Este livro aborda, principalmente, como um contexto social pode influenciar (arriscaria até dizer determinar, distorcer e, aqui, mais especificamente, animalizar) as pessoas. A história desse romance é a de retirantes sertanejos migrando durante o período de seca. Apesar da aparente simplicidade, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, é notadamente único. Por quê? Tratemos por partes.
História Plural e Cíclica
O título, por exemplo, reflete muito do que se passa durante a narrativa. O retrato de diferentes “vidas” (atente-se ao plural). Entramos, através do narrador onisciente e do uso do discurso indireto livre, na cabeça de cada uma das personagens principais. Assim, ainda que pareçam estereotipadas, a narração constrói sua singularidade, individualidade. Quanto ao “secas” refere-se não apenas à situação climática, mas também pode ser relacionada com os elementos formais do texto, como a prosa enxuta, que raramente lança mão de adjetivos ou figuras de linguagem. Essa crueza acaba até mesmo suprimindo os diálogos – artifício que se justifica pelo (não) repertório vocabular, verbal ou linguístico das personagens -, predominando assim as descrições.
Visto que tratamos do clima, nos voltemos ao espaço – o sertão nordestino – que também se constituí enquanto personagem ao longo da narrativa. Pode-se dizer isso porque o espaço não apenas influencia, mas chega a determinar as ações das personagens durante toda história. A seca é o principal conflito de Vidas Secas. Como é mais perceptível no final do livro, apesar de ser uma característica presente ao longo de toda narrativa, há uma ciclicidade de acontecimentos. Aquela não parece ser a primeira (tampouco a última) vez que aquela família vivencia a seca. Isso nos é sugerido, entre outros, pelo título do primeiro e do derradeiro capítulo. Respectivamente: “Mudança” e “Fuga”. Ambas etapas que se sucedem/antecedem. Os retirantes fogem da seca buscando a mudança durante a vida inteira. Na transição entre um capítulo e outro, através da indeterminação do tempo passado entre cada um deles, é também um sintoma desse ciclo inescapável, parece.
Agentes de seu tempo e lugar
Os personagens, como já dito, sujeitos tão comuns, tão típicos quando pensamos sua situação social – o que facilmente os tornaria estereotipados, não fosse Graciliano -, são especialmente singulares em suas dores e desejos.
As contradições entre ações e pensamentos. A forma “bruta” de agir de Fabiano (pai) em contraposição a visão terna de sua família – como, na miséria em que é jogado, consegue ainda manter a dignidade paternal. O mesmo, Sinha Vitória (mãe), que vivência essa mesma situação desesperado imposta pela seca, e, apesar da não perspectiva de mudança (para melhor), continua tendo esperanças, sonhos e desejos (ainda que muitos simples, básicos, como uma cama mais confortável, no entanto, devemos dizer completamente autênticos, próprios).
A anteriormente citada situação de animalização imposta aos personagens, tem como uma das implicações a deficiência vocabular dessa família. Isso nos é mostrado pela quase ausência de diálogos, como dissemos; ou melhor ilustrado pela situação de desconhecimento de uma das personagens (filho de Fabiano) da palavra “inferno”, em dada medida tão comum ao linguajar sertanejo. Através desses exemplos temos uma real noção da profundidade dos problemas dessas personagens, do quanto sua situação é limite, do que os é imposto. E é quando o narrador de Graciliano retrata seus pensamentos (inclusive, ressalto, da cachorra da família Baleia) que faz essa família mexer com nossas angústias e preocupações mais profunda, especialmente para nordestinos, como eu.
O bicho humano e o humano bicho
Finalizo retomando a situação de animalização imposta aos personagens. Baleia, a cachorra da família, tem seus pensamentos expostos em uma intensidade maior do que a dos filhos de Fabiano ao longo de todo o livro, por exemplo. Assim é que o narrador reitera o quão drástica é essa situação. Os retirantes retratados nesse livro estão em pé de igualdade com uma cachorra, um animal – e não de forma depreciativa, necessariamente, afinal não há julgamentos senão acerca dessa situação. Como na cena em que Sinha Vitória beija o focinho da cadela, no início do livro, logo após ter sua vida salva por ela. Naquele momento, as duas criaturas são iguais, são apenas bichos tentando sobreviver.
E o quantas situações como essa ainda existem hoje em dia? Talvez o grande valor de Vidas Secas seja nos fazer refletir um pouco sobre o que/como não deveria ser.
Garanta o seu exemplar e boa leitura!
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Autor: Graciliano Ramos
Edição: 120ª
Editora: Record
Ano: 2013
Páginas: 176
ISBN: 9788501114785
Sinopse: O que impulsiona os personagens é a seca, áspera e cruel, e paradoxalmente a ligação telúrica, afetiva, que expõe naqueles seres em retirada, à procura de meios de sobrevivência e um futuro. Apesar desse sentimento de transbordante solidariedade e compaixão com que a narrativa acompanha a miúda saga do vaqueiro Fabiano e sua gente, o autor contou: “Procurei auscultar a alma do ser rude e quase primitivo que mora na zona mais recuada do sertão… os meus personagens são quase selvagens… pesquisa que os escritores regionalistas não fazem e nem mesmo podem fazer …porque comumente não são familiares com o ambiente que descrevem…Fiz o livrinho sem paisagens, sem diálogos. E sem amor. A minha gente, quase muda, vive numa casa velha de fazenda. As pessoas adultas, preocupadas com o estômago, não tem tempo de abraçar-se. Até a cachorra [Baleia] é uma criatura decente, porque na vizinhança não existem galãs caninos”. VIDAS SECAS é o livro em que Graciliano, visto como antipoético e anti-sonhador por excelência, consegue atingir, com o rigor do texto que tanto prezava, um estado maior de poesia.