Olá, quem fala aqui é o resenhista. Meu nome você deve saber, está no rodapé dessa postagem. Lá, também tem a informação de que estudo Letras Português-Inglês. Isso só é relevante do ponto de vista (equivocado e ficcional) de que pessoas da área deveriam entender algo de literatura. Nem sempre. No meu caso, se eu entendo, é muito pouco.
Uma breve história sobre mim
Quando comecei minha graduação, tentei me envolver em alguns projetos pra conseguir uma bolsa e largar o trabalho, que, na época, estava percebendo o quanto podia me fazer mal. Aí, consegui uma bolsa de dezoito meses, ainda quando estava no primeiro período. Larguei a livraria, a qual tinha dedicado muitos meses da minha vida. Comecei a dedicar minha vida a universidade e a educação pública. Fui fazer uma espécie de estágio na escola onde estudei da quinta série até encerrar meu ensino médio. Durante a vigência dessa bolsa, me envolvi em outro projeto. Esse último era voltado para pesquisa. Pesquisei o ensino de inglês e memes por quase um ano. Foi quando comecei a fazer parte de um grupo de pesquisa sobre tecnologia, educação e linguística aplicada (site do grupo).
Você talvez tenha sacado a razão desse disclaimer: vou falar sobre um livro de tecnologia. Não costumo tratar aqui das leituras que faço por causa da universidade, a não ser quando se trata de literatura e me parece oportuno escrever sobre. No entanto, comecei a considerar que algumas leituras (de não ficção) podem interessar as pessoas. O livro de que vou falar abaixo não foi leitura obrigatória ou sugerida pelo grupo, apesar de eu ter indicado esse livro para o pessoal lá. Só pra não perder a oportunidade. Encontrei esse livro quando estava remexendo a seção de livros do site Manual do Usuário, que é um site sobre tecnologia, mas de um ponto de vista bem pessoal e progressistas (é um dos poucos sites que faço questão de ler semanalmente e lá tem dois podcasts bem legais). Então, feito a (quem sabe desnecessária) ressalva, vamos ao livro.
BIG TECH
Se você está acessando esse site e lendo essa resenha (o que deve ser um tanto quanto improvável, afinal, quem diabo lê livros e, ainda mais, resenhas?), já está distante de boa parte da internet. O porquê é simples: cada vez mais, a maior parte dos usuários está se afundando no lodo azul e branco das redes sociais. Facebook, Instagram, Twitter, Tik Tok, Whatsapp e toda sorte de ambiente virtual tóxico possível. Para Morozov, essas grandes corporações estão, cada vez mais, assumindo um papel que logo será indispensável em nossa vida.
Isso porque esses gigantes da tecnologia estão, em muitos casos, assumindo deveres e funções do estado. O exemplo mais claro é a Uber. Há tempos diversas matérias e levantamentos vem mostrando como a empresa segue dando prejuízos bilionários, apesar de representar um dos mais altos valores de mercado enquanto empresa. Os investidores queimam seus dólares com o objetivo de assumir o monopólio de uma determinada área (nesse caso, o transporte).
Por preços insustentáveis e tornando ainda mais precária a situação dos trabalhadores, essas empresas tomam de assalto algumas das dimensões mais importantes da nossa vida: transporte (Uber), compras (Amazon), alimentos (iFood), comunicação (Whatsapp, Facebook) etc. Não é nenhum segredo que a internet das plataformas, dos aplicativos não respeita, por exemplo, a privacidade dos usuários. Nossos dados são coletados o tempo inteiro. Até quando não estamos acessando esses sites. Quer um exemplo? Os plugins dessas redes sociais estão trackeando você nesse momento. Se você tem uma conta nesses serviços, eles sabem que você acessa o Leitor Cabuloso.
Eu deveria me preocupar?
Essa é uma dúvida legítima que eu mesmo tive ela durante algum tempo. Muitos dirão que você não precisa, sob aquele velho argumento: “Quem não deve, não teme”. Não vou dizer a razão pela qual esse argumento sequer deve ser considerado, porque, ainda mais sob o governo atual, há inúmeros motivos para temer. No entanto, baseado na leitura, o que me pergunto é: “Não deveríamos, ao menos, ter o direito de não compartilhar nossos dados?” Se não saímos na rua contando para estranhos sobre nossa vida pessoal, por que deveríamos assumir que está tudo bem que super corporações tenham todo acesso a ela? A questão então seria sobre amir mão desses dados?
Como Big Tech bem apresenta, o mais importante é ter uma clara noção de que (1) não temos direito sobre os dados que essas empresas conseguem coletar e (2) o estado não irá defender esse direito. Dessa forma, estamos nus. Não há o que possa ser feito. Em muitas instâncias, o estado monopoliza o controle, por exemplo, da violência. Por muito tempo, só o estado tinha o direito de perseguir, investigar e espionar você. Agora, tal qual em um mundo cyberpunk, do qual eu, pessoalmente, acredito estarmos nos aproximando cada vez mais, diversas empresas conseguem fazer isso.
“Estamos quase adotando um modelo de ‘feudalismo benevolente’, no qual inúmeras grandes concessões industriais, e, no nosso caso, pós industriais, assumem as responsabilidades dos serviços de proteção e bem-estar (…)”
O futuro são os antigos feudos em Big Tech
Estruturalmente, o livro é composto de uma série de ensaios sobre como a tecnologia tem assumido um lugar importante em nossa sociedade tão tomada pela ideologia neoliberal. Na minha opinião, o mais interessante nesse livro é a maneira como o Evgeny Morozov articula a discussão acerca do papel da tecnologia, com as causas e impactos econômicos desse novo modelo de sociedade que está se formando diante de nossos olhos. O autor também assume o papel de conjecturar o preço político de alguns dos acontecimentos e práticas atuais. A visão de Morozov é progressista, então os debates estão sempre confrontando o modelo de sociedade capitalista-rentista e como sua expressão máxima se encontra nos discursivos individualistas do Vale do Silício.
Como demonstrado na situação acima, Evgeny Morozov enxerga uma regressão. Se temos hoje uma sociedade capitalista, amanhã podemos voltar à uma espécie de feudalismo, em que os cidadãos são reféns do privado. O autor tece fortes críticas à ideologia e ao modelo de negócio do Vale do Silício, explicando que a tecnologia não será aquilo que solucionará todos os problemas que temos. Além disso, apresenta como o extrativismo de dados, fortemente atrelado ao modelo de negócio dessas grandes empresas de tecnologia, pode representar a morte da política, enquanto aquilo que se constituí como discussão pública em busca do consenso.
Corrida dos ratos
Ele expõe ainda como os usuários desses aplicativos estão sujeitos a serem usados como meras cobaias para essas empresas, em sua busca por eficiência e lucro. Trata, também, do vício do governo estadunidenses e das empresas em seu entorno por dados e mais dados, não havendo nenhum limite para essa coleta. Os algoritmos, cada vez mais citados em conversas comuns, são apresentados e, também, quais os efeitos da algoritimização da política na cultura democrática. O tema já mencionado do pós-capitalismo e da regressão a um sistema feudal. Há um texto dedicado a falar sobre como as tecnologias digitais têm assumido um papel totalizante na mediação das nossas vidas. E, por fim, mas não menos importante: Morozov aborda as nossas tão conhecidas fake news e nos mostra como os interesses escusos das gigantes de tecnologia se reflete nesse fenômeno tão conhecido por nós, que vivemos sob o genocida (des)governo da mentira.
Por que ler Big Tech?
Um usuário comum pode se perguntar qual a necessidade de ler sobre esses temas. E só direi que lemos sobre a realidade e, cada vez mais, nossa realidade é essa, tal qual retratado no livro. Além disso, se você é um entusiasta de tecnologia, as discussões propõem uma perspectiva bem cética e crítica sobre ela. Em geral, o livro é muito mais sobre política e economia do que sobre tecnologia em si. Isso é reforçado pelo Morozov algumas vezes em Big Tech.
Parece-me cada vez mais importante entender de que forma a tecnologia influencia outros campos da nossa vida: especialmente se você vive no país onde um candidato fascista com tão pouco tempo de TV foi eleito com base em uma campanha digital, que foi, quase exclusivamente, feita nessas grandes plataformas criticadas pelo autor. O livro nos ensina muito sobre algumas das coisas que devemos estar atentos para as próximas eleições (a desse ano então, visto que a campanha, provavelmente, será maior no online) e para os nossos próximos anos de vida. Acho que enquanto cidadãos é nosso papel estar minimamente cientes da influência dessas coisas em nossa sociedade.
Se você chegou aqui, agradeço. Lave as mãos, use máscara, mantenha o distanciamento social, se for possível. E sobreviva.
Nota
Garanta a sua cópia de Big Tech e boa leitura!
Ficha técnica
Não esqueça de adicionar ao seu Skoob
Nome: Big Tech – A ascensão dos dados e a morte da política
Autor: Evgeny Morozov
Editora: Ubu
Ano: 2018
Páginas: 192
ISBN: 9788571260122
Sinopse: Reunião dos principais artigos de um dos mais influentes especialistas em tecnologia e em internet do mundo, Evgeny Morozov. Big tech problematiza a lógica do chamado “solucionismo” tecnológico, que enxerga a tecnologia como panaceia para problemas que instituições falharam em resolver. O livro alerta que a internet e plataformas tecnológicas baseadas em dados pessoais (Airbnb, Uber, Facebook e Whatsapp, para dar alguns exemplos), diferente do que se costuma acreditar, podem servir de ferramenta contrária à democracia, dependendo da maneira como são usadas. Extremamente atual, abordando os efeitos positivos e negativos do universo automatizado em que vivemos, este livro faz parte da coleção Exit e comporta os textos essenciais do autor, inédito em português.