximou o rosto do dela, enxergou cada detalhe de sua pele sob o sangue. Greg puxou as pálpebras e os olhos castanhos, irritados e vascularizados, surgiram. Invadiu as lembranças da mulher sem nenhum pudor e foi recebido pela luz.

 

4

 

Uma concentração de pessoas vestidas de preto em pleno verão carioca indicava que aquele era o local.

Rachel, já cansada de tanto andar, afirmou, esperançosa:

— Acho que é ali.

Mais à frente, carregando uma câmera apontada para seu próprio rosto e que também enquadrava os outros três, Fernando ironizou:

— Será?

Acompanhados de Jenifer e Alexandre, caminhavam em direção ao local. Os quatro trajavam preto e tinham o suor como segunda camada de roupa.

— Qual o número da casa mesmo? — perguntou Jenifer.

Fernando não conseguia evitar; precisava fazer graça para seus cinco milhões de inscritos no canal e se apressou em responder gritando:

— 666!

Todos soltaram risos forçados. Já era a quarta vez que aquela piadinha era feita desde o início do trajeto.

— Fala sério, Fernando — pediu Rachel. — Qual o número?

— Não lembro, deixa eu ver…

Ele tirou o papel amassado e molhado de suor do bolso de trás da calça.

— Número 41.

— Então é ali mesmo.

— Galera, olha o estado desse papel — disse ele ao tentar focalizar as letras borradas. — Estão vendo isso? É suor de bunda!

— Retardado… — resmungou Jenifer, baixo o bastante para que apenas Alexandre ouvisse.

Fazia pouco tempo que havia voltado a falar com Rachel e, por ter que aturar Fernando como brinde, já se arrependia. Com sorte, pensava, o que os dois tinham não duraria muito tempo.   

 

5

 

Ao som de Fade to Black do Metallica eles foram recebidos. Convencidos pela afirmativa de que a casa era um oásis para qualquer amante do rock que quisesse fugir do carnaval, foram parar ali.

Enfrentaram certa dificuldade para entrar. Os que do lado de fora estavam não pareciam muito dispostos a se mexer para dar passagem. Logo perceberam que o prometido oásis tinha seus problemas. Foram informados de que o ar condicionado do local não estava funcionando. A casa de dois andares era grande, mas a quantidade de gente já havia excedido o tolerável. Bastou que colocassem os pés no interior da sala para que entendessem a razão pela qual aquele grupo de pessoas se aglomerava do lado de fora: o calor castigava quem optava por permanecer e, aliado ao som alto, tornava o lugar um tanto perturbador.

Não demorou cinco minutos para que Alexandre, já no auge de seu mau humor, começasse a reclamar:

— Eu te disse que não era pra gente vir, sabia que ia ser ruim…

— Não começa, Alexandre — ordenou Jenifer. — A gente veio pra se divertir.

Quando se tratava de diversão, era evidente que os dois tinham ideias bem diferentes. Ele, mais caseiro, odiava sair para qualquer lugar um pouco mais movimentado. Já ela, não perdia uma oportunidade de virar a noite em qualquer evento que surgisse. Apesar das diferenças, se amavam. Seis anos de relacionamento fundamentaram uma relação de confiança entre os dois.

Rachel e Fernando encontraram logo um canto da casa para ficar. Se conheceram um mês antes e, desde então, não desgrudavam um do outro. Trocando carícias apressadas, não se preocupavam com os que estavam ao redor. Tudo sob o foco constante da lente impertinente que Fernando segurava com o braço esticado.

— Fernando, sério mesmo que você vai filmar até isso?

— Essa parte eu vou censurar… Mentira! — gritou para a câmera e enfiou o rosto no decote dela. — Já filmamos coisa pior!

 

6

 

Sentados no braço de um sofá, Jenifer informou:

— Vou pegar algo para beber.

Alexandre apenas concordou com um breve aceno e passou a mirar uma das saídas de ar. Eram várias, responsáveis por distribuir o ar frio pela casa. Através de seu olhar, fixo e penetrante, desejava com força que de lá saísse o tão necessário sopro gelado. Pelos tubos empoeirados e fedendo a mofo, ele foi. Viajou por todo o caminho e chegou ao imenso aparelho, localizado em um pequeno cômodo nos fundos da casa.  A música terminava e o silêncio entre uma e outra fez com que o estrondo fizesse tudo tremer. O ronco do ar sendo ligado garantiu berros comemorativos.

As guitarras da música seguinte ensurdeceram os presentes. Through the Fire and Flames do Dragonforce teve início sob protesto de alguns.

— Reclamão, viu? O ar voltou a funcionar — disse Jenifer, que trazia consigo dois copos de cerveja. — Toma, peguei sua preferida.

Nenhuma palavra dita por ela chegou aos ouvidos dele. Alexandre estava em transe, suava muito mais do que os outros ao seu redor.

— Alexandre? — ela insistiu. Tocou o braço do companheiro e sentiu sua pele arder. — Alexandre!

O fogo percorreu a tubulação e atingiu os presentes antes que o barulho do ar condicionado explodindo fosse ouvido.

Gritos de pânico e dor concorriam com os solos de guitarra. A fumaça negra e espessa ocupou o lugar e impediu que as pessoas encontrassem a única saída desbloqueada. Como a casa não tinha sido projetada para receber tantos convidados, não contava com saídas de emergência. O mesmo local que servira de entrada agora estava repleto de pessoas que, desesperadas, empurravam umas às outras e pisoteavam as que iam ao chão.

Jenifer lutava contra os braços que forçavam passagem por onde ela estava.

— Amiga, vem comigo! — disse Rachel ao agarrar o braço dela.

Na frente das duas, ia Fernando. Usava da altura e da musculatura privilegiadas para abrir caminho e filmar tudo. Tateando as paredes, eles prosseguiram até chegar a uma escada que levava ao segundo andar. Em busca da rota de fuga mais próxima, a multidão ignorava aquele caminho.

Os três escalaram os degraus aos tropeços e deram de cara com a porta no topo da escada. Fernando a empurrou e gritou:

— Está trancada!

— Arromba! — implorou Rachel.

A proximidade da porta com a escada não permitia que ele conseguisse distância suficiente para tomar impulso. Foram várias tentativas frustradas até que Rachel ordenasse:

— Sai da frente, Fernando.

Ela girou a maçaneta e puxou, ela abriu. Os três se jogaram para o interior do cômodo e ouviram a porta bater.

Não havia fogo, fumaça ou qualquer sinal do inferno que dominava o andar inferior.

Com voz chorosa, Jenifer disse:

— O Alexandre ficou lá embaixo.

Fernando voltou e tentou descer, novamente forçando para o lado errado.

— Larga essa câmera, você não está prestando atenção no que está fazendo!  — berrou Rachel. A porta abre pro outro lado!

Ao ouvir isso, Fernando sentiu-se estúpido por cometer o mesmo erro. Tentou empurrar em vez de puxar e ela também não abriu. Fernando olhou para Rachel com retardo no semblante.

— Você é burro? — reclamou,  num tom de voz ainda mais ofensivo.

Rachel tentou abrir e nada. Empurrou, puxou… Nem sinal de que pudesse abrir. Os dois trocaram olhares de dúvida enquanto Jenifer parecia entretida com algo que via.

 

7

 

O segundo andar se dividia em dois cômodos: o em que eles haviam acabado de adentrar, e o outro após uma porta pequena. Numa parede, uma janela de vidro permitia assistir a tudo o que ocorria no cômodo ao lado. Jenifer não tirava os olhos de lá.

— Gente, olha isso!

Os dois se aproximaram e contaram seis crianças ao todo. Bem arrumadas, vestiam roupas brancas impecáveis e cabelos penteados de forma cuidadosa, como se suas avós tivessem acabado de prepará-las para ir a uma festa. A mais velha não tinha mais que dez anos. Formavam um círculo ao redor do que, para Fernando, parecia ser uma espécie de jogo de tabuleiro.

— O que é isso que elas estão jogando? — perguntou.

— Não é bem um jogo — respondeu Rachel. — É uma tábua de Ouija.

— Tábua de quê?

— Ouija. É um tabuleiro com letras, números e umas outras coisas. Serve para fazer contato com espíritos.

Gritos histéricos de Jenifer fizeram com que os dois voltassem à realidade.

— Alexandreeeeee!!! Alexandreeeeeeeeeeeeee!!! — ela berrava sem parar, esmurrando a porta.

Rachel olhou para as crianças, mas nem sinal de que elas ouviam o desespero da amiga. Continuavam com as mãos sobre o ponteiro que se mexia e deslizava sobre a tábua.

Fernando começou a falar com a câmera:

— Gente, vocês não vão acreditar. O primeiro andar está pegando fogo e a gente preso aqui! Olha essas crianças, que bizarro! — Caminhou até a porta que dava para a escada e mexeu na maçaneta. — Olha isso, não abre. Ninguém trancou!

Tudo era tão surreal que Rachel passou a somente tentar entender o que acontecia. Ao analisar o cômodo onde as crianças estavam, percebeu se tratar de um estúdio. Instrumentos, fios e amplificadores ocupavam boa parte do local e as paredes revestidas faziam o isolamento acústico. Deixou que sua mão tocasse a maçaneta, entrou e fechou a porta. Os gritos de Jenifer invadiram o estúdio enquanto Rachel entrava e as crianças pararam o que faziam.

Silêncio. A ausência agoniante de sons gerava uma sensação inédita para ela. Com passos curtos, foi até a roda de crianças. As cabeças viraram, lentamente, em sua direção, e um arrepio subiu pelo seu corpo. Olhos completamente brancos, cor de marfim.

 

8

 

Não estava preparada para aqueles olhos. Todas as crianças se colocaram de pé. O ponteiro sobre a tábua deslizava sozinho e o atrito com a superfície gerava um barulho que ganhava uma amplitude muito maior ali dentro.

A criança que aparentava ser mais nova pegou sua mão. Dedos gelados como de um cadáver recém retirado da gaveta de um necrotério. O toque interrompeu a conexão entre corpo e mente. De mãos dadas, caminharam juntas. Sem controle sobre o próprio corpo, Rachel havia se tornado uma mera espectadora.

As duas sentaram-se em torno da tábua de Ouija e foram acompanhadas pelas outras crianças. Os dedinhos indicadores e médios, frágeis, tocaram o ponteiro, e a mão de Rachel se juntou às dos pequenos.

Rachel não era alta; ainda assim, seus quase um metro e sessenta e o peso bem acima do recomendado para sua altura a faziam ganhar posição de destaque na roda. Sua mão encaixava-se de forma a completar o estranho quebra-cabeça de dedos que regia o ponteiro. O objeto começou a deslizar pelas letras gravadas em sua superfície e, de letra em letra, três palavras formaram uma frase:

E N T R E G U E

O

B E B Ê

Em pânico, tentou levar a mão livre até a barriga e tirar a outra do ponteiro. Ninguém sabia que estava grávida. Sete meses e carregava consigo o segredo que os quilos extras ajudavam a esconder. Gritar e se levantar não eram opções. A dor alucinante surgiu em seu ventre e lágrimas escorreram quando o minúsculo pé forçou a pele da barriga.

 

9

 

Do lado de fora do estúdio a gritaria de Jenifer era só o que se ouvia. Berrava tanto que sangue escorria por sua garganta, e vez ou outra sentia o gosto. Manchas vermelhas tingiam a porta branca, castigada por socos e cotoveladas que abriam feridas nas mãos e cotovelos da agressora.

Fernando não decidia o que deveria filmar. A excitação era tamanha que já nem ligava para o incêndio no primeiro andar. Cara, isso vai render milhões de visualizações, pensava. Corria de um lado para o outro e alternava entre filmar o desespero de Jenifer e a situação macabra na qual Rachel se encontrava.

— Galera, olha isso! — ele gritava e ria, alucinado.

Ao se aproximar de Jenifer mais uma vez, virou a câmera para si e deixou que ela, aos prantos e jogada ao chão, ficasse em segundo plano.

— Ela tá desesperada. A gente ficou preso aqui e um monte de coisa está acontecendo — dizia.

Contudo, a pontada de dor em seu olho direito foi tão forte que o fez perder a noção do que ocorria. Jenifer havia se levantado e enfiado nele o  palito de madeira que usava para prender os cabelos.

Ela berrou. Sentiu algo em sua garganta estourar. Engoliu o que para ela pareceu um pedaço de carne desprendido de seu próprio corpo. Tinha gosto de silêncio.  

 

10

 

Cada criança sussurrava uma palavra diferente. Palavras repetidas em um ritmo constante que, juntas, formavam o que deveria ser uma frase. Havia perfeita sintonia de tempo e volume, isso Rachel percebia, mas não era capaz de reconhecer aquela língua. Entregue ao que viesse, ela apenas podia assistir ao que seus olhos tivessem alcance. Nem mesmo a cabeça conseguia movimentar. Quando as crianças se levantaram, seu corpo foi relaxando e atingiu o chão de forma suave. Deitada, observava o teto e acompanhou a aproximação delas. Duas seguraram na barra de seu vestido e o levantaram até que as pernas ficassem expostas. Outras duas arreganharam suas pernas e as dobraram de forma que Rachel reconheceu a posição em que ficou como a do parto. Algo próximo ao medo queria despertar em seu interior, mas a criança que ajoelhou ao lado colocou a mão em sua testa e isso a acalmou.

— Entregue nosso irmão — disse ela.

A frase a fez despertar. Rachel atingiu a criança com um tapa e se colocou de pé. Olhou pelo vidro que dava para outra sala e acompanhou o exato momento em que Jenifer atacava Fernando. Correu em direção à porta e foi atingida por uma pancada forte na cabeça. Zonza, caiu de quatro e viu um dos pratos da bateria cair ao seu lado. A visão insana das baquetas se mexendo por conta própria chamou sua atenção. O barulho tomou conta da sala. PA PA PA… PA PA PA… PA PA PA…

O som inconfundível da guitarra rasgou o ar e Rachel reconheceu a introdução de Raining Blood do Slayer. Baixo, bateria e guitarras regiam o terror que ela vivia. Foi puxada pelos cabelos até o centro do estúdio. Pensava na força que aquelas crianças tinham; quatro seguravam cada um de seus membros, uma sua cabeça e a última se posicionava entre suas pernas abertas, como um médico que aguarda o bebê.

— Não, por favor! NÃO! — Rachel implorava.

As contrações tiveram início e ela tentava segurar o filho dentro de si. Lutar gerava ainda mais sofrimento.

— Solte o bebê — ordenou a criança que segurava sua cabeça.

O volume da música passou a muito acima do tolerável. Rachel tentava resistir. Fechou os olhos e concentrou toda a força em seu ventre. Não desistiria de seu filho tão facilmente. Foram meses escondendo de todos a gravidez. Estava tudo preparado para ter aquele filho por conta própria, sem a ajuda de ninguém. Da maneira como ele fora concebido. Não precisou de um pai para engravidar, não precisaria de um para criar.

Pingos pousavam sobre seu corpo e salpicavam-lhe o rosto. Chovia. A pele era atingida por gotas grossas e, ao abrir os olhos, tudo era vermelho. Dos sprinklers no teto jorrava sangue para todo o lado. As roupas brancas das crianças agora estavam ensopadas do líquido viscoso. De branco, só restavam os olhos.

 

11

 

Sentada em um canto, Jenifer abraçava as próprias pernas e mastigava o lábio inferior sem o menor controle sobre a força que imprimia. Pequenos pedaços eram arrancados e engolidos. Fernando, que gritou durante alguns segundos antes de desmaiar, ainda tinha o objeto cravado em sua cavidade ocular. Ao cair no chão, a câmera deslizou por alguns metros e, ironicamente, focava em seu rosto ferido.

A porta do estúdio se abriu assim que a música em seu interior terminou. De lá saíram as crianças; não seis, mas sete. A última carregava o recém-nascido nos braços e todos, banhados de sangue, andavam em fila. O bebê não chorava, só emitia grunhidos roucos.

Pelo caminho até a porta, os sapatinhos molhados deixaram pegadas de sangue. Jenifer ignorava por completo o que ocorria ao redor e algumas crianças lançaram-lhe olhares debochados. Soltaram gargalhadas ao passarem por Fernando

Desceram pela escada em chamas. Não temiam calor, fumaça ou fogo. Estavam envoltas por algo que as protegia do inferno que o primeiro andar havia se tornado. As chamas subiam os últimos degraus até chegarem ao topo.  

Alexandre chegou ao segundo andar aos berros. Entoava o nome de Jenifer de forma desesperada. Seu corpo ardia em chamas, era impossível para qualquer ser humano comum suportar aquilo. Jenifer se levantou, sangue e saliva escorrendo de sua boca. A mistura pingava e manchava o preto da camisa. O grito que chamaria o nome de Alexandre não saiu e Jenifer correu; abraçou o corpo flamejante do amado e sua pele ardeu. Ele correspondeu fazendo a mão direita tocar seus cabelos longos que, de imediato, pegaram fogo. O caloroso abraço durou a eternidade em segundos. Morreram ali, abraçados, como uma só estátua de dois amantes ajoelhados.  

 

12

 

A luz se foi. Dentes trincados, João convulsionava e expelia uma espuma branca pelo canto da boca. O mergulho no oceano de lembranças durou mais do que deveria. Seus membros se contorciam, atingiam o chão com violência e pareciam prestes a quebrar. Greg montou sobre ele e tentou, sem sucesso, forçar-lhe as pálpebras para que os olhos abrissem. Só o que podia fazer era imobilizá-lo para que não se machucasse.

— Eu avisei que esse merdinha não estava preparado — resmungou Greg.

Dois minutos depois e tudo acabou. Assim que a convulsão foi controlada, Greg se apressou em abrir os olhos do novato.

— Me passe as memórias — ordenou.

Era crucial que elas fossem retiradas da mente de João. Caso ele as acessasse mais uma vez, poderia não suportar. Em uma fração de segundos as memórias tinham um novo dono, e uma leve dor de cabeça as acompanhava. João não teve a mesma sorte. Seu cérebro latejava com a enxaqueca mais forte que já havia experimentado.

Uma terceira pessoa, esbaforida, adentrou o recinto.

— Perdi muita coisa? — perguntou a mulher.

— Perdeu mais um novato passando vergonha. Precisei usá-lo.

— Não acredito que você fez ele passar por isso… Poderia ter me esperado.

— Se você estivesse aqui na hora, ele só precisaria assistir.

— Como ele está?

Apesar de estarem ao seu lado, João ouvia apenas ecos distantes da conversa.

— Vai sobreviver. E, se dermos sorte, desistir dessa vida.

— Se os velhos conseguissem manter suas habilidades sensoriais não precisaríamos deles.

Greg levantou irritado e saiu.

— Sem ofensas, querido — ela gritou.

Com esforço, João perguntou quem ela era.

— No momento, a pessoa que vai tirar você daqui.

— Rapazes — assim que ela chamou, alguns homens entraram. — Quero essa bagunça toda arrumada. Coloquem fogo no local quando terminarem.

Eles não responderam; apenas começaram a remover os corpos que estavam no segundo andar.

A mulher ajudou João a se levantar e caminharam até a saída.

Do lado de fora, Greg os esperava. Ela aproveitou para perguntar se ele ficaria com as memórias.

— Sim… O caso ainda é meu. Mas vou precisar que você recupere essas imagens — disse, entregando-lhe a câmera que Fernando havia usado. — Mais uma coisa. — Ele fitou João com um sorriso malicioso no rosto e prosseguiu: — Então é essa a vida que você quer de agora em diante?

Ainda se recuperando do que acabara de acontecer, João respondeu:

— Sim, Greg. Você pode me ensinar o truque da carteira?

O nariz, já torto, torceu ainda mais. Greg engoliu o sorriso e se foi.

 

Diário de João – Dia 1

 

Hoje dei início ao treinamento para me tornar um deles. Não foi fácil. Não esperava tanto sangue, cadáveres e vísceras. Vai ser difícil me acostumar. Conheci meus mentores: Greg e Sara. Acho que ele não foi muito com minha cara; pelo que percebi, não lida muito bem com o fato de não ter mais o que eles chamam de habilidades sensoriais. Pelo visto, isso eu tenho de sobra. O que me impressionou foi a capacidade dele de entrar na mente de outras pessoas. Vou me empenhar ao máximo para aprender como, e superá-lo. Sara foi quem mais me ajudou. Ela é mais velha, mas não tanto quanto Greg; deve ter uns trinta e poucos. Acho que nos daremos bem.

Minha cabeça ainda dói. Sinto um vazio ao tentar lembrar de tudo o que ocorreu hoje. Parte da minha memória parece ter sido arrancada à força; acho que foi o Greg. Não gosto de imaginar que ele tenha livre acesso à minha mente. Preciso aprender a bloquear meus pensamentos o mais rápido possível.

Consegui ouvir parte da conversa entre meus mentores durante do caminho de volta. Ao que parece, agora são sete crianças. Sara estava muito mais preocupada, e fez Greg prometer que deixaria que ela participasse mais do caso. Sinto-me mais confiante sabendo que ela não vai me deixar sozinho com ele.

Por fim, tenho saudades de casa. Evito fazer contato com minha família para que eles não corram perigo; aqui na capital, tudo parece grande e diferente demais para mim. Mas eu não vou desistir. Foram seis meses esperando essa oportunidade, agora parece que chegou minha hora.

Mestre, lhe reverencio e peço a benção definitiva.

 

Diário de Sara – Dia 4.129

 

Greg continua agindo como um membro decadente. Não segue regras e insiste em tornar a convivência com os outros algo conflituoso. Aproveitou-se de um atraso meu para ir a campo acompanhado de um novato despreparado e fez com que ele recuperasse as memórias de uma morta.

Seus poderes mentais não parecem estar em declínio, mas a capacidade sensorial já está abaixo da ideal para que ele continue entre nós. A hora de decidir seu futuro se aproxima e não vejo Greg aceitando o afastamento. De fato, a situação precisa ser tratada com cuidado.

Gostei da forma como o novato se comportou, apesar de ainda o achar novo demais para se juntar a nós. Fiz questão de não deixar que Greg assumisse a mentoria dele sozinho. Espero que ele resista ao impacto inicial e seja aprovado por todos.

Quanto ao caso, já são sete crianças possuídas circulando pela cidade. O incêndio que teve início durante o ritual de hoje chamou a atenção das autoridades e fez acender o sinal de alerta. Preocupante saber que Greg ainda é o responsável pelas investigações. Trabalharei para que isso mude.

Mestre, continuarei fiel enquanto viver.

 

Diário de Gregório – Dia 14.030

 

Continuo essa babaquice de ter que registrar todos os meus dias. Sabendo que todos só terão acesso a ele quando eu morrer, estou cagando para o que minhas opiniões aqui vão causar.

Mais um dia fazendo parte desse circo e menos um de vida. Me arrependo de ter aceitado ser parte disso e farei de tudo para evitar que mais jovens sejam seduzidos pela ilusão de ser parte de algo que faz a diferença. Perdi as contas dos amigos que morreram em todos esses anos, vi minhas habilidades serem consumidas em uma batalha perdida… e estou cansado.

Hoje, mais uma vez, testemunhei o poder que eles possuem. Não tarda para que uma legião de crianças seja formada e o mundo tenha que encarar de frente tudo o que nós varremos para baixo do tapete durante todos esses anos.

O novato que me acompanhou hoje será meu protegido enquanto eu estiver por aqui. Sara vai fazer de tudo para colocá-lo debaixo de sua asa, mas não permitirei que ele decida ficar sem antes saber o que o aguarda. Se, mesmo após ter contato com toda a realidade, ele ainda quiser continuar, não há nada que eu possa fazer. Ao menos esse não será enganado.

Mestre, vá se foder.

 


Diogo Ramos é professor e escritor. Autor de “O Outro Lado”, “O Mago e o Guerreiro” e outros. Tem mais perguntas que respostas, observa mais do que fala e quer sempre mais.

Boas meninas não fazem perguntas – Lucas Mota

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“O pai a deixou na loja. Marina se tornou um produto.”

Essa é a primeira frase do livro “Boas Meninas Não Fazem Perguntas” do escritor independente Lucas Mota. É uma frase impactante que serve como um convite a quem lê. A quem daqui seguir, uma experiência com misto de sentimentos está por vir. No universo distópico criado por Lucas, a misoginia impera fazendo com que mudanças sociais se justifiquem em prol da melhoria econômica em troca da liberdade e independência das mulheres. A lupa é posta e o que vemos… bem, não é nada bonito.

A temida vitrine do mundo de medo e desprezo

Imagina um mundo onde as mulheres não são mais vistas como seres humanos. Nesse mundo, elas passam por cursos preparatórios para aprender a como se comportar, comunicar, vestir e a servir a homens. Após o curso, elas são vendidas por seus pais para lojas, onde são postas à venda. A objetivação é tão real, que elas literalmente ficam expostas em vitrines, para que os possíveis compradores possam se sentir atraídos à compra. Depois, uma apresentação pessoal ao objeto de desejo e, por fim, a comercialização.

Esse é o mundo de “Boas Meninas Não Fazem Perguntas“. A estória é contada sob a ótica de Marina, a protagonista, que logo após sair do seu curso é vendida para uma loja.
Lá, ela conhece outras mulheres que também estão à venda e começa a se deparar com a realidade do que a espera nesse mundo de servidão.

Como uma boa personagem de distopia, Marina não se contenta com o seu destino e planeja uma fuga. O problema é que ela não conhece as ruas da Metrópole e, pior do que isso, a coleira que carrega em seu pescoço e a delimita como um objeto a ser comprado e consumido a lembra o tempo todo do que vai acontecer se ela planejar uma ação destemida: ela será eletrocutada e um destino ainda pior do que ser vendida a aguarda.

O que fazer?

Análise Crítica

O livro “Boas Meninas Não Fazem Perguntas” é um livro curto e rápido de se ler. Os capítulos não são muito extensos e a linguagem é simples e fluída.

Apesar de a estória ser contada sob a visão de Marina, a narrativa apresenta o ponto de vista de outras personagens: existem mulheres que aceitam a sua situação, outras que não; existem as sobreviventes e as lutadoras; existem as que tem um plano dentro do sistema e existem, é claro, os homens.

O livro é dividido em capítulos que contam o tempo presente dos atos, onde acompanhamos a vida de Marina e nos interlúdios conhecemos o “Protocolo Mud”, o documento que deu origem aos acontecimentos que desdobraram na construção social para que houvesse essa divisão de gêneros dentro da sociedade. Embora o autor não apresente o documento todo e não determine datas, a utilização deste recurso se torna aproveitável a partir do momento que isso é o máximo de informações que vamos ter sobre a origem dos fatos. Vale lembrar, contudo, que essa estória não é sobre como começou e sim sobre Marina, uma das inúmeras mulheres que estão inseridas nesse universo.

Apesar de compor o gênero de literatura nacional / distopia, a proposta do livro não é discutir sobre o sistema ou sobre as situações. É um livro sobre uma protagonista e suas relações. O livro é sobre Marina.

Não por isso, o convite para a reflexão, principal propósito de obras distópicas, está ali. Está nas conversas, nas ações das personagens, na ação dos homens, nas dúvidas, receios e aprendizados das mulheres. Está no absurdo de um mundo aceitar que homens e mulheres são diferentes ao ponto de mulheres poderem ser vendidas e deverem obrigações a seus donos; está no absurdo de que essas mesmas mulheres não podem se demonstrar infelizes, uma vez que é nossa obrigação sempre sorrir e estar bem. Está no absurdo de uma obra como essa poder ser lida como uma obra que se baseia na realidade de violência de gênero que vivemos todos os dias.

Encerro essa resenha dizendo que: se algo no parágrafo anterior faz sentido para você, é hora de dar uma chance para esse livro. Pois a arte é feita para isso: para que saiamos do nosso conforto e vejamos o mundo sob outra lente (aquela que permite que olhemos para dentro de nós mesmos).

Observações sobre a obra

O livro “Boas Meninas Não Fazem Perguntas” do Lucas Mota não foi lançado e está em financiamento coletivo pela plataforma Catarse até o dia 11/05/2018.

Você pode ler os dois primeiros capítulos do livro para fazer a sua degustação.

Apesar da proposta ambiciosa, o livro tende ao gênero Young Adult, um gênero que está em alta no mercado atual. Esse é um ponto positivo para quem procura por um livro de leitura mais rápida e focada.

Devo salientar que li o livro inicialmente com um pouco de receio. Afinal, estamos falando de um livro escrito por um homem sobre um universo onde mulheres são vendidas. Ao final da leitura, saldo positivo: o livro foi escrito com cuidado e conhecer Marina me rendeu horas agradáveis. Sem entrar em spoilers, o final do livro me deixou pensando na possibilidade de continuação, contudo Lucas me disse que não está nos planos. Para saber se isso é bom ou ruim… bom, aí o livro tem que ser financiado e disponibilizado para a venda.

Quer ler a estória e ajudar um autor independente brasileiro? Apoie o projeto “Boas Meninas Não Fazem Perguntas” no Catarse e #LeiaNovosBR.

 

Nota

 

 

Não esqueça de adicionar o livro no Skoob

Nome:
 Boas Meninas Não Fazem Perguntas
Autor: Lucas Mota
Edição: 1ª
Editora: Independente
Ano: 2018
Páginas: 170
ISBN: B0791FK981
Sinopse: Após uma descoberta científica questionável, a Metrópole superou seus anos de recessão econômica através da legalização do comércio de mulheres.
Cansada de ser tratada como um produto, Marina decide fugir. Para isso, precisará enfrentar a Força, um departamento policial com alta tecnologia especializado na vigilância e aprisionamento feminino. Isso, é claro, se puder se livrar de sua coleira, que emite choques ao ser removida além de denunciar sua localização.

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Os Lobos Dentro das Paredes – Neil Gaiman

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Os Lobos Dentro das Paredes” confirmaria Gaiman no universo dos livros infantis: depois de “O dia em que troquei meu pai por dois peixinhos dourados“, esse foi o segundo livro infantil lançado pelo autor, mas diferente do primeiro, este é influenciado por sua filha, Maddy.

Os lobos dentro das paredes conta a história de Lucy, a filha caçula da família, que certo dia começa a ouvir lobos por detrás das paredes de sua casa. Questionando um a um os membros da família, recebe de cada um certo descaso e um aviso: “Se os lobos saírem de dentro das paredes está tudo acabado”. Certo dia, os lobos realmente saem de dentro das paredes e agora, expulsos de casa, Lucy e sua família precisam reaver o seu lar.

Um conto de fadas e algumas interpretações

O livro não é longo (60 páginas) e está longe de ser o Gaiman de “Sandman” e “Deuses Americanos“. Mas, não nos esqueçamos que é um livro infantil e me vi várias vezes lendo a obra para futuros pequenos sonhadores, não só porque a linguagem é bem acessível, mas também devido ao tom fabulesco que há em toda a obra. As ilustrações do Dave Mckeen complementam aquela atmosfera soturna que havia nos contos de fadas originais.

Mesmo que não seja uma obra complexa em sua estrutura é interessante notar algumas mensagens nas entrelinhas. Sem ser didatizante, como ocorre em algumas obras do gênero, é interessante perceber que a figura ameaçadora do livro é aquela fartamente presente em outras histórias infantis: o lobo. Figuras sempre associadas à malícia e à maldade, aqui servem como espelho para que a família de Lucy perceba o quão ridículo era a sua rotina, onde cada membro sempre estava ocupado com afazeres particulares, mas pouco, ou quase nunca, conviviam como unidade familiar.

Outra imagem sempre associada aos lobos é quanto a lascividade. Nos contos de fadas é comum que o aparecimento do lobo seja associado a um amadurecimento das personagens femininas. Em “Os Lobos Dentro das Paredes”, Gaiman também se utiliza dessa metáfora ao mostrar que Lucy é a única da família que deseja lutar pela sua casa enquanto os demais sempre propõe soluções que os afasta de sua morada.

Há mais uma leitura que consigo fazer do livro. A relação entre os membros da família é semelhante a de nossos dias atuais. Cada um ocupando um cômodo da casa sem interagir uns com os outros, no entanto quando os lobos saem das paredes a família se vê reunida novamente, conversando e interagindo, mesmo que no final aparentemente haja uma ruptura dessa união, tudo indica que um novo evento mostrará que eles ainda não aprenderam a lição…

Uma curiosidade que nos escapa

Uma curiosidade que me escapou na primeira leitura, mas que fica perceptível em uma segunda é que Lucy apesar de ser representada por McKeen como maior que o irmão é na verdade a caçula da família. Isso ficou claro quando, lendo sobre a obra, descobri que McKeen usou os seus irmãos como inspiração para compor as ilustrações, sendo neste caso, a irmã mais nova dele maior que seu irmão do meio.

“Os Lobos Dentro das Paredes” pode não constar nas listas de “obras do Neil Gaiman para ler antes de morrer“, mas é um livro honesto que atende à proposta a qual se dispõe. Tem as belíssimas ilustrações de Dave McKeen que parece sempre casar com o tom do texto do autor e rende uma boa leitura para pais e filhos e para os pais lerem para seus filhos.

Nota

Gostou e quer ler? Você encontra o livro nas lojas abaixo:

Amazon (Capa Comum)
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Não esqueça de adicionar o livro no Skoob

Nome:
Os Lobos Dentro das Paredes
Autor: Neil Gaiman
Edição: –
Editora: Rocco
Ano: 2006
Páginas: 60
ISBN: 9788532519924
Sinopse: Os lobos dentro das paredes, é o novo livro do escritor e quadrinista inglês Neil Gaiman. Depois do sucesso de Coraline, uma cáustica reinterpretação de Alice no país das maravilhas, lançado pela Rocco em 2003, Gaiman e o ilustrador Dave McKean apresentam aos fãs uma nova obra-prima da literatura infanto-juvenil.
Em Os lobos dentro das paredes, Lucy escuta ruídos “furtivos, rastejantes e amarrotados” vindo de dentro das paredes de sua casa. Ela tem certeza de que existem lobos vivendo ali, mas a família não acredita nela: “Você deve estar ouvindo camundongos”, diz a mãe; “Morcegos”, berra o irmão; “Malditos ratos”, resmunga o pai. E todos são unânimes em dizer: “Se os lobos saírem de dentro das paredes, está tudo acabado.” “O que está acabado?”, pergunta Lucy. “Tudo”, diz a mãe. “Todo mundo sabe disso”, completa.
Pobre Lucy. Os ruídos continuam, cada vez mais apressados e alvoroçados. E, numa noite, as tais criaturas realmente aparecem. Mas, na realidade, Lucy descobre que nem tudo está perdido. Pelo contrário, quando os lobos saem, sua batalha está apenas começando. Exilada no quintal, a família tenta encontrar uma solução, enquanto os lobos assistem à sua televisão, comem a sua comida e dançam “danças lupinas” pela casa, até que a menina tem uma idéia: “Tem um monte de espaço nas paredes da casa. E pelo menos não é frio lá.”, diz ela. E a partir daí, foi a família de Lucy que rastejou pelas paredes rumo a um final surpreendente.
Um dos mais importantes e versáteis autores da atualidade, Neil Gaiman possui um talento multifacetado que se expressa de maneira inconfundível também nas suas obras dedicadas às crianças. Os lobos dentro das paredes é uma história emocionante que alia mistério, fantasia e o humor inteligente de Neil Gaiman, e ganha ainda mais força com as impressionantes ilustrações de Dave McKean. A Rocco detém os direitos de publicação dos livros infantis de Neil Gaiman no Brasil, sob o selo Rocco Jovens Leitores.

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Fio Puxado

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Exaurida, segurei a mão de minha mãe até o fim, no leito daquele hospital. Amanda veio junto. A menina acabara de fazer onze anos. Valéria não a queria por lá; achava que não era lugar de criança. Mas a menina bateu o pé: “Quero ficar com a Nana!” Aquelas bochechas gordinhas e rosadas eram muito fofas. Não dava para resistir.

Valéria era mãe solteira. O marido sumiu quando soube que estava grávida. “Não tenho vocação para ser pai”, disse o escroto. O pai de Valéria tinha morrido quando ela era pequena e a mãe era uma mulher que só sabia julgá-la, embora mal tivesse condições de seguir o próprio caminho.

Desempregada, sem família e quebrada, Valéria pensou em abortar. Até que apareci em sua vida. Eu sabia exatamente onde encontrá-la, sentada no ponto de ônibus em frente à clínica, soluçando com a maquiagem borrada. Na verdade, sabia de Valéria desde as minhas primeiras lembranças, quando vi uma girafa no zoológico de São Paulo.

Ajudei-a como pude. Ela era muito inteligente; estava no último ano da faculdade de Engenharia de Computação. Os livros eram caríssimos e ninguém queria contratar uma mãe com uma criança de colo. Eu sabia dessa época, quando as mulheres eram tratadas como cidadãs de segunda classe, mas sentia meu coração ferver de ódio mesmo assim. Uma coisa era a lembrança da infância; outra, vivê-la como adulta.

Passei um tempo sem saber o que fazer. O mundo era um lugar de céu e paredes cinzas. Sim, eu tinha dinheiro suficiente, mas Valéria era orgulhosa. “Não aceito caridade”, dizia.

De vez em quando ela me irritava. Era igual à mãe que eu conheci, teimosa como uma mula. “Gosto de dirigir”, minha mãe costumava dizer com o cigarro no canto da boca. “Quando dá três da manhã com a Janis Joplin no rádio e estou numa estrada de pista dupla lá no meio do país, com a chuvinha caindo no para-brisa fazendo pleque, pleque, pleque, é como se entrasse num túnel para outro mundo, outra realidade.” Viciada em rebite, capotou com seu caminhão no asfalto numa madrugada comum e deu perda total na minha infância.

Meus colegas de trabalho haviam me alertado, antes de eu embarcar nesta viagem, que mexer com o passado era errado: “O espaço-tempo é como uma malha de lã: se puxar um fio, a trama toda pode se desfazer”. Segurei firme o chaveiro e decidi ignorá-los. Valéria merecia uma segunda chance.

O plano parecia correr bem. Se driblei o seu orgulho ou se ela só se acostumou comigo, não tenho certeza. Aproveitei-me dos meus conhecimentos de engenharia, muito à frente daquela época, abri uma empresa de alta tecnologia e a contratei.

Consegui parte da minha fortuna com informações privilegiadas. Fiz poucos e certos investimentos no mercado de ações, o suficiente para lucrar muito sem chamar a atenção dos órgãos reguladores. A princípio, não tinha como perder: conhecimentos obtidos no futuro não eram ilegais. Uma tese corrente, a do efeito borboleta, não se confirmou: a minha viagem não alterou eventos do passado como loterias e jogos de futebol. Em contrapartida, criei uma fundação dedicada ao apoio e à educação de mães solteiras.

A empresa cresceu rapidamente e se tornou referência no mercado. Eu, por outro lado, comecei a ficar puída, a desbotar. Conhecimentos antes triviais começaram a se tornar escorregadios. De início, não dei muita bola; achei que era só estresse. Por via das dúvidas, comecei a anotar o que era importante, todos os teoremas e equações fundamentais para a construção da máquina do tempo.

Amanda, que se chamava de Nana desde pequenininha, passou bastante tempo comigo. Engraçado como me perdia na minha infância quando íamos para o zoológico — fiquei emocionada quando vi uma girafa — ou jogávamos videogame juntas. Ela adorava desenhar foguetes, robôs e inventar teorias sobre filmes de ficção científica. Eu, na medida do possível, contava pequenas coisas da minha vida, dos meus amigos e do meu trabalho. A prudência recomendava não compartilhar informações sobre o futuro, mas imaginava que não tinha problema. Afinal, como Nana era muito nova, provavelmente essas lembranças se perderiam como uma meia na lava-roupas do passado.

Valéria se formou com honras na faculdade e engatou um doutorado. Quatro anos mais tarde, defendeu a tese que tornou pública as bases da viagem no tempo. Admito que fiquei apreensiva por dias, pois não sabia se tinham criado uma polícia do tempo ou algo parecido. Nada aconteceu. Acho que às vezes espero demais da humanidade.

Um dia, assustei-me ao notar que estava no meio de um shopping center sem saber como havia parado lá. Era como se tivesse acordado do nada de um sono sem sonho. Nana puxava a minha mão, chorosa, falando para eu “acordar”.

Consultei um especialista e fiz uma série de exames. Entrei em câmaras que lembravam sarcófagos barulhentos. Enfiaram-me agulhas. Mediram-me como um rato. O resultado: câncer no cérebro em metástase. O médico olhou-me com espanto quando gargalhei com a notícia. Se tivesse ficado no meu tempo, isso não seria problema. De quando vim, um câncer no cérebro é tão fatal quanto uma picada de pernilongo. Mas hoje, neste ano, era como a peste negra.

Desafiando uma última vez os avisos de meus colegas do futuro, deixei uma carta para a minha mãe. Pedi para o enfermeiro papel e caneta e desandei a escrever com minha letra ruim. Não sabia quanto tempo me restava. Disse que a amava e que não me arrependia de nada. Disse que ela foi a mãe que nunca tive a oportunidade de conhecer direito e que Amanda a amava mais do que era capaz de admitir; que eu a amava mais do que podia admitir. Disse que a vida era um caminhão às três da manhã sob uma chuva fina no Mato Grosso e que era melhor tomar o volante e partir do que nunca pôr os pés na rua.

Valéria, minha mãe mais jovem do que eu, trouxe Amanda pela última vez. A menina, com os olhos vermelhos, me abraçou forte. “Não chore, vai ficar tudo bem, tenho certeza disso”, ela me disse. “Tome, uma lembrança pra você, era da minha mãe”, dei-lhe o chaveiro do caminhão.

Amanda ficava cada vez mais parecida comigo. Quer dizer, embora distintas, éramos a mesma pessoa. Sorri ao pensar que brincar com a sua versão infantil era filosoficamente divertido. Uma vez perguntei para Valéria se Amanda tinha esse nome por minha causa, mas ela não me respondeu.

Depois que a menina saiu do quarto, Valéria encostou a porta e, enquanto acariciava meus cabelos, prometeu: “Filha, vou montar a máquina que você projetou e vou te salvar, você vai ver, e vamos ficar juntas de novo nessa estrada”. Não falei nada, mas senti nela o cheiro forte de cigarro.

Esforcei-me para sorrir.

Minha mãe ficou comigo até o fim naquele leito de hospital.

 


Rodrigo Assis Mesquita, [deletado], é adepto da pré-pós-verdade, da liberdade dentro da cabeça e do brigadeiro de colher. Autor de ficção científica e fantasia, com contos e novelas publicados e despublicados, é criador do universo Brasil Cyberpunk 2115.