Em O Feiticeiro de Terramar Ursula K. Le Guin utiliza a Fantasia para fazer uma metáfora sobre o lado sombrio que cada um tem dentro de si. O interessante é que a jornada em que Ged lida com o obscuro é feita através de um aventurar-se por lugares abertos e vastos onde a natureza nunca é tímida. As Tumbas de Atuan (Segundo volume da saga Ciclo Terramar) também utiliza o metafórico, há o contraste entre tema e ambiente, porém, uma escolha faz com que a continuação seja muito diferente da obra antecessora.
A nova protagonista
Nesta obra não temos Ged como protagonista. No local do mago há uma sacerdotisa chamada Arha. Logo no início do livro nota-se uma bela construção cultural para transformar uma menina comum em um símbolo religioso para toda uma sociedade. Nomes, linguagem, tom, atmosfera e pequenos detalhes tornam o ritual que transforma a menina em sacerdotisa em algo vivo, verossímil.
Um mundo sem luz
Em As Tumbas de Atuan há um esmero na escrita capaz de criar lindas imagens na cabeça do leitor. Também é preciso ressaltar que a autora busca identidade na construção tanto do ritual como na sociedade ao redor do mito por trás da prática religiosa. Durante a leitura senti que Ursula K. Le Guin bebeu em culturas antigas, entretanto, ela não tenta copiar ou deixar as referências explícitas. A autora fez algo pouco convencional, a começar pelo cenário. Não temos aldeias camponesas em meio a lindos pastos verdejantes, tocas espalhadas por florestas cheias de criaturas místicas ou casas modestas cercadas por muralhas e sobre as sombras de castelos. Quase toda a obra se passa em cavernas escuras. Descrições elaboradas, muitas vezes, são substituídas pelo simples tatear da protagonista. Essa escolha me causou estranhamento no começo da obra e eu ficava me perguntando:
“A mesma maestria usada para criar as ilhas de Terramar poderá criar belas cenas só contando com a escuridão, corredores e portas trancadas?”
Constrói o defeito e entrega uma qualidade
Ao final da última página percebi que o livro, em alguns momentos, tornou-se enfadonho pela falta de ambientes. A autora sabe conduzir o leitor pelas tumbas e transmiti uma sensação de aprisionamento. Porém, ver a personagem sempre nos mesmo locais e fazendo as mesmas coisas acaba sendo um pouco tedioso. E mesmo o poder da escrita, as vezes, é frágil diante da repetição. Esse fato é evidente e ao mesmo tempo a obra é capaz de presentear o leitor com momentos de deslumbramentos. Por muitas vezes mergulhei na história e feito criança repeti para mim mesmo: “Poucas pessoas em Terramar devem ter visto o que eu vejo”. Uma sensação acentuada graças ao enclausurar bem construído.
“A terra também é terrível obscura e cruel. O coelho grita ao morrer nas campinas verdes. As montanhas cerram suas mãos enormes, cheias de fogo oculto. Há tubarões no mar e há crueldade nos olhos dos homens. E, quando os homens cultuam essas coisas e se humilham diante delas, é aí que o mal se reproduz”.
A metáfora
Dizer que a sensação de prisão transmitida da personagem para o leitor é um defeito seria tolice. Há muita vontade de transmitir a metáfora do aprisionamento: viver conforme a vontade dos outros e ter uma vida resumida a deveres culturais que movem um mito. Em O Feiticeiro de Terramar também existe a vontade de mostrar a metáfora, mas possui algo diferente.
Faltou cores?
Fiquei sensibilizado com a jornada de Arha e com a metáfora construída sobre prisão e liberdade em As Tumbas de Atuan. Mas eu não senti o mesmo amor pelo mundo que havia sentido na obra anterior. Ao lado de Ged vi um sentimento sendo construído em cada detalhe: nas ilhas, nas pessoas, nos trabalhos, nos cômodos das casas, na vastidão do oceano, no isolar-se na natureza, no viajar e no tempo decorrido. Notei muito desse amor na cultura criada em Atuan, em alguns locais, em algumas passagens… e não no todo.
Antiga e única
Indicar ou não indicar? Ursula K. Le Guin sempre é uma ótima indicação. Compará-la com ela mesma é até meio injusto. Neste livro você encontrará aquela sensação de fantasia velha só encontrada em cartuchos de Super Nintendo e mesas de RPG. Essa autora não precisa de dragões atacando exércitos para fazer os olhos brilharem como se estivessem inundados de lágrimas. Ela faz isso apenas com o iluminar de um cajado, um barco ancorado e um velho trono de pedra. Não me ofereceu a mesma experiência que o livro anterior, mas ainda é a Ursula.
Nota
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Ficha Técnica
Nome: As Tumbas de Atuan
Autor: Ursula K. Le Guin
Tradução: Vera Ribeiro
Edição: 1ª
Editora: Arqueiro
Ano: 2017
Páginas: 160
ISBN: 9788580417074
Sinopse: Quando Tenar é escolhida como suma sacerdotisa, tudo lhe é tirado: casa, família e até o nome. Com apenas 6 anos, ela passa a se chamar Arha e se torna guardiã das tenebrosas Tumbas de Atuan, um lugar sagrado para a obscura seita dos Inominados.
Já adolescente, quando está aprendendo os caminhos do labirinto subterrâneo que é seu domínio, ela se depara com Ged, um mago que veio roubar um dos maiores tesouros das Tumbas: o Anel de Erreth-Akbe.
Um homem que traz a luz para aquele local de eternas trevas, ele é um herege que não tem direito a misericórdia.
Porém, sua magia e sua simplicidade começam a abrir os olhos de Arha para uma realidade que ela nunca fora levada a perceber e agora lhe resta decidir que fim terá seu prisioneiro.
Finalista da Newbery Medal, que premia os melhores livros jovens de cada ano, As Tumbas de Atuan dá continuidade ao elogiado Ciclo Terramar com uma singela história que rompeu com os paradigmas de heroína quando foi lançada.