Os mais notórios e terríveis centavos #01: Praia do Flamengo, número 88 – Gabriel Folena

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Editora Triquetra e Leitor Cabuloso “Apresentam concurso literário Triquetra Cabulosa ‘Os Mais Notórios e Terríveis Centavos conto #01’. “Praia do flamengo, número 88”. Ao lado do título, a capa do livro: Capa com fundo de recorte de jornal. Sobre o fundo, um retângulo que lembra uma edição antiga de Penny Dreadful. Nele, está escrito em preto, em fonte de jornal: Contos da Triquetra Cabulosa, Os Mais Notórios e Terríveis Centavos” (título grande em cor vermelha no meio da capa). Em primeiro plano, sobre o fundo e o retângulo, colagens de ilustrações das Penny Dreadful originais em vermelho e preto. Fundo cinza escuro com efeito papel e respingos de tinta vermelha no canto superior direito.
Editora Triquetra e Leitor Cabuloso “Apresentam concurso literário Triquetra Cabulosa ‘Os Mais Notórios e Terríveis Centavos conto #01’. “Praia do flamengo, número 88”. Ao lado do título, a capa do livro: Capa com fundo de recorte de jornal. Sobre o fundo, um retângulo que lembra uma edição antiga de Penny Dreadful. Nele, está escrito em preto, em fonte de jornal: Contos da Triquetra Cabulosa, Os Mais Notórios e Terríveis Centavos” (título grande em cor vermelha no meio da capa). Em primeiro plano, sobre o fundo e o retângulo, colagens de ilustrações das Penny Dreadful originais em vermelho e preto. Fundo cinza escuro com efeito papel e respingos de tinta vermelha no canto superior direito.

Praia do Flamengo, número 88

Gabriel Folena

 

Meia-noite, no Rio de Janeiro, é a hora das coisas que não existem.

Para Abel, esse é o único horário em que seu prédio não parece estar completamente vazio. Em qualquer outro momento que não o noturno, o fotógrafo poderia jurar que morava sozinho na construção de dez andares. Ninguém acima, ninguém abaixo — exceto quando o sol se põe.

Ele decidiu que não conseguiria mais dormir quando uma das risadas ecoou próxima a seu ouvido. Costumavam ser distantes, quase murmúrios, acompanhadas por passos que hora andavam, hora corriam; lembranças distantes de pés sobre e sob o apartamento do jovem. Thump, thump, thump… Mas nunca tinha ouvido nada tão perto como hoje.

Com um arrepio, Abel descartou o lençol num emaranhado de tecido ao se virar com velocidade, como se pudesse flagrar a origem do som antes que esta conseguisse escapar. Nada viu quando se sentou de supetão na cama. O peito agitado, subindo e descendo numa respiração ansiosa, bombeava o sangue de seu corpo feito as estocadas distantes no assoalho. Thump, thump, thump.

Ele iria atrás de Luc. Isso, Luc saberia o que fazer, e que se dane se estava tarde e o único amigo de Abel na cidade inteira estivesse dormindo. Ele morava no prédio há algum tempo, devia estar mais acostumado com o que quer que acontecesse nesse lugar toda noite. Abel não se preocupou em trocar de roupa, e vestiu apenas uma camisa e seu par de chinelos, deixando intacta a calça de moletom que usava para dormir. Se não estivesse tão tenso, talvez até tivesse tempo de sentir uma pontada de vergonha por aparecer tão pouco produzido no apartamento de Luc. Afastando os pensamentos que definitivamente não combinavam com a situação, Abel pegou seu celular e saiu para o corredor.

Estava escuro. Tudo era sempre tão escuro nesse lugar. Abel se sentiu grato quando, ao caminhar rumo ao elevador no final de seu andar, uma das lâmpadas se acendeu. Não sabia que havia sensores de movimento instalados no prédio. De qualquer forma, a instalação não devia ser bem-feita, visto que apenas um dos outros tantos lustres presos às paredes se acendeu. Abel ativou a lanterna do celular, e continuou.

Para sua sorte, o elevador estava em seu andar. Entrou na caixa de metal e apertou o número do andar de cima. Enquanto as portas se fechavam, Abel olhou para o corredor à sua frente, sem conseguir enxergar onde ficava a entrada de seu próprio apartamento. Não conseguia ver os detalhes azulejados do teto e das paredes, nem a cor marrom avermelhada que se repetia em diversas partes da construção.

Tudo era tão… outro, no Edifício Seabra. Os pisos de linóleo quadriculado nas áreas comuns; os candelabros e mezaninos que coexistiam no hall principal; o cinza do material pedregoso que se estendia pelas paredes externas do edifício; Tudo parecia suspenso e desconexo, pertencendo a mil e um lugares que não o Rio de Janeiro, uma das cidades mais tropicais da América do Sul; e não no Aterro do Flamengo, com a praia tão perto do que mais parecia um castelo, não um condomínio quase à beira-mar.

A viagem no elevador durou pouco. Em instantes, Abel se deparava com outro corredor, tão escuro quanto o seu. Estava vazio. Iluminando o ambiente com a lanterna do celular, ele sequer enxergava rastros que indicassem a presença de uma pessoa ali, em qualquer momento. Mas os passos…, confabulou o morador em silêncio. Eu sempre ouço passos.

O knock knock causado por seu próprio punho ajudou Abel a se restabelecer, o som ecoando da madeira pelo corredor cavernoso. Luc não tinha uma campainha. Na verdade, ninguém tinha uma campainha. O prédio era velho assim. Ele estava prestes a se sentir culpado por bater à porta mais uma vez quando ouviu o som metálico da fechadura se abrindo. No mesmo instante, se sentiu mais aliviado e menos sozinho.

— Abel! — se surpreendeu Luc com um sorriso curioso, as sobrancelhas franzidas, mas receptivo. O francês sempre era agradável, e ouvir seu nome no sotaque carregado que não deixava a voz do estrangeiro também trouxe um sorriso aos lábios cerrados de Abel, como sempre. — O que faz aqui?

— Me desculpa, Luc, de verdade — o fotógrafo se antecipou. — Eu estava dormindo e os barulhos hoje estão tão fortes, e altos. Nossa! Você deve estar me achando maluco, nunca falamos sobre isso! — Abel se corrigiu, gesticulando com as mãos como se pedisse paciência. — Toda noite esse prédio é cheio de barulhos, e não faço ideia de onde vêm. Você também os escuta?

Oui! Sim! — As afirmativas vieram uma atrás da outra, quase atropeladas, Luc tentando voltar para o português que às vezes trocava pelo francês quando falava rápido demais. — Mas confesso que não me incomodam tanto. Acho que estou acostumado — ele disse com um riso.

— Claro, claro! — Abel tentou sorrir, mas agora estava envergonhado. É claro que o amigo não se importaria. Que adulto em sã consciência se importaria com alguns barulhos? Quanto aos risos, deviam ser fruto da sua imaginação, atiçada pelo medo irracional que nem deveria existir em primeiro lugar.

— Mas se você estar incomodado, entra um pouco e toma um chá comigo. Eu acabei de acordar de um cochilo, na verdade — ofereceu Luc, e Abel achou uma graça o verbo truncado. Péssima hora para tentar disfarçar a queda imensa que sentia pelo vizinho.

— Eu adoraria — Abel aceitou enquanto assentia positivamente. Desligando a lanterna, o jovem fotógrafo entrou no apartamento, deixando para trás as paredes escuras.

Havia visitado Luc poucas vezes. O amigo francês mais descia para vê-lo que o contrário, e costumavam sair à noite em vez de ficarem em seus apartamentos. Não que Abel fosse protestar caso acontecesse de estarem sozinhos no mesmo lugar…

Quadros ocupavam quase todas as paredes. Pinturas emolduradas, desenhos em telas soltas, rascunhos em papéis presos com fita crepe… Abel adorava o fato de Luc ser um pintor, um artista como ele; Abel adorava que pudessem se entender tão bem, ambos tentando ganhar a vida com o que amavam; ele adorava a qualidade antiquada das pinturas do francês, como se viessem de outra época e representassem outras pessoas, outros lugares; e ele adorava como tinham se conhecido, Luc casualmente bebericando café preto na rodoviária quando Abel chegou no mesmo restaurante, desengonçado com sua mala gigante, vindo do interior do estado para viver da sua arte. Era como se estivesse esperando por ele. 

— Me dê um minutinho — pediu Luc. Sua pele pálida refletia o tom alaranjado e aconchegante da meia-luz que iluminava o espaço aberto do studio. Esse tipo de arquitetura encantava Abel. — Já volto com as xícaras e o chá — disse o francês, passando uma mão pelos fios longos e pretos de seu cabelo ao se virar rumo à cozinha.

Abel ainda conseguia vê-lo, afinal, a cozinha era americana, separada do restante do apartamento por uma bancada de mármore liso. Inseguro por estar em pé, meio esquisito, o fotógrafo decidiu se sentar no amplo sofá. Observou mais alguns dos quadros à sua volta antes de voltar os olhos para a mesa de centro a poucos centímetros de si. Havia papéis espalhados por ela. Abel advertiu sua visão, não queria bisbilhotar, mas estavam ali tão próximos e em tão grande quantidade. O que eram?

Provavelmente, eram contas. O Rio não era uma cidade barata, e para pessoas como eles, quase aventureiras por se arriscarem numa carreira tão incerta, isso às vezes se tornava um problema. Abel notou linhas sublinhadas, anotações feitas a lápis e outras feitas a caneta. Na cozinha, Luc cantarolava o ritmo de alguma música indistinta acompanhado pelo tilintar de talheres e porcelana. Abel se aproximou um pouco mais da mesa de centro.

Os papéis eram fichas. Havia várias delas, com nomes, fotografias 3×4, informações circuladas e riscadas e comentadas. Quem eram aquelas pessoas?

— Ah! — Abel ouviu Luc exclamar da cozinha num tom casual. — O síndico me pede ajuda com uma papelada de vez em quando. Como se diz? A… rotatividade de inquilinos é bem alta — o francês comentou com o sorriso fácil que fazia Abel sorrir. O fotógrafo não sorriu dessa vez, e não sabia o porquê.

Abel nunca tinha visto o síndico, e não conhecia nenhuma das pessoas nas fotos anexadas às fichas. Não esperava que conhecesse, afinal, era novo na cidade, não havia como seu círculo social ser tão grande assim após apenas dois meses. E, pelo o que disse Luc, eram moradores antigos, que estiveram no prédio antes dele. Por que se mudaram? 

Luc se preparava para trazer o chá até ele, terminando de posicionar xícaras e colheres numa pequena bandeja prateada. Abel se sentiu inquieto, como se precisasse vasculhar todos os papéis antes que o vizinho se sentasse ao seu lado. Não havia tempo… Mas por que essa urgência? O que havia ali para que ele visse? Insistentemente, algo o dizia para continuar olhando. Então, Abel o fez.

Avistou no centro da mesa a ficha que o fez inspirar com força, o ar entrando audivelmente pelo seu nariz.

Em meio às outras fotos, havia uma sua.

Seu próprio rosto o encarava, sorridente, do pequeno pedaço de papel quadrado. Uma foto qualquer que havia postado na internet, impressa, na mesa de centro de Luc.

Todo o resto o atingiu como um soco. Nas outras fichas, notou que as palavras riscadas eram nomes, em letras maiores que o restante do texto nas páginas. Havia tantos nomes ali. Abel piscava incessantemente, como se pudesse acordar. Um novo tilintar, dessa vez da bandeja sendo posta por Luc sobre os papéis, o trouxe de volta ao momento presente — o último lugar onde Abel queria estar.

— O que é esse lugar, Luc? — A pergunta saiu quase como um sussurro, nada parecida com o terror que percorria as veias do fotógrafo prestes a fazê-lo gritar. — Por que você me indicou esse prédio?!

Por mais que tentasse se levantar e gesticular, Abel percebeu que não conseguia. Era como se estivesse congelado, a coluna ereta contra o encosto do sofá, o rosto imóvel mirando o vizinho à sua frente. Luc o olhava nos olhos, e não piscava. Abel engoliu em seco, o movimento tenso de sua garganta parecendo ser o único em todo o seu corpo.

— Como falei, a rotatividade é alta… — Luc disse ao se aproximar, deixando de lado o chá, se é que realmente havia chá ali. Sentou-se ao lado do jovem, e com uma das mãos, acariciou um dos lados do rosto de Abel. Em qualquer outro cenário, o fotógrafo teria se derretido em desejo e vontade. Agora, ele só queria correr.

Do lado de fora, passos. Os olhos de Abel se voltaram para a direção da porta, mas o restante de seu rosto permaneceu imóvel. Sua boca, entreaberta, produzia um som baixo e apavorado, algo entre um choro e um gemido. O som de uma presa encurralada. Uma única lágrima grossa rolou por uma de suas bochechas, e Luc a interceptou com a ponta de seu dedo.

O vizinho se achegou ainda mais para perto de Abel, se colocando em seu campo de visão limitado. Luc levou o próprio dedo molhado até os lábios, e experimentou a lágrima. Com um pop, retirou a ponta do dedo da boca e sorriu, mostrando os dentes como não costumava fazer.

Do lado de fora, no andar de cima, e ao redor de Abel em cantos e quinas que não conseguia enxergar, ouviam-se passos e risos murmurados e thump, thump, thump. Ainda estavam sozinhos no apartamento?

Ele teria gritado ao ver os dentes afiados do vizinho, se lembrasse que possuía uma voz.

 

Fim

 

Gabriel Folena é escritor desde pequeno, graduado em História desde os 24, e atualmente estudante de Jornalismo. Aos 26 anos, admira os mesmos monstros que faziam sua imaginação correr solta quando criança. Escreve fantasia com um toque urbano e contemporâneo, tentando captar na página o mistério e a magia que enxerga pelas ruas de sua cidade, Rio de Janeiro.