Com Conceição Evaristo pude ver com nitidez o que é uma escrita experiente. No narrar que possui intimidade com as palavras o poético precisa de algumas frases, toda uma vida pode ser contada em um conto curto e a voz literária consegue transmitir uma longa vivência. E o mais surpreendente é que os Olhos d’água atingi estes méritos ao olhar para o social.
O melhor que as palavras podem entregar
De inicio não posso deixar de destacar a poesia certeira e impactante. Jamais esquecerei a fala da menina protagonista do primeiro conto:
“A minha mãe costurou a vida com um fio de ferro”.
A autora não precisou de várias estrofes e solta a frase que sintetiza o olhar da filha sobre a vida da mãe. Há várias longas poesias contidas em pequenos trechos como o exemplo citado. Elas chagavam e ao lê-las me permitia dar uma pausa na leitura e pensava no curto encadear de palavras capaz de expressar tanto sentimento.
Menos é mais
O muito com pouco também está nos contos com poucas páginas. Confesso que as histórias pequenas eram um convite tentador a leitura rápida. Porém, o carinho da autora em relatar tristezas me acalmou e criou um desejo constante pela releitura. Querer voltar e encontrar um novo detalhe caminhou junto com o alimentar da imaginação.
No final de cada trajetória de uma mulher sofrida a minha mente conseguia conceber a infância, adolescência e vida adulta da personagem relatada. Muitas histórias que já li se encolhem ao final ou se perdem no decorrer do tempo. Ao ler Olhos d’água só consigo falar do expandir. A curiosidade sobre os personagens só cresce e consigo preencher cada detalhe deles com o que as próprias histórias me entregaram. É a mão experiente da Conceição Evaristo que entrega muito através de pequenos detalhes.
O final chega e o livro fica
A pós leitura é tão importante quanto o ato de ler. Há reflexão pelas realidades sofridas retratadas como também um sentimento de deslumbramento ao lembrar do narrar de forma bela as tristezas. Impossível não tentar fazer o mesmo para tentar conviver com uma fonte de lágrimas. Após encerrar alguns contos senti vontade de pegar papel e caneta para tentar rabiscar um parágrafo. Da mesma forma que Conceição Evaristo tentei relatar as minhas tristezas de forma desnuda. Sem acumulo de floreios; palavras; pensamento ou qualquer tipo de enredo mais elaborado. Uma obra que incentiva este modo de criar merece ser elogiada.
O errar
Pensar nas tristeza e esquecer a realidade parece irracional. Em cada um dos contos é possível refletir sobre desigualdade social, injustiça, pobreza e violência. A autora pode marcar presença na lista de autores e autoras que sabem usar a beleza do narrar para denunciar existências distantes das alegrias. Para retratar as vivências de pessoas pobres é usado o errar.
Com maestria a autora mostra que o “errar” quando está lado do pobre tem um peso maior. O preço pago é muito alto por um deslize, um não seguir as regras imposta pela sociedade. Falei tanto sobre o olhar sensível da autora que forma uma união perfeita com a escrita poética. A respeito destes mesmos olhos elogio o olhar afiado e experiente da autora sobre o social.
Um convite para chorar
Não espere por finais felizes ou algo do tipo. O livro tem o objetivo de mostrar evidências das injustiças nas zonas periféricas. Trata-se de uma escolha narrativa que sempre deve ser elogiada. Entretanto, em alguns contos, o dramático ultrapassa as linhas da verossimilhança e torna-se exagerado. Nestes contos a autora já tinha me emocionado e mesmo assim encerrou as histórias com uma tragédia desmedida. Excesso de drama? As vezes é o meu olhar que insiste em enxergar cores em realidades manchadas de sangue.
Entrego sem receio
É fácil indicar este livro para qualquer pessoa. Para o leitor iniciante existe a linguagem acessível; histórias curtas e enredos simples. Quem já possui muitos livros em uma prateleira amará o poético; as críticas sociais e a voz literária tão pulsante. Se você tem qualquer vontade de ser escritor ou escritora vai preencher umas folhas em branco após passar pelos contos. E, por fim, o amante da literatura nacional; do olhar feminino e de ver a vida do povo negro retratada terá um livro para chamar de perfeito.
Nota
Garanta a sua cópia de “Olhos d’água”!
Ficha Técnica
Título: Olhos d’água
Autora: Conceição Evaristo
Editora: Pallas
Páginas: 116
Ano: 2014
ISBN: 9788534705257
Sinopse: Em Olhos d’água Conceição Evaristo ajusta o foco de seu interesse na população afro-brasileira abordando, sem meias palavras, a pobreza e a violência urbana que a acometem.
Sem sentimentalismos, mas sempre incorporando a tessitura poética à ficção, seus contos apresentam uma significativa galeria de mulheres: Ana Davenga, a mendiga Duzu-Querença, Natalina, Luamanda, Cida, a menina Zaíta. Ou serão todas a mesma mulher, captada e recriada no caleidoscópio da literatura em variados instantâneos da vida? Elas diferem em idade e em conjunturas de experiências, mas compartilham da mesma vida de ferro, equilibrando-se na frágil vara que, lemos no conto O cooper de Cida, é a corda bamba do tempo.
Em Olhos d’água estão presentes mães, muitas mães. E também filhas, avós, amantes, homens e mulheres – todos evocados em seus vínculos e dilemas sociais, sexuais, existenciais, numa pluralidade e vulnerabilidade que constituem a humana condição. Sem quaisquer idealizações, são aqui recriadas com firmeza e talento as duras condições enfrentadas pela comunidade afro-brasileira.
Conceição Evaristo é mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense. Suas obras, em especial o romance Ponciá Vicêncio, de 2003, abordam temas como a discriminação racial de gênero e de classe. A obra foi traduzida para o inglês e publicada nos Estados Unidos em 2007.