[Resenha] As vozes sombrias de Irena – Mia Sardini

Capa do livro. Imagem de uma moça de pele clara, e vestido branco. Ela está totalmente subersa virada para cima, com o rosto quase na superficie da água, quase tocando seu reflexo. Acima da água, no fundo, árvores finas, e sombrias em uma paisagem esverdeada. No fundo atras da moça dois olhos escuros semelhantes a de um lobo.
Capa do livro. Imagem de uma moça de pele clara, e vestido branco. Ela está totalmente subersa virada para cima, com o rosto quase na superficie da água, quase tocando seu reflexo. Acima da água, no fundo, árvores finas, e sombrias em uma paisagem esverdeada. No fundo atras da moça dois olhos escuros semelhantes a de um lobo.

Mostre e não conte. Esta máxima está presente em manuais de escrita e são os primeiros conselhos de velhos escritores. Mia Sardini com a obra As Vozes Sombrias de Irena mostra um subgênero do Terror que promove a reflexão. Além disso, a construção de uma unidade temática entre as personagens gera apego a história contada.

Dois eixos

A narrativa se divide entre o dramático e o sobrenatural. As irmãs Eva e Sabina foram criadas pela avó Irena que está em um estado crítico de saúde devido a um AVC. O abalo emocional é transmitido no texto. Com sutileza a autora mostra como as personagens estão fragilizadas. Há um impacto seco e duro que gera empatia. Em contrapartida, o sobrenatural é introduzido aos poucos na narrativa. Em vez de explicitar o irreal de forma gráfica, Mia Sardini sabe criar um ambiente sinistro.

Uma aura esquisita, forte e sorrateira ronda os parágrafos. Nas descrições curtas e pontuais a atmosfera prolifera. Escolha literária que transmite o medo de descrever, uma vontade de querer não relatar algo com uma aura perversa. Sinto que a autora esteve colada nas personagens. É como se ela fosse alguém próximo a família que recolheu depoimentos depois de uma longa convivência.

Aprofundar

Há um aprofundamento nos elementos sobrenaturais e nos dramas das personagens. Em ambos o feminino ganha força e torna-se algo simbólico. No sobrenatural, que por muitas vezes flerta com o fantástico, o feminino é representado pela raposa. O animal, culturalmente, está associado a mulher. A autora mergulha nessa simbologia. No texto vemos a raposa vivendo a margem da sociedade e causando espanto somente por existir.

Ainda falando sobre este tema, as Rusalkas, um ser mitológico eslavo presente na narrativa, usa a forma de raposa, defende-se e não sai à caça. São espíritos vingativos e não atormentadores. No livro ganham um ar folclórico macabro e a maneira como a origem delas se misturam a uma metáfora para a luta feminina é interessante.

Nos dramas a unidade temática foi o ponto central do apego que senti por toda a família. Irena, Eva, Sabina e Martina representam três gerações. Mesmo a obra sendo curta, as personagens possuem uma excelente construção. Parecia que eu tinha lido centenas de páginas sobre a vida de cada uma delas. Para completar a minuciosa elaboração, elas possuem algo em comum:

Não podem escolher qual vida desejam viver.

O Feminino

De alguma forma cada uma delas têm as escolhas podadas. Isso faz com que as personagens tenham relações não só íntimas entre si como também verossímeis que ocasionam conflitos capazes de emocionar. Impossível ler a obra e não pensar nas diversas formas de machismo. Tudo sendo mostrado ao leitor sem a utilização de frases de efeito, discursos e pensamentos rasos. Em uma história de terror o feminismo é abordado de maneira séria e profunda.

Através de pequenas inserções a autora consegue informar ao leitor a época onde desenrola a narrativa. Também de forma concisa e certeira Mia Sardini utiliza flashbacks para fornecer mais camadas para as personagens e aprofundar a história. O ritmo da leitura é rápido, mas li aos poucos para absorver toda a carga dramática. Ao tratar de vários momentos do tempo, a linguagem pode ser um diferencial que marca as épocas. Apontar esta falta como falha seria de um preciosismo exagerado. A autora sabe para quem está escrevendo e a linguagem acessível em todo texto, independente das épocas, merece elogios. Porém, As Vozes Sombrias de Irena não está livre de falhas.

A vilania

O vilão é humano e relaciona-se com todo o tom do texto permeado com dramas bem construídos. Ele não é aquela figura caricata com frases feitas e com uma mentalidade psicótica exagerada. É alguém com medo, questionador sobre si mesmo e que anda com passos vacilantes em uma linha estreita entre o fracassar e o cometer um ato hediondo. Mais uma vez a autora constrói um personagem verossímil e novamente utiliza o simbólico.

O homem, que é inserido na narrativa como um elemento de mistério, passa pelo antagonismo e vira o vilanesco, serve a um culto. Não são descritos os detalhes da seita e ao prestar atenção no simbólico o leitor será capaz de ver a essência do machismo. A construção foi bem feita, porém, em um capítulo a autora recorre ao lugar comum para transmitir uma sensação de poder e perigo ao vilão. Durante todo o livro a instabilidade dele já passava a sensação de perigo. É um capítulo com informações que contribuem para a narrativa, entretanto, o personagem destoa do resto da trama. Fora isso, é inserida uma personagem que cria uma certa expectativa e depois não é mais mencionada na história.

Gatilho

Depois de mencionado a falha, deixo o alerta: há uma cena de estupro. A descrição choca e se você tem gatilho, por favor, afaste-se!

Conhecer um novo gênero

A obra apresentou-me o subgênero horror feminista, a construção dramática é impecável e gera reflexão e o sobrenatural é interessante. Há um capítulo que destoa, mas é um detalhe pequeno diante de tantos pontos positivos. Em uma atmosfera sinistra o terror pode assustar e também chocar ao provocar reflexões que exemplificam verdades. Leia, pense e reflita.

Nota

Quatro selos cabulosos. A nota mais alta são 5 selos cabulosos.
Quatro selos cabulosos. A nota mais alta são 5 selos cabulosos.

Garanta a sua cópia de “As vozes sombrias de Irena”!

Ficha Técnica

Título: As vozes sombrias de Irena
Autora: Mia Sardini
Edição:
Editora: AVEC
Páginas: 144
Ano: 2021
ISBN: 9786586099850
Sinopse: Em 1988, na Tchecoslováquia, ocupada pela União Soviética, Eva e Sabina, duas irmãs separadas por uma grande diferença de idade, precisam desvendar um segredo de família quando sua avó, Irena, sofre um AVC. Quanto mais Irena se aproxima da morte, mais suas netas percebem a herança sombria que a avó deixa para trás e que pode colocar em risco a vida de todas as mulheres da família.