[Resenha] Torto Arado – Itamar Vieira Junior

Capa do livro. Ilustração mostrando em primeiro plano duas figuras femininas lado a lado e de mãos dadas, na outra mão, cada uma segura uma longa folha verde. Suas roupas são bem coloridas, e sua pele é totalmente preta e não possuem faces. O fundo é cor creme, e no topo, em laranja, o nome do livro, e de preto o nome do autor.
Capa do livro. Ilustração mostrando em primeiro plano duas figuras femininas lado a lado e de mãos dadas, na outra mão, cada uma segura uma longa folha verde. Suas roupas são bem coloridas, e sua pele é totalmente preta e não possuem faces. O fundo é cor creme, e no topo, em laranja, o nome do livro, e de preto o nome do autor.

Torto Arado, vencedor do prêmio Leya 2018, foi capaz de me mostrar que a injustiça não se define em um ato. Dela pode surgir um acontecimento catártico provedor de muita tristeza. Mas neste acontecimento há um pedaço e, não o total, que forma o injusto. Itamar Vieira Junior mostra que a injustiça costuma ser um elemento presente em cada aspecto da vida de muitos brasileiros. Uma reflexão alcançada somente ao entrar em contato com o primor narrativo.

Sentir para entender

Posso entender um problema social em uma sala de aula, em uma palestra e até mesmo em um texto em uma rede social. Compreender é o suficiente? Obras como Torto Arado tem o poder de fazer o leitor sentir as chagas sociais para que o entender torne-se uma cicatriz no consciente.

Em nenhum momento há uma tentativa de ser didático para explicar qual o problema. O autor conta a história das irmãs Bibiana e Belonísia no interior da Bahia para mostrar as falhas na sociedade. Não existe um forçar dramático. Por toda a narrativa fica nítido que a relação das personagens com o trabalho, a terra, a família e a cultural local é a mesma de diversos brasileiros. Então por que a obra foi tão marcante?

Alma de clássico, corpo moderno

Deve-se elogiar a linguagem. O texto narrado tanto por Bibiana como também por Belonísia é rico. Em cada frase é transmitida uma forma de enxergar a vida, a cultura local e um jeito de falar específico. Personagens com vozes tão vivas que não pensei em um autor tomando nota de cada linha de vida falada. A imersão foi tamanha que imaginei-me na casa onde elas foram criadas e ouvi a história como se eu fosse um parente ou amigo próximo. Só encontrei algo semelhante nos clássicos, entretanto, o autor sabe imprimir na narrativa a fluidez da literatura moderna.

É incrível como o tom de relato, que por muitas vezes se mistura ao confessional, é dinâmico. Durante a leitura foi fácil imaginar a obra sendo adaptada para o audiovisual. Complemento este ponto destacando o início da história. Toda a tensão criada que flerta com o místico prende o leitor. Foi um dos melhores inícios de livro que já vi. O interessante é que o autor faz esta excelente construção e não se apega a ela. Ao longo de Torto Arado há diversos tons que permeiam a fluidez, não só a tensão do começo. A obra transita nos diversos sentimentos gerados pela injustiça.

A avó, o pai e as filhas

Desde cedo Bibiana e Belonísia trabalham na terra que “pertence” a outro, ao senhor. Esta é a mesma realidade do pai, mãe, avó e tios delas. Cada geração tem uma relação diferente a injustiça gerada pelo fato de trabalhar na terra, entendê-la, cuidar dela e não poder chamá-la de “minha terra”. Através deste cenário opressor é mostrado a revolta, a reflexão, o medo, o respeito e a esperança. Nestes sentimentos que envolvem toda relação familiar bem construída existe um evoluir.

Com esmero o autor mostra como de geração em geração cresce um sentimento de revolta. Não existe um estopim de consciência social que gera uma luta por direitos. Tudo é construído aos poucos. É o urbano com as escolas e os sindicatos que se aproxima do campo. Existe o primo questionador que não é amplamente apoiado, mas também não é calado. Há a filha que viu na realidade da mãe, da avó e do pai a necessidade por mudança. E, por fim, é o descaso dos chamados “donos da terra”. Ao ver esta construção narrativa é impossível não se sentir imerso e questionar a própria realidade.

Reflexão

Ao decorrer da leitura imaginei a vida dos meus pais, avós, bisavós… da minha família. O autor faz diversas críticas sociais latentes no passado, mas que infelizmente não acabaram. Senti o sofrimento das minhas gerações. Trabalho desumano, falta de comida, violência doméstica, ausência do poder público e assassinatos. Várias chagas sociais que crescem em meio ao sentimento de posse. “É meu” ou “É minha” são frases ditas quando justiça ou direitos são exigidos. Entendi a visão do autor porque ele mostrou a vida e as vidas que cercam Bibiana e Belonísia.

Detalhes além do social

O livro tem como base as excelentes críticas sociais. Como falei, não há didatismo e no mostrar através de um contar pude sentir para depois entender. A linguagem por si só já é um grande atrativo e pode ser objeto de estudo para qualquer escritor. Além de tudo isso, há outro elemento que não está inteiramente ligado ao social e que é bem utilizado na obra. Refiro-me aos detalhes.

No livro o autor tem um cuidado especial com as pequenas coisas. Uma faca, uma mala, moscas ao redor da roupa de couro, um vestido e um simples chapéu são inseridos com o contar cheio de lembrança e dão tempero para a obra. É mais um ponto de acerto que deixa a história verossímil.

Obra que entrega muito

Só existem elogios a narrativa do Itamar Vieira Junior. Obtive reflexões e compreensões devido às críticas sociais; construí apego aos personagens com uma voz literária marcante; o cenário longe do ideal, mas com uma evolução, deram-me certo otimismo e os detalhes capazes de transformar uma leitura em lembranças geraram encanto. Desejo que todos possam ser impactados como fui com este livro. Há aqui no Leitor Cabuloso o episódio 59 do podcast Boteco dos Versados sobre a obra. Leia e ouça o cast, você vai sentir e entender parte importante da nossa realidade.

Nota

Cinco selos cabulosos. A maior nota do site.
Cinco selos cabulosos. A maior nota do site.

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Ficha Técnica

Título: Torto arado
Autor: Itamar Vieira Junior
Editora: Todavia
Páginas: 264
Ano: 2019
ISBN: 9786580309313
Sinopse: Um texto épico e lírico, realista e mágico que revela, para além de sua trama, um poderoso elemento de insubordinação social. Vencedor do prêmio Leya 2018

Nas profundezas do sertão baiano, as irmãs Bibiana e Belonísia encontram uma velha e misteriosa faca na mala guardada sob a cama da avó. Ocorre então um acidente. E para sempre suas vidas estarão ligadas, a ponto de uma precisar ser a voz da outra. Numa trama conduzida com maestria e com uma prosa melodiosa, o romance conta uma história de vida e morte, de combate e redenção. Um texto épico e lírico, realista e mágico que revela, para além de sua trama, um poderoso elemento de insubordinação social.