[Resenha] Obsessão – Clarice Lispector

Imagem de rosto de Clarice Lispector, algumas linhas lilás surgindo do centro da imagem. Em primeiro plano, o texto:
Imagem de rosto de Clarice Lispector, algumas linhas lilás surgindo do centro da imagem. Em primeiro plano, o texto: "Clarice Lispector - Todos os Contos"

Publicado postumamente, Obsessão é um conto que trata de questão atemporais, dando à escrita da história um ar moderno, com a sensação de que poderia ter sido escrito nesta década.

Primeiras Histórias

Neste conto, originalmente datado de outubro de 1941, somos apresentados a Cristina, Daniel e Jaime. Cristina, a personagem principal e narradora da história, é uma mulher simples, típica de sua época, cujas preocupações eram se casar, ter filhos e ser feliz, conforme ela mesma diz.

A Obsessão de Cristina

Aos 19 anos, Cristina casa-se com Jaime, seu então noivo, um homem também simples no jeito de ser e de pensar. Passam um bom tempo juntos, onde Cristina devaneia sobre como ela escolheu viver de maneira que suas preocupações fossem apenas aquelas do dia a dia, sem espaço para mais nada que não fosse extremamente corriqueiro, cotidiano.

No entanto, Cristina é pega de surpresa por uma doença que a obriga a ir para Belo Horizonte para “respirar novos ares”, em vista de que melhorasse: a febre tifoide. Ela, então, aloja-se em uma pensão, onde conhece Daniel, um homem que mora ali já há muito tempo. Quase que instantaneamente, Cristina se encanta pelo jeito independente, moderno, esperto e, ao mesmo tempo, ardiloso de Daniel. Começa a observá-lo com tanta atenção e curiosidade que inicia uma busca incansável por conhecer aquela pessoa tão diferente dela mesma, e que, devido a isso, desperta nela um profundo desejo de conhecer mais sobre o mundo.

Aos poucos, e de maneira inconscientemente planejada, ela se aproxima de Daniel e cria um vínculo com ele, um tipo de coleguismo, onde ela ouvia Daniel falar belamente sobre seus gostos e feitos, assim como tolera-o criticando tudo o que ela fala e pensa, em uma tentativa constante e mudá-la e de “educa-la”, palavras que ele mesmo usa.

Com o tempo, Cristina começa a absorver Daniel em sua personalidade, copiando seu jeito de pensar e de agir, como se estivesse envenenada por suas palavras duras e hostis, e começa a cada vez mais deixar-se ser absorvida por ele, de modo que, quando seu marido, Jaime, vem visita-la para passar dois dias, Cristina, por ter desenvolvido uma certa vergonha da simplicidade de seu marido e de que Daniel o visse e o conhecesse, reserva um quarto em um outro hotel, longe daquele em que Daniel estava hospedado.

O desconforto dela com o marido, neste ponto da história, é tão visível que se torna quase palpável. Suas atitudes para com Jaime se tornam duras também, fazendo-a desejar cada vez mais que este vá embora e deixe-a novamente ali, sozinha, completamente à mercê da personalidade fulgaz e depressiva de Daniel.

Seu marido, após dois dias, parte, deixando-a novamente sozinha e livre para estar com Daniel, que neste ponto já representa uma figura cuja qual Cristina nunca pensou que iria querer ser, mas que, ao mesmo tempo, percebe ser tão mentalmente adoecida.

Daniel é descontraído, prolixo, mas, ao mesmo tempo, guarda dentro de si uma melancolia pela vida e suas dificuldades, uma tristeza angustiante que ele reverte em palavras endurecidas e uma personalidade sanguínea, abusiva, na qual ele está sempre em busca de alguém que considerasse inferior para conseguir se sentir superior e imponente, e, obviamente, o seu alvo acaba sendo Cristina, que com toda a sua simplicidade e bondade de moça pouco vivida e pouco deixada viver, termina por absorver parte da personalidade de Daniel.

Para a infelicidade de Cristina, sua mãe adoece e ela é obrigada a voltar ao Rio de Janeiro, sua cidade natal, para cuidar da mãe. Ela se despede de Daniel, que não demonstra nenhuma comoção com a sua partida. Uma tabula rasa, sem sentimentos, oco por dentro, mas que, surpreendentemente, a beija nos últimos segundos juntos.
Cristina volta para sua mãe e, quando ela se cura, volta para seu marido Jaime, mas a vida já não lhe parece mais a mesma. Ela desenvolve uma obsessão por Daniel, de modo que passa a viver os seus dias irritada com tudo e todos a seu redor, fazendo constantes comparações de todos com Daniel, idolatrando-o, escrevendo-lhe cartas que nunca são respondidas, querendo-o mais do que a si mesma, e tamanha é sua obsessão que ela decide subitamente partir para Belo Horizonte em uma manhã solitária, na esperança de viver um grande amor com Daniel.

Contudo, nada sai conforme ela planejou. E é neste ponto que Cristina se transforma.
Com o passar de meses, Cristina, que então vive para cuidar de Daniel e do quarto de pensão que agora dividem, percebe que aquele relacionamento a havia obrigado a esquecer-se de se importar consigo mesma. Cristina começa então a elucidar para si mesma todas as questões que a perturbavam em sua vida atual, e como que em uma reação automática de sobrevivência, muda completamente o seu jeito de ser. Sua pacificidade e solitude se transformam em amargor e impaciência, começam a fazê-la enfrentar a hostilidade de Daniel sem medo de retaliações, e isto faz com que Daniel, mesmo ainda hostil, torne-se mais quieto, uma reação, pois ele nunca imaginaria que aquela mulher frágil e ingênua um dia se tornaria forte e imponente e se imporia em todas as questões que antes ele dominava sem nenhum esforço.

E, como todo relacionamento abusivo, como toda obsessão amorosa quando acaba, Cristina conclui que não há mais sentido em seguir com aquele homem que nunca demonstrou nenhum tipo de afeto por ela.

Em uma tarde chuvosa, ela decide terminar tudo com Daniel e ir embora. Este, como que se por ego ferido quisesse feri-la também, diz-lhe que ela sempre fora sozinha, que sempre esteve livre. Neste momento, é possível sentir a pontada de decepção que Cristina sente ao ouvir isso, o quanto as palavras de Daniel, que sempre a machucaram, mas que ela, em sua ingenuidade, aceitara como um modo de “carinho”, lhe mostram o quanto ela não merece estar ali recebendo aquele tipo de tratamento, e, então, ela parte. Volta para Jaime, que a aceita de volta, mas que já não é o mesmo com ela.
Cristina volta para a vida que antes renunciara na ilusão de ter algo “melhor”.

Com a palavra, a resenhista

Cristina é a típica mulher que todas nós somos em algum momento de nossas vidas: ingênua por acreditar demais, aceitar demais, situações e pessoas que não nos fazem bem, mas que por inexperiência aceitamos de bom grado acreditando que aquilo é, em algum nível, bom para nós.

Muitas mulheres infelizmente passam pelo quê Cristina vive, chamam de amor uma relação de posse e obsessão que as adoece e as isola do mundo. São mulheres como Cristina que estão diariamente presas em relacionamentos abusivos que aos poucos as destroem igual o relacionamento de Cristina com Daniel a destruiu. Pouco a pouco, esse tipo de relação faz com que nós tenhamos a mesma reação da personagem: ficarmos mais duras e impetuosas, quase que sempre na defensiva, por medo de sermos afetadas de novo por aquele tratamento inescrupuloso.

Nem todas as mulheres conseguem fazer o que Cristina faz: abandonar a relação adoecida e abusiva para nunca mais voltar. Existem muitas Cristinas no mundo, muitas ainda sofrendo sem conseguirem se libertar dessas relações, e é por isso que histórias assim devem ser cada vez mais escritas e lidas.

Que um dia não haja mais Cristinas no mundo, nem Danieis.

Sobre a autora

Clarice Lispector, nascida Chaya Pinkhasovna Lispector (Chechelnyk, 10 de dezembro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977) foi uma escritora brasileira, nascida na Ucrânia. Autora de linha introspectiva, buscava exprimir, através de seus textos, as agruras e antinomias do ser. Suas obras caracterizam-se pela exacerbação do momento interior e intensa ruptura com o enredo factual, a ponto de a própria subjetividade entrar em crise.

De origem judaica, terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector, a família de Clarice sofreu perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa de 1918 a 1921. Seu nascimento ocorreu em Chechelnyk, enquanto percorriam várias aldeias da Ucrânia antes da viagem de emigração ao continente americano. Chegou no Brasil quando tinha dois anos de idade.

A família chegou a Maceió em março de 1922, sendo recebida por Zaina, irmã de Mania, e seu marido e primo José Rabin. Por iniciativa de seu pai, à exceção de Tania – irmã, todos mudaram de nome: o pai passou a se chamar Pedro; Mania, Marieta; Leia – irmã, Elisa; e Chaya, Clarice. Pedro passou a trabalhar com Rabin, já um próspero comerciante.
Clarice Lispector começou a escrever logo que aprendeu a ler, na cidade do Recife, onde passou parte da infância. Falava vários idiomas, entre eles o francês e inglês. Cresceu ouvindo no âmbito domiciliar o idioma materno, o iídiche.

Foi hospitalizada pouco tempo depois da publicação do romance A Hora da Estrela com câncer inoperável no ovário, diagnóstico desconhecido por ela. Faleceu no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu 57° aniversário. Foi sepultada no Cemitério Israelita do Caju, no Rio de Janeiro, em 11 de dezembro de 1977.

Nota

Cinco selos cabulosos. A maior nota do site.
Cinco selos cabulosos. A maior nota do site.

 

 

 

 

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Ficha técnica

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Nome: Todos os Contos
Autor: Clarice Lispector
Editora: Rocco
Ano: 2016
Páginas: 656
ISBN-13: 9788532530240
ISBN-10: 8532530249
Sinopse: Autora de romances e contos que figuram entre os mais emblemáticos da literatura brasileira, Clarice Lispector é considerada uma das mais importantes escritoras do século XX. Sua popularidade alcançou níveis surpreendentes nas últimas décadas, especialmente após o fenômeno da internet, mas sua figura e sua obra seguem exercendo sobre leitores o mesmo e fascinante estranhamento que causaram desde sua estreia literária, em 1943.

Nesta coletânea, que reúne pela primeira vez todos os contos da autora num único volume, organizado pelo biógrafo Benjamin Moser, é possível conhecer Clarice por inteiro, desde os primeiros escritos, ainda na adolescência, até as últimas linhas. Essencial para estudantes e pesquisadores, para fãs de Clarice Lispector e iniciantes na obra da escritora, Todos os contos foi lançado nos Estados Unidos em 2015, figurando na lista de livros mais importantes do ano do jornal The New York Times e ganhou importantes prêmios, como o Pen Translation Prize, de melhor tradução. Agora é a vez de os leitores brasileiros (re)descobrirem por completo esta contista prolífica e singular.