Sabe aquelas histórias de terror que você fica na dúvida se é sobrenatural ou se aconteceu somente na cabeça do personagem? Pois esse é o sentimento ao ler os contos de As coisas que perdemos no fogo da argentina Mariana Enriquez.
O terror do dia a dia
Os personagens passam por situações bem comuns e relacionáveis, como mudar de casa, visitar parentes no interior ou conversar pela internet. Cada conto nos mostra como o cotidiano pode ser assustador, se prestarmos atenção.
Além disso, as histórias colocam em pauta questões sociais importantes de um jeito não usual. A pobreza, o abuso de drogas, a violência policial, a ditadura militar, o feminicídio e saúde mental são algumas das questões jogados na nossa cara. E tudo com uma linguagem simples e crua que cria, porém, imagens aterrorizantes.
Por exemplo, no conto O menino sujo acompanhamos uma mulher que vive num bairro decadente de Buenos Aires, por causa do seu afeto pela casa que era de seus avós. Através da narrativa, conhecemos a realidade na qual a desigualdade social fica escancarada. Isto é, um local em que antigos casarões convivem com a pobreza extrema.
Em outro, O quintal do vizinho, vemos o preconceito sofrido por aqueles que lidam com questões de saúde mental. Nele, um casal se muda e, enquanto a mulher desempacota as coisas, percebe algo estranho na casa vizinha. Porém o marido não acredita nela, pois se recuperava de uma crise de depressão.
Essas sinopses não parecem tão amedrontadoras, ne? Mas fica a dica: não leiam antes de dormir, pois há riscos de pesadelos. Alguns desses contos, inclusive, tem cenas de susto tipo de filmes de terror. Ou seja, não é leitura para quem não curte sentir um medinho.
Buenos Aires vista por outros ângulos
A cidade não tinha grandes assassinos, com exceção dos grandes ditadores…
Apesar de nem todas as histórias se passarem no interior da Argentina, dá pra considerar Buenos Aires como personagem comum a várias delas. Ao longo da leitura, passamos por diversos bairros, porém pouco vemos dos pontos turísticos mais conhecidos. Conhecemos, acima de tudo, parte da cidade e da população que preferem esconder.
Favelas cercadas por rios poluídos, bairros violentos, pessoas rejeitadas pela sociedade… A autora não poupa palavras para descrever ambientes macabros e, inclusive, algumas cenas são meio nojentas.
Os personagens, ao andar pela cidade, passam por situações típicas de um pais latino. Um país que, assim como o nosso, lida com a consequências de ter passado por uma ditadura militar poucas décadas atrás. Certamente, nós brasileiros conseguimos nos reconhecer em muitos desses contos. Enfim, são contos de terror que ficam ainda mais assustadores por causa de sua familiaridade.
Para expandir os horizontes
A literatura de terror mais conhecida e divulgada ainda é a de língua inglesa. Conhecemos muitos autores estrangeiros, principalmente americanos, e na maior parte das vezes homens brancos.
Portanto, recomendo esse livro aos fãs que querem mais diversidade. Conhecer a literatura de terror feita por uma mulher da América Latina é uma excelente forma de expandir os horizontes e perceber novas possibilidades desse gênero.
Mariana Enriquez é autora de seis livros e já ganhou um prêmio por sua obra. As coisas que perdemos no fogo é um dos mais recentes e o primeiro a ser trazido para o Brasil. O outro livro dela traduzido aqui é o último romance que ela escreveu, Este é o mar.
Nota
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Ficha Técnica
Título: As coisas que perdemos no fogo
Autora: Mariana Enriquez
Editora: Intrínseca
Tradução: José Geraldo Couto
Ano: 2017
Páginas: 192
ISBN: 8551001442
Sinopse: Macabro, perturbador e emocionante, As coisas que perdemos no fogo reúne contos que usam o medo e o terror para explorar várias dimensões da vida contemporânea. Em um primeiro olhar, as doze narrativas do livro parecem surreais. No entanto, depois de poucas frases, elas se mostram estranhamente familiares: é o cotidiano transformado em pesadelo.
Personagens e lugares aparentemente comuns ocultam um universo insólito: um menino assassino, uma garota que arranca as unhas e os cílios na sala de aula, adolescentes que fazem pactos sombrios, amigos que parecem destinados à morte, mulheres que ateiam fogo em si mesmas como forma de protesto, casas abandonadas, magia negra, mitos e superstições.
Uma das escritoras mais corajosas e surpreendentes do século XXI, Mariana Enriquez dá voz à geração nascida durante a ditadura militar na Argentina. Neste livro, ela cria um universo povoado por pessoas comuns e seres socialmente invisíveis, cujas existências sucumbem ao peso da culpa, da compaixão, da crueldade e da simples convivência. O resultado é uma obra ao mesmo tempo estranha e familiar, que questiona de forma penetrante e indelével o mundo em que vivemos.