Fui amaldiçoado pela Aurora nas Sombras. Apesar de não se tratar de um livro sobre ocultismo, a maldição aconteceu. Estou longe de encontrar uma solução para este feitiço atormentador chamado curiosidade. E o pior é que ao terminar a história em quadrinhos de Fabien Vehlmann e Kerascoët os efeitos do enfeitiçar se acentuaram em vez de chegar ao fim.
Não é só uma vontade de querer desvendar um enigma. Trata-se de um desejo de conhecer muito mais cada aspecto de uma obra onde selvageria e graciosidade convivem bem (são tão íntimas que fui capaz de ignorar o fato delas serem tão diferentes). Já revelo que nem uma releitura quebrou a maldição que se apossou facilmente da minha alma curiosa. O que fazer? A impossibilidade de obter todas as respostas é o que faz esta obra ser incrível.
Instigante desde o começo
A premissa é simples e vai além de uma referência a Alice no País das Maravilhas: é uma grande homenagem a obra de Lewis Carroll. A protagonista de vestido branco com bolinhas azuis toma um chá com alguém em quem possui grande interesse amoroso. No meio deste encontro, e sem nenhum motivo, vai parar em outro mundo. Caso eu comece a contar para onde ela foi e por onde saiu, a curiosidade terá início, mas a experiência será prejudicada. Este não saber, imaginar e avançar na história é o que marca a experiência de ler Aurora nas Sombras.
Apenas resvalar
De início, a personagem avança para conhecer o mundo desconhecido e a sobrevivência começa como algo belo, quase divertido. Fiquei curioso para saber onde ela estava, quem eram os personagens que surgiam e quais as intenções dos artistas. O ponto alto desta obra é que senti que estava cada vez mais próximo das respostas, mas não as alcancei por completo. Acredito que esta é a intenção da Aurora nas Sombras. Esta constante sensação de “quase lá” em conjunto com a arte e narrativa maravilhosas torna a HQ única. Por muitas vezes tive vontade de ir em fóruns ou ler resenhas da internet para comparar as minhas interpretações e teorias com a de outros leitores. Logo a vontade encolheu-se porque a história envolveu-me em uma teia de acontecimentos curiosos. Além disso, uma aura macabra vai eclodindo e seguindo uma crescente cada vez mais sinistra.
Sangue e aquarela
A violência retratada nas páginas, lindamente ilustradas com a intenção de ser um cenário de conto de fadas infantil, é assustadora. Entretanto, é justificada a partir da utilização de diversos elementos. Há o simbolismo ao redor de tudo que cerca a personagem. Existe até um grande símbolo exposto de forma gigantesca para representar a selvageria e confesso que demorei para notá-lo. Fiquei encantado pelas paisagens exuberantes e pelas expressões carismáticas da protagonista. Este deixar se envolver pela flauta de Hamelin me fez ficar chocado quando o macabro tomou conta das páginas por completo. Depois de encerrar a leitura e voltar chocado para a primeira página, o sinistro estava presente desde o início. Esperar por um final doce e esclarecedor para acalmar o coração foi uma tolice.
Virei um curioso
Aurora nas Sombras desperta curiosidade a cada virar de página. A minha vontade de ver detalhes e mais detalhes de cada acontecimento foi enorme. Tive vontade de ler um livro de novecentas páginas sobre esta história para não só conhecer mais sobre o universo ficcional como também para ver o desfecho dos habitantes daquele local. Eles que são inseridos e logo são arrebatados por uma selvageria. Este elemento negativo da existência está presente tanto no cenário de sobrevivência como também no cerne de muitos personagens.
A única “imune” a ferocidade é a protagonista. Isso fez com que eu me entristecesse com as desilusões dela. A história avançou e em um primeiro momento me surpreendi com a evolução da personagem. Depois entendi que a internalização, o elemento final da evolução da garota de vestido branco com bolinhas azuis, era inevitável naquele mundo. O final é chocante. Entendi o que aconteceu, mas não deixei de ficar surpreso com a atitude final de alguém tão doce e gentil no começo da história.
A violência pela violência?
Quando terminei a HQ de Fabien Vehlmann e Kerascoët uma pergunta latejava na minha cabeça:
“Por que tão violento?”
Acredito que esta pergunta é a catalisadora de todas as outras que surgem após o final. É difícil não divulgar as interpretações obtidas e serei conciso sobre a minha. Antes de fazê-la, faço um adendo: é ideal que você leia a HQ antes de ver qualquer interpretação para não ser influenciado. Quando você começar a ter as suas interpretações, achará o máximo não ter sido exposto a nenhuma ideia ou concepção alheia.
O meu olhar
Em minha leitura vi uma obra sobre amadurecimento e perda da inocência. A personagem principal nota que o príncipe encantado é uma ilusão; que o mundo adulto é marcado pela morte da infância onde tudo deixa de ser diversão para torna-se sobrevivência; atos bondosos muitas vezes não serão replicados e serão corrompidos e, por fim, a natureza é um lugar lindo, porém cruel. O belo é só uma forma de ocultar o selvagem e a selvageria é a essência da natureza. Não há como lutar contra esta verdade. A personagem a internalizou e depois de internalizar, não há volta.
Fácil de avaliar
Já fiz várias resenhas para o Leitor Cabuloso e sou péssimo para dar nota. Por muitas vezes me incomodo com o fato de numerar uma experiência gerada por uma peça artística. Com esta HQ foi muito fácil. Obras como estas colocam sentido na nota 5. É uma arte sequencial que fomenta desejo da releitura, de pesquisar a respeito e de mostrar as páginas tão belas para aquele amigo entusiasta de quadrinho. Quero que todo mundo leia esta obra de arte para me apontar detalhes que não percebi, sensações ao lê-la e interpretações sobre tudo que a compõe. Não é uma obra para ficar na estante. É algo para ser lido, relido e ter novas surpresas macabras ao frequentar tanto a aurora como também as sombras.
Nota
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Ficha Técnica
Nome: Aurora nas Sombras
Autores: Fabien Vehlmann e Kerascoët
Tradução: Jolies Ténébres
Editora: Darkside
Ano: 2019
Páginas: 96
ISBN: 9788594541642
Sinopse: Um grupo de pequenos seres é obrigado a sair do lugar aconchegante onde mora e iniciar uma luta pela sobrevivência em um mundo terrível. Tudo parece dentro dos conformes, certo? Bem, mais ou menos. A casa deles era o cadáver de uma garotinha estirado no meio da floresta, e o lugar para onde eles vão não é nada mais, nada menos que o mundo que conhecemos como nosso.
Depois de provocar pesadelos com Floresta dos Medos, de Emily Carroll, e viver uma aventura fantástica com Francis, de Loputyn, a DarkSide® Books convida os leitores a embarcar em uma jornada um tanto quanto sinistra com Aurora nas Sombras.
Indicado ao Prêmio Eisner em 2015, o quadrinho, escrito por Fabien Vehlmann e ilustrado pelo casal Marie Pommepuy e Sébastien Cosset (que assina como Kerascoët), conta a história da doce Aurora e seus amigos conforme eles viajam por um mundo estranho. Cercados por perigos e incertezas, eles se veem confrontados por situações extremas que despertam sentimentos como inveja, egoísmo, rancor e ganância. Formar alianças fica cada vez mais difícil, e quando o grupo começa a se desestruturar, Aurora se vê diante de um dilema: até onde ela está disposta a ir para sobreviver?
Aurora nas Sombras é a verdadeira definição de um pesadelo açucarado. Não se deixe enganar pelo traço fofo e aquarelado desta graphic novel: ela pode ser atraente aos olhos, mas é perturbadora na mesma medida. Assim como o mundo em que vivemos.
Ecoando a aura estranha e nonsense de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, aos olhos de David Lynch, e os dilemas morais de O Senhor das Moscas, de William Golding, Aurora nas Sombras mistura o meigo e o brutal para abordar temas como o desmoronamento da civilização e a morte da inocência. É impossível não admirar os tons pastéis das ilustrações, mesmo que, enquanto faz isso, você esteja refletindo sobre os horrores da vivência humana.
Aurora nas Sombras chega para fazer parte do selo DarkSide® Graphic Novel, em uma edição de colecionador caprichada e feita para resistir a qualquer passeio na floresta.