Os mais notórios e terríveis centavos #02: Sabor de Sangue – Gabriel Martins

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Editora Triquetra e Leitor Cabuloso “Apresentam concurso literário Triquetra Cabulosa ‘Os Mais Notórios e Terríveis Centavos conto #02’. “sabor de sangue - gabriel martins”. Ao lado do título, a capa do livro: Capa com fundo de recorte de jornal. Sobre o fundo, um retângulo que lembra uma edição antiga de Penny Dreadful. Nele, está escrito em preto, em fonte de jornal: Contos da Triquetra Cabulosa, Os Mais Notórios e Terríveis Centavos” (título grande em cor vermelha no meio da capa). Em primeiro plano, sobre o fundo e o retângulo, colagens de ilustrações das Penny Dreadful originais em vermelho e preto. Fundo cinza escuro com efeito papel e respingos de tinta vermelha no canto superior direito.
Editora Triquetra e Leitor Cabuloso “Apresentam concurso literário Triquetra Cabulosa ‘Os Mais Notórios e Terríveis Centavos conto #02’. “sabor de sangue - gabriel martins”. Ao lado do título, a capa do livro: Capa com fundo de recorte de jornal. Sobre o fundo, um retângulo que lembra uma edição antiga de Penny Dreadful. Nele, está escrito em preto, em fonte de jornal: Contos da Triquetra Cabulosa, Os Mais Notórios e Terríveis Centavos” (título grande em cor vermelha no meio da capa). Em primeiro plano, sobre o fundo e o retângulo, colagens de ilustrações das Penny Dreadful originais em vermelho e preto. Fundo cinza escuro com efeito papel e respingos de tinta vermelha no canto superior direito.

Sabor de Sangue

Gabriel Martins

  

Eu senti o gosto do meu próprio sangue. 

É tão desagradável morder sua própria língua. Na hora parece que arrancamos um pedaço gigante na mordida acidental, mas na verdade foi só um corte leve. Porém, o fluxo de sangue foi grande, senti o líquido morno encher minha boca e se misturar com o pedaço de pão que mastigava. Precisei cuspir tudo.

— Cara, tu tá bem? — João me encarou do outro lado da mesa da praça de alimentação da faculdade.

— Aham, só mordi a língua — eu disse enquanto puxava mais dois guardanapos de papel de cima da mesa e pressionei contra o corte — e meio que tá sangrando um pouco demais.

— Bah, mas como estava dizendo, teve aquele sorteio no Instagram e eu ganhei dois ingressos para a Mansão Varney! — João mostrava o print do seu celular com o ingresso eletrônico.

— E Mansão Varney seria o quê? — perguntei, enquanto retirava o papel da boca, analisando se o sangramento já tinha parado.

— Como tu nunca ouviu falar da Mansão Varney? Eles tão fazendo uma campanha pesadíssima! É a primeira casa temática de terror e tortura aqui de Porto Alegre! A lista de espera para comprar ingressos já está com seis meses — João disse empolgado.

— Tortura? Tipo não de verdade

— Bom, mais ou menos. Não é tipo mortal, mas é real o suficiente. Lá nos Estados Unidos essas casas fazem muito sucesso, a mais famosa é Mckamey Manor. Tu assina um contrato permitindo que eles façam de tudo com você durante três horas. Dizem que é pura adrenalina — João completou.

— E você vai mesmo nesse negócio? — perguntei descrente.

Nós vamos! Vai ser divertido!

— Tem certeza que é seguro? — insisti.

— Claro né, Bruno! Como que essas casas continuariam abertas se não fosse? É tudo fake! Com atores e tal, é só para assustar.

— E quando vai ser?

— No Halloween agora, e com somente dois convidados: a gente! — João voltou a mostrar o print.

— Não é meio estranho que só foram sorteados dois convites e você ganhou os dois? Não parece muito justo — eu disse enquanto pegava o celular dele para analisar.

— É que sortearam um par. É comum as pessoas quererem ir em duplas, para terem mais coragem, e é pouca gente por vez para ser uma experiência mais única. — João cruzou seus braços em cima da mesa. — A gente precisa ir e ponto final.

— Tá bom então, mas se você se cagar todo lá eu vou espalhar para todo mundo — respondi sorrindo enquanto lhe devolvia o celular.

— Haha, até parece, aposto que eu vou durar mais tempo lá. — João retribuiu a cara de deboche.

— É o que vamos ver então.

 

***

 

A Mansão Varney não era de fato uma mansão. Era uma casa de dois andares, do tipo prédio histórico, numa das ruas mais afastadas da Cidade Baixa. Não havia cercado, a grama estava morta e as paredes da casa estavam descascando. Não parecia como uma grande casa de entretenimento revolucionário que João estava tentando me convencer. 

— Não me olha assim… você prometeu embarcar na ideia! É uma casa de “monstros” — João me fez parar na soleira da porta —, não é para estar bonita

Eu encarei os cantos superiores da área de frente da casa. Tinha teias de aranha legítimas. 

— Até eu já vi fotos dessas casas, João, e tem milhares de decoração no jardim, luzes piscantes, chafariz de sangue girando.

— Mas eu já te disse! A Mansão Varney quer proporcionar uma experiência real. — João deu um passo com a mão erguida, pronto para bater na porta. 

Ele deu duas batidas na porta. Ninguém atendeu. Me virei para olhar para rua — já estava escurecendo e ficando frio. O último raio de luz do sol se escondia por entre as árvores de um lado da calçada. Puxei meu celular do bolso, já eram 18:37. O convite dizia às 18:30. Ouvi João bater novamente. Dessa vez escutei a porta ranger em seguida. Percebi duas coisas no mesmo momento. O raio de sol que eu observara sumiu, dando lugar à primeira estrela no céu arroxeado, e um grande odor de podridão vindo até mim, que fez eu me virar. Vinha de dentro da casa. Minha bile subiu até a garganta e eu teria vomitado, se não tivesse ficado paralisado ao ver as duas pessoas na entrada da casa. As mais perfeitas e imponentes pessoas que já tinha visto.

João, assim como eu, estava extasiado com a presença deles. O homem era alto e negro. Usava um terno justo e branco, com apenas uma rosa amarela na lapela, que combinava com seus olhos âmbar quase dourados.  A mulher era mais baixa, com grandes curvas e tão branca que parecia giz. Ela tinha um cabelo raspado bem curto e preto. Usava um vestido dourado que ia até a metade de sua coxa, e seus  sapatos eram de salto alto e branco. Os olhos dela combinavam com os do seu parceiro e os dois sorriam. Ela segurava um bowl de vidro; quando meus sentidos focalizaram, percebi que era dali que vinha o cheiro de podre. Eram fatias de linguiça, porém vermelho-escuras. Pareciam morcilhas de sangue, na verdade, só que gosmentas e fétidas. 

Foi aquele cheiro que me trouxe de volta. 

— Sejam bem-vindos à Mansão Varney, meus convidados de honra. Hoje eu, Alan, e minha esposa Karine seremos seus anfitriões nesta experiência que transformará suas vidas — ele dizia com tanta confiança que eu não duvidava mais de nada. Nós somente sorrimos e entramos na casa.

— Meus belos garotos, gostariam de provar desse petisco que passei a tarde inteira fazendo? — Karine disse enquanto mordia um pedaço de linguiça ela mesma e nos alcançava seu bowl. Alan fechou a porta silenciosamente.

— Ah, não, obrigado, não estou com fome — respondi, meio sem graça.

— Ah, por favor… faz parte da experiência — Karine insistiu.

João me olhou torto e já pegou um dos petiscos, e me empurrou o bowl. Resolvi pegar só um pedacinho, o cheiro era horrível. Porém quando experimentei era diferente do que imaginava — era bom, quente, suculento e levemente picante.

Karine viu que eu tinha gostado.

— Viu como são gostosos?

Peguei mais uns e devolvi o bowl para ela. 

Alan nos conduziu até uma antessala, que possuía apenas uma longa mesa de madeira; percebi que toda a casa era iluminada por uma luz amarelada. Havia duas folhas de papel na mesa e Karine indicou para que pegássemos. Eu limpei a gordura de linguiça na minha calça e peguei uma  delas.

— São seus contratos. Como vocês já devem imaginar, precisam assinar para prosseguir com a experiência — Alan disse solenemente, enquanto tirava duas canetas de um dos bolsos e alcançava para nós. — São para deixar claro que qualquer trauma, físico ou psicológico, não poderá ser responsabilizado pela Mansão Varney. É uma experiência sensorial e vocês não irão passar por nada que não concordem em fazer, mas se houver consequências, serão responsabilidade de vocês.

João olhou para mim enquanto já assinava o contrato dele. Karine estava ao seu lado, massageando o seu ombro. Alan veio até mim, sua mão encontrou minha cintura com leveza, e me puxou alguns centímetros olhando dentro dos meus olhos.

— Não precisa se preocupar, meu jovem. São apenas questões burocráticas. É só assinar, você somente precisa focar no prazer dessa experiência.

Eu senti uma vontade imensa de beijá-lo, ele estava tão próximo, era tão sexy… mas não seria certo… engoli em seco, me afastei dele e fui em direção à mesa. Com uma leve incerteza, respirei fundo e assinei o contrato.

— Ótimo. — O rosto de Karine mudou, o sorriso delicado sumiu, seu olhar se tornou severo e sua voz ríspida. — Alan, leve eles para a sala.

Alan se movimentou tão rápido, que nem tive tempo de pensar em reagir, ele agarrou o meu braço e o de João também — a leveza do seu toque anterior havia desaparecido — e nos puxou para a sala ao lado. João já gritava pedindo para ele nos soltar. 

— Ei, vai com calma, cara! É só dizer para onde devemos ir! — gritei. 

Ele me ignorou, empurrou a porta da outra sala com o pé e nos jogou para frente. 

Caímos no chão com toda força. Era um grande banheiro, os azulejos do pisos estavam todos quebrados, e pedaços pontiagudos estavam espalhados pelo chão. Minhas mãos rasparam em vários daqueles cacos ao absorver o impacto da queda, senti a sujeira do piso entrar nos pequenos cortes em minhas mãos, elas arderam. João caiu de joelhos, grunhiu de dor, me virei até ele.

— João, tu tá bem? — Ele só balançou a cabeça dizendo que sim. Eu olhei com raiva para Alan, que sorria. 

Karine entrou na sala.

— Isso é uma competição, com um prêmio no fim. Vocês sempre terão uma escolha e, se não decidirem, nós a faremos por vocês. — Karine segurava uma adaga. — A primeira escolha será para você, João. Você pode cortar o braço de Bruno, ou ele terá que fazer isso em você.

— Ei, espera! Eu não vou cortar ele, você tá louca? — João gritou. 

Karine andou até nós e ignorou o João, olhando fixo para mim.

— Bruno, você pode cortar ele, e evitar que o seu braço seja cortado. — Karine se abaixou e me estendeu a adaga. 

— Eu não vou cortar ninguém. Eu quero ir embora — respondi.

Karine deu uma risada.

— Você não pode sair, já assinou o contrato. Você me pertence. Sua alma, seu corpo, seu sangue… — Karine pegou a minha mão, que sangrava e lambeu. — Você não quer escolher? Tudo bem.

Foi um movimento tão rápido que não pude acompanhar. Karine já estava em pé, ao lado de Alan, e na sua mão pendia a adaga, pingando sangue no chão. Segundos depois senti um calor no braço. Meu sangue escorria por ele, um longo e fino corte vertical abria minha veia do interior do braço. O sangue era tanto que logo toda minha roupa estava molhada, e a dor era terrível, João gritou mais alto ao perceber que o braço dele também sangrava. Pressionei o corte contra meu corpo, e tentei focalizar.

Alan se aproximou de mim, se divertindo com a nossa dor.

— É sua vez de começar. Você pode morder o braço cortado de João, ou ele terá que fazer isso.

— Eu não vou fazer nada! — João gritou. — A gente vai morrer se não for pro hospital agora! Vocês não podem fazer isso! — João chorava de raiva e dor ao falar, enquanto se contorcia no chão.

— Eu não vou fazer isso! É loucura! — concordei. 

Alan pegou meu braço cortado e apertou. O sangue escorreu mais forte. Eu não conseguia nem respirar, só podia sentir a dor e ouvir meus próprios gritos.

— Você vai morder o braço dele, vai provar seu sangue e comer a sua carne. — Alan disse calmante. Sua outra mão puxou meu pescoço com força e empurrou minha cabeça para a direção do braço do João, que agora estava completamente imobilizado por Karine,  o forçando a expor o braço. 

Meu rosto estava sendo esfregado no braço de João, e eu sentia o fluxo de sangue implodir na minha cara e entrar na minha boca. 

— MORDA! — Alan gritou apertando meu pescoço.

O sangue de João já descia pela minha garganta, fechei os olhos e mordi. Meu coração acelerou. O gosto era familiar… era bom, quente, suculento e levemente picante. Era o gosto dos petiscos da Karine. Eu precisava de mais, simplesmente precisava. Mordi mais uma vez, só ficava mais saboroso. Alan me soltou e continuei. Os gritos abafados de João ao fundo não faziam mais sentido para mim, eu só precisava me saciar.

Parei de comer só quando estava prestes a vomitar, de tão cheio. Olhei ao redor, não escutava mais João gritar, na verdade nem conseguia mais vê-lo, somente uma carcaça ensanguentada num canto. Karine e Alan terminavam de comer a carne dele também. Alan se virou para mim, suas pupilas estavam dilatadas.

— Parabéns, você venceu. Sempre achei que você era o mais forte. — Alan se aproximava de mim. — Está na hora de receber seu presente.

Alan puxou o meu braço. Sentia meu sangue escorrer pelo corte, mas não tinha mais dor. Ele mordeu perto do pulso. A sensação era de ser drenado, fazia eu me sentir melhor. Um outro líquido substituía minhas veias agora, podia sentir aquilo tomando conta do meu corpo. Quando Alan parou, sua boca estava completamente vermelha do meu sangue. Ele me encarou, seus lábios estavam quase colados aos meus e meu ímpeto de beijá-lo retornou; dessa vez não hesitei. Beijei ele e, ao fazer isso, senti o gosto do meu próprio sangue.

 

FIM.

Gabriel Martins, 22 anos. Leitor, escritor e podcaster em “Baladas de Nárnia”, “Dossiê Snicket”, “Kingverso”.