Os mais notórios e terríveis centavos #04: Incêndio na Mansão Lira – Clarice França

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Editora Triquetra e Leitor Cabuloso “Apresentam concurso literário Triquetra Cabulosa ‘Os Mais Notórios e Terríveis Centavos conto #04’. “Incendio na mansão lira - clarice frança”. Ao lado do título, a capa do livro: Capa com fundo de recorte de jornal. Sobre o fundo, um retângulo que lembra uma edição antiga de Penny Dreadful. Nele, está escrito em preto, em fonte de jornal: Contos da Triquetra Cabulosa, Os Mais Notórios e Terríveis Centavos” (título grande em cor vermelha no meio da capa). Em primeiro plano, sobre o fundo e o retângulo, colagens de ilustrações das Penny Dreadful originais em vermelho e preto. Fundo cinza escuro com efeito papel e respingos de tinta vermelha no canto superior direito.
Editora Triquetra e Leitor Cabuloso “Apresentam concurso literário Triquetra Cabulosa ‘Os Mais Notórios e Terríveis Centavos conto #04’. “Incendio na mansão lira - clarice frança”. Ao lado do título, a capa do livro: Capa com fundo de recorte de jornal. Sobre o fundo, um retângulo que lembra uma edição antiga de Penny Dreadful. Nele, está escrito em preto, em fonte de jornal: Contos da Triquetra Cabulosa, Os Mais Notórios e Terríveis Centavos” (título grande em cor vermelha no meio da capa). Em primeiro plano, sobre o fundo e o retângulo, colagens de ilustrações das Penny Dreadful originais em vermelho e preto. Fundo cinza escuro com efeito papel e respingos de tinta vermelha no canto superior direito.

Incêndio na Mansão Lira

Clarice França

 

A situação de São Paulo nunca foi perfeita. Mesmo que algumas pessoas a vendessem como a cidade dos sonhos, da estabilidade e das oportunidades de ganhar dinheiro, isso nem sempre era realidade, ou era apenas para um grupo muito específico de pessoas. Isso só piorou com as crises mais recentes do começo dos anos 2020. 

Enquanto Patrícia caminhava pela cidade rumo a seu destino, ela via cenas que ficavam cada vez mais comuns em muitas regiões da cidade. As pessoas vagavam sem rumo, quase como zumbis, procurando comida onde podiam, pedindo ajuda para os poucos carros das pessoas que estavam em uma situação um pouco melhor. Mesmo assim, ninguém que realmente tinha dinheiro andava por aquela região. Do jeito que a crise estava, com cada vez mais desempregados e preços nas alturas, os que tinham dinheiro se refugiavam em pontos escolhidos da cidade.

Era revoltante. Patrícia ouvia Pedro, seu irmão mais novo, reclamando disso com frequência, mas ela só queria resolver os problemas imediatos e não pensar muito além. Na situação atual, “resolver os problemas imediatos” significava botar comida na mesa e arrumar dinheiro para os pais. 

Patrícia acreditou ver uma luz no fim do túnel ao saber da família “mais filantropa” de São Paulo. Os Lira eram uma das famílias com mais dinheiro, conhecida por ajudar pessoas necessitadas. Quando eles contratavam alguém, as condições financeiras da família do contratado melhoravam muito. A situação era tão boa que as pessoas praticamente não voltavam para suas antigas casas, se dedicando inteiramente aos Lira e só mandando o dinheiro para a família. Pedro não recebeu bem a intenção da irmã.

— Tá doida? Até onde a gente sabe, podem estar sumindo com geral. A última história que ouvimos lá da rua é que o filho do entregador ganhou uma bolsa de estudos na Europa, mas eu digo que é papinho isso aí! — reclamou Pedro. — Eles até podem ser os menos piores, mas não dá pra acreditar nessa gente.

— Doida não, Pedro, eu tô com fome — respondeu Patrícia. — E cansada, preocupada e precisando de grana. Nós todos estamos. Fico só uma temporada. Não importa o que eles digam, prometo que não fico lá para sempre.

Pedro reclamou mais um pouco, mas Patrícia ignorou o irmão. Estava acostumada a evitar problemas; a vida já trazia o suficiente. Quando mais nova, arrumava brigas na escola sem muito motivo. Chegou a morder o braço de um garoto que tinha tentado bater nela. Levou a maior bronca de todas em casa, um dos eventos de sua infância que a tinha moldado.

Patrícia começaria a trabalhar na casa dos Lira como garçonete. Não teve muitas entrevistas ou processos seletivos, eles só pediam informações pessoais e um currículo breve. Era bom demais para ser verdade, e continuou achando isso quando estava diante da mansão nos Jardins, em uma das poucas ruas que não tinha gente revirando lixo para comer.

A mansão era maior por dentro do que aparentava ser por fora. Havia ali equipamentos de última tecnologia, com aparelhos funcionando por comando de voz ou sensores de aproximação. Ainda assim, a família Lira contava com um grande número de funcionários; todos eles pareciam estar muito satisfeitos. No primeiro dia, Patrícia foi recebida por uma faxineira bem jovem, com olhos grandes e brilhantes, e uma tatuagem de borboleta no pulso.

Durante sua primeira semana, foi apresentada a seu quarto e a toda a ampla cozinha pelo cozinheiro-chefe. O ambiente tinha um cheiro de comida que, em um primeiro momento, parecia bom, mas Patrícia sentia algo estranho bem no fundo daquele aroma, e não sabia dizer direito o que era. Parecia um cheiro de ferrugem, como se algum equipamento não estivesse em seu melhor estado. O cozinheiro ensinou a ela a cuidar de todos os cantos da cozinha, mas deixou muito claro que a porta dos fundos era um frigorífico no qual só pessoas autorizadas podiam entrar — e ela não era uma dessas pessoas.

Não à toa, sempre que estava na cozinha, enquanto seguia com suas atividades diárias e sentia o aroma de ferrugem no ar, o olhar de Patrícia sempre pousava na porta secreta.

O quarto de Patrícia era próximo do quarto da moça dos olhos brilhantes, e ela parecia ter algum nível de sonambulismo, porque Patrícia a ouvia resmungar dormindo às vezes. Era fofo. Patrícia só percebeu que a moça não estava mais dormindo ali quando começou a perceber as noites mais quietas que o normal.

— Ela viajou com um dos filhos mais velhos dos Lira — explicou o cozinheiro, quando questionado por Patrícia. — Foram para a Europa. Ela nunca saiu do país, deve estar adorando.

Patrícia não via sempre os filhos da família Lira. Eram cinco, pelo menos, e apareciam de vez em quando. Interagiam muito menos com os funcionários do que os pais. Todos tinham a pele perfeita, sem marca nenhuma. Raramente pareciam cansados. Quanto tinham alguma olheira, bastava uma boa refeição para parecerem perfeitamente revigorados.

— Nosso cozinheiro é o melhor do Brasil — costumava dizer o dono da casa, o renomado juiz Marcos Lira.

Patrícia sempre tinha a mesma missão: servir o chá da noite para Marcos, sempre às 22h30 em ponto. Ela esperava a bandeja na cozinha, um pouco antes do horário estipulado. Nunca mudava: era apenas uma xícara com um líquido avermelhado dentro. Qual tipo de chá era? Patrícia não tinha ideia. No começo, ignorou. Com os dias, porém, foi ficando cada vez mais curiosa para saber a composição daquele chá. Parecia sentir nele o cheiro esquisito impregnado na cozinha. 

Naquela noite, o cozinheiro estava mais atarefado do que o normal. Os filhos da família tinham viajado para uma casa de praia, menos o mais velho, que estava na Europa. Mesmo com menos pessoas para atender, no final das contas a redução do trabalho diário era bem pequena. 

A senhora Lira chegou mais tarde do que o costume e não tinha jantado ainda, o que a deixou de mau humor. “Os Lira ficam irritados quando estão com fome”, era o ditado da casa. Bom, todas as pessoas do mundo ficavam, mas a maioria não tinha o privilégio de bater o pé e ter um prato quente servido em sua sala. Enquanto o cozinheiro demorava para trazer o guardanapo, por conta da afobação, Patrícia acabou cedendo um pouco à curiosidade e inclinou o nariz sobre a xícara, sorvendo o aroma do chá mais de perto.

Tão rápido quanto se curvou, ela levantou o rosto de volta, se afastando do cheiro.

Precisou se controlar para não tossir violentamente, tentando se livrar do odor incômodo que tomou conta de suas narinas. Era aquele cheiro de ferrugem, mas mais intenso, que fazia o estômago embrulhar.

Na mesma hora, sentiu um puxão em sua orelha e a voz do cozinheiro:

— O que pensa que está fazendo?! — reclamou ele. Quando Patrícia virou para encará-lo, encontrou uma expressão muito mais preocupada do que de irritação. — Você sabe a regra: nunca mexa na comida da família!

Patrícia pensou em responder que não tinha mexido, não exatamente, mas preferiu evitar a possibilidade de perder o emprego, se não ficaria sem chegar perto de comida nenhuma.

Subiu vários lances de escada até chegar ao quarto do senhor Marcos. Como sempre, parava diante da porta e batia, esperando permissão para entrar. Patrícia estava prestes a fazer isso, quando ouviu um barulho do lado de dentro. Geralmente teria ignorado; sabia evitar brigas de casais, mas não foi apenas uma discussão.

Patrícia jurava que tinha ouvido um grunhido pouco humano.

Nada humano.

O susto a faz hesitar. Sabia que não havia animais na casa; a senhora Lira não gostava de animais. O segundo barulho fez Patrícia ficar ainda mais assustada, porque o grunhido agora era uma mistura de som animalesco com humano, incluindo um tom de frustração.

Patrícia bateu na porta rapidamente, ainda ouvindo um murmúrio. No mesmo instante, todo o som cessou do lado de dentro, e Patrícia ficou com medo de levar mais um puxão de orelha. Podia ter interrompido algo. Estalos eram ouvidos do outro lado da porta, até o silêncio tomar conta do ambiente de novo e logo ser substituído por:

— Pode entrar.

Patrícia abriu a porta e não encontrou nenhum animal. Marcos Lira estava em sua poltrona, como sempre muito elegante. À sua frente, estava sua esposa. Mostrava uma cara de poucos amigos, bem diferente dos sorrisos estampados em suas aparições públicas. Já era uma mulher magra, mas naquele instante parecia ainda mais, com olheiras mais profundas e maçãs do rosto evidentes. Nunca a tinha visto tão “descuidada”, levando em conta os padrões da família.

— Vá comer e depois conversamos — falou Marcos e, como se fosse uma ordem dada a um dispositivo eletrônico, a senhora Lira se retirou do quarto. 

Controlando a curiosidade, Patrícia se aproximou, serviu o chá e se retirou rapidamente. Com o tempo, ela foi percebendo que Marcos sempre dava uma cheirada no chá antes de tomá-lo. Agora que sabia qual era o cheiro, não entendia bem como o patrão conseguia fazer isso.

Patrícia desceu as escadas para deixar a louça na cozinha. Geralmente a equipe estava em outros cômodos naquele horário, mas, ao contrário do que costumava acontecer, o cozinheiro também não estava lá. Ao passar pela sala de jantar, Patrícia ouviu o cozinheiro servindo a senhora Lira. A patroa parecia faminta. Nunca a tinha visto assim. Mesmo espiando com o canto do olho, e vendo expressões esquisitas no rosto dela, ainda optou por não dar muita atenção.

Estava sozinha, lavando e guardando a louça usada. Naquele momento de solidão, Patrícia voltou a sentir o cheiro de ferrugem no fundo da cozinha. Ninguém comentava, e às vezes outros odores entravam no meio do caminho. Depois de dias com essa dúvida na cabeça, porém, Patrícia resolveu ceder um pouco à curiosidade. Afinal, já tinha até arrumado coragem para examinar melhor o chá.

Qual era a pior coisa que podia acontecer?

Atenta para qualquer som que viesse de fora, Patrícia entrou com cuidado no cômodo. A porta não estava trancada, provavelmente pelo fato de o cozinheiro ter se apressado para alimentar a senhora Lira.

Patrícia preferia que estivesse trancada.

Preferia que não tivesse aberto aquela porta, que tivesse só lavado a louça e ido embora.

O cheiro de ferrugem ficou mais intenso e ela se arrependeu de ser tão curiosa.

A parte de dentro do cômodo era como um pequeno açougue, mais gelado do que a cozinha, com pedaços de carne pendurados. O problema é que Patrícia conseguia identificar membros pendurados. Não eram de animais, como no mercado.

Eram braços e pernas humanos.

Um dos braços tinha uma flor tatuada perto do pulso.

A moça dos olhos brilhantes não estava adorando a Europa…

Patrícia sentiu seu estômago revirar, em um misto de medo, nojo e até mesmo raiva. Quis vomitar. Controlou-se para não deixar o vômito subir pela garganta e pensou que, talvez, se saísse de lá e fechasse a porta, a cena toda poderia sumir e ser só parte de sua imaginação. 

Mas não era tão simples assim.

Principalmente quando ela percebeu passos vindo atrás dela. A porta já estava se fechando quando Patrícia se virou, sentindo a tontura do enjoo afetar sua cabeça. Entre ela e a porta fechada, estava Marcos, que não parecia feliz nem surpreso.

— É uma pena quando isso acontece — falou Marcos, ajeitando as mangas compridas da blusa que estava usando. Devia ter descido para checar a esposa e encontrou seu segredo quase saindo pela porta secreta da cozinha. — Já fazia algum tempo desde a última vez… 

Patrícia só conseguiu gritar. Talvez como uma expressão de frustração ou um pedido de socorro. Não importava o motivo do grito, porque ele cessou no próximo momento, quando Marcos avançou e botou a palma da mão sobre a boca de Patrícia.

Ela ainda pensou em ficar quieta, esperar passar, mas se o fizesse viraria um pedaço de carne pendurado.

Tudo que se seguiu aconteceu em poucos segundos. 

Patrícia sentiu o gosto de ferro em sua boca, enquanto seus dentes entravam na pele de Marcos.

Um gemido de dor. A adrenalina passando pelas veias de Patrícia, que a fez empurrar Marcos contra a parede.

O patrão não estava acostumado com pessoas o desafiando e lutando contra seu domínio, mas o instinto de sobrevivência de quem lutava para viver era forte.

A cabeça de Marcos bateu contra a parede. Um rastro de sangue pintou a superfície enquanto ele escorregava até o chão, desacordado, mas ainda respirando.

O cheio de ferrugem apenas aumentou. O transe da situação fez que Patrícia não percebesse os barulhos vindo do lado de fora. No lugar disso, seu corpo começou a se mover sozinho. 

Precisava sair dali, precisava dar um jeito de sumir antes que alguém chegasse. Não importava quantos cadáveres estavam ali desmembrados, nem a intenção de autodefesa de Patrícia. Qualquer palavra de Marcos seria mais convincente para a polícia do que todos os argumentos e evidências que ela pudesse apresentar.

Quando saiu da cozinha, Patrícia ouviu um som. Não soube definir o que era. Algo surgiu diante de seus olhos, e parecia ser uma versão bestial da senhora Lira. Podia ter escapado do açougue humano, mas não via como se livrar daquela fera em corpo de gente.

Para sua sorte, a criatura também foi nocauteada. Uma das panelas mais pesadas da cozinha se chocou contra a parte de trás de sua cabeça. Só quando o corpo caiu foi que Patrícia viu o cozinheiro logo atrás.

— Você sabia — acusou-o Patrícia.

— Você não devia ter entrado! — reclamou o cozinheiro. — Agora nós seremos a próxima refeição!

— Nós seríamos uma hora ou outra, porra! — retrucou Patrícia. — Me ajuda a dar um jeito nisso ou fica pra virar comida, você escolhe.

Talvez alguma parte do cozinheiro sempre tivesse alimentado o desejo de se revoltar. Havia visto tantos colegas serem comidos como um pedaço de porco suculento, em um prato elegante, enquanto a família se divertia com qualquer conversa banal, deixando os restos humanos alimentarem e rejuvenescerem seus corpos. Patrícia podia ter sido o último impulso de que ele precisava, ou talvez só estivesse assustado de ser vítima de outra situação horrível. De uma forma ou de outra, o instinto de sobrevivência falou mais alto.

Na manhã seguinte, o jornal noticiou o incêndio da mansão Lira. Dois cadáveres foram encontrados. Os filhos voltaram de viagem, em luto. Patrícia, o cozinheiro e os outros funcionários afirmaram ter sido liberados naquela noite trágica de sexta-feira, logo após o jantar. E o incêndio da mansão Lira se tornou mais um dos mistérios da cidade.

 

FIM

 

Clarice França é escritora e roteirista premiada. É autora do livro de fantasia urbana A Guardiã do Sonhar e o conto de scifi Oculi. Já participou de coletâneas de HQs premiadas como Gibi de Menininha Vol. 1 (vencedor de Melhor Publicação de 2018 pelo Ângelo Agostini e Melhor Publicação Mix de 2018 no HQ Mix) e Gibi de Menininha Vol. 2 (vencedor de Melhor Publicação de Fantasia/Aventura/Terror de 2019 no HQ Mix).