A Filha do Sol e da Lua

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A menina veio boiando dentro de um cesto, pelas águas negras do Xingu, como se tivesse sido enviada até eles pelos deuses. Sua pele era branca feito a Lua e seus cabelos eram amarelos, da cor do Sol. Quando o índio que estava pescando avistou o cesto e verificou o que continha, saiu correndo em direção à tribo, gritando que o sol e a lua tinham mandado um presente para eles. Todos os tupis começaram a espalhar histórias, dizendo que ela era filha do Sol com a Lua e que foi enviada para que cuidassem dela como se fosse uma deles.

A essa menina foi dado o nome de Inca-Mair, um nome que combinava o significado de “pequena flor” com “pessoa branca”. Ela sempre se destacou entre a tribo, não só pelas diferenças de pele e do cabelo, mas também pela coragem e teimosia. Não havia nada que a menina temesse e nada que não quisesse fazer. Era uma exploradora e sempre que podia se embrenhava na mata, contra a vontade dos pais adotivos.

Seus olhos eram ferozes e aventureiros. Quando se encarava aquelas íris azuis-claras por muito tempo, dizem alguns, se podia ver todo o universo. Afinal, ela era filha do Sol e da Lua.

Quando completou cinco anos, seus pais tiveram dois filhos gêmeos: Cauê, o mais velho, e Ipê, o caçula. Ela os amou a partir do primeiro momento em que os viu, e jurou para os deuses que os protegeria, custasse o que custasse.

Desde seus dois anos, quando começou a andar e a se aventurar pela mata ao redor da tribo, até completar dez anos, Inca-Mair já tinha matado porcos, cobras e até uma onça-pintada. Cauê herdou um pouco do espírito aventureiro da irmã, porém sempre ficava com um pé atrás quando ela propunha algo muito perigoso ou que faria com que os pais se zangassem. Já Ipê era o medo em forma de pessoa, e, por isso, tanto Inca-Mair quanto Cauê o protegiam. Amavam a inocência do caçula, e, sempre que podiam, o enchiam de beijos e abraços.

 

2

Inca-Mair sabia que estava dormindo, mas isso não impedia que os pelos de seu corpo arrepiassem. Encontrava-se na mata, em algum lugar que ela não reconhecia, e sua mãe estava presa ao tronco de uma enorme árvore, inconsciente.

O local estava escuro; era noite e a luz da Lua não penetrava as copas das árvores, tão grandes que, se as escalasse, poderia tocar os céus.

Inca-Mair começou a ensaiar alguns passos em direção à mãe, mas seus pés foram presos por uma espécie de cipó. Já estavam ali antes? Não senti eles enrolados em meus pés, pensou.

Sua mãe começou a despertar. A menina sorriu ao perceber que ela não estava morta, mas os olhos da mãe se arregalaram logo que encontraram Inca-Mair.

— Corra! Ele está atrás de você! — berrou, cuspindo uma mistura de saliva e sangue.

Inca-Mair se virou enquanto algo batia em sua cabeça. Sentiu o sangue jorrar e esquentar o lado esquerdo de seu rosto, ao mesmo tempo que o outro lado se chocava com o chão, cheio de folhas secas. Virou o pescoço o máximo que pôde para tentar ver seu agressor. Viu uma silhueta alguns metros à sua frente, mas sua vista estava borrada e não conseguiu enxergar as feições do que a atingiu. Tentou se levantar, mas a força escapou de seus braços e seu rosto chocou-se novamente com o solo.

Ela não estava entendendo. Não sabia o que era aquela criatura, mas sabia que não era humana. Conseguiu ver, forçando os olhos, que a aura dela era vermelha e suas mãos eram levemente maiores que as de um ser humano normal. Além disso, seus pés tinham a forma das patas de um lobo, peludas, negras e com garras enormes.

A criatura começou a se agachar na direção de Inca-Mair, e ela pôde sentir o hálito moribundo saindo de sua boca. Sussurrou no ouvido da garota, deixando seu rosto fora do campo de visão. Com medo do que poderia acontecer, Inca-Mair apertou os olhos o máximo que pôde, até começarem a doer.

— Escute o que tenho a dizer, filha do Sol e da Lua. Quando acordar, tudo que peço é que traga até mim seus dois irmãos. Veja, criança, o que acontecerá caso você não fizer o que eu lhe digo.

Algo fez com que suas pálpebras se abrissem lentamente, e ela chorou com o que viu. A mata deu lugar à sua tribo, mas não era como ela costumava ser. Havia fogo por todo o lado, e corpos. Corpos espalhados, queimando, estripados, inertes na terra.

Ainda deitada, sem forças para levantar, avistou seus irmãos. Cauê estava no chão, sem se mover, enquanto Ipê se inclinava sobre o corpo do irmão. Ele está tentando reanimá-lo, pensou. O garoto pareceu ouvi-la, e começou a se virar, com dentes vermelhos à mostra, esboçando um sorriso sanguinário. Ele não estava tentando reanimar o irmão; estava comendo o corpo dele, devorando a carne e bebendo o sangue.

Inca-Mair berrou, mas a voz não saiu. Ipê levantou-se e foi em sua direção, um passo de cada vez, se divertindo com a situação. Quando chegou perto, se abaixou, da mesma forma que se abaixou para devorar Cauê, mas quando seu rosto entrou no campo de visão de Inca-Mair, ela acordou, gritando. A última imagem que viu a acompanharia não só pelo resto daquele dia, como pelo resto de sua vida.

 

3

Acordou assustada. Olhou para a porta da oca e viu a luz do sol. Era dia. A rede dos pais estava vazia e aquilo apertou o coração da menina. Os irmãos ainda estavam dormindo, apesar de seu grito.

Levantou-se e saiu. Precisava falar com o Pajé sobre o sonho e também queria saber onde seus pais estavam.

Ela não era a única acordada. Pela localização do Sol, presumia que fossem seis horas da manhã, mas já havia índias e índios fazendo seus trabalhos. Mulheres preparando a comida e homens arrumando suas armas para caçar. Nenhuma mulher era proibida de se juntar aos índios na caça, mas quase que a maioria preferia ficar na tribo, junto aos filhos e às outras mulheres.

As crianças só podiam se juntar ao grupo de caçadores quando completassem treze anos. Inca-Mair tinha dez e, ao ver aquelas pessoas e suas armas, sentiu uma excitação. Não via a hora de poder ir mais além na floresta e aprender outras técnicas com os mais experientes.

Desfez-se daqueles pensamentos ao lembrar do sonho. Foi correndo em direção à oca do Pajé e, ao chegar, chamou-o. Não demorou muito e ele pediu que ela entrasse.

— Inca-Mair, minha pequena. O que traz você aqui tão cedo? Deveria estar dormindo.

Ela sorriu para o Pajé. Adorava conversar com ele e gostava principalmente das histórias que contava. Mas não foi para ouvir histórias que ela foi até lá. Dessa vez, foi ela quem contou a sua história, o seu sonho.

O Pajé ouviu tudo, prestando atenção em cada detalhe do que Inca-Mair dizia. Quando ela terminou, ele sorria.

— Por que está sorrindo, Pajé?

Ele se levantou e pegou a mão da menina. Olhou fixamente os grandes olhos azuis dela e disse:

— Tudo isso foi um sonho, minha criança. A criatura com a qual você sonhou se chama Abaçaí. Ela é um espírito maligno, que persegue índios pela floresta e os deixa loucos. Alguns dizem que ele é apenas uma história para assustar criancinhas, e outros juram que já o viram e tiveram de largar tudo e sair correndo, com medo de nunca mais voltarem. Mas eu nunca ouvi da boca de alguém que eu conhecesse, não nessa tribo, que já o tenham visto. Foi tudo um sonho.

Não podia ser apenas um sonho, e Inca-Mair sabia disso. Foi tudo muito real, mas preferia fingir aceitar as palavras do Pajé. Perguntou-lhe se tinha visto seus pais, pois estava preocupada com eles. Ele disse que os dois tinham saído cedo para caçar. Queriam algo especial para o almoço, pois completavam trinta e dois anos juntos naquele dia.

Ela assentiu e voltou para sua rede. Os irmãos ainda dormiam, como se nada tivesse acontecido. Deitaria-se mais um pouco e esperaria que os pais chegassem quando acordasse.

Mas não chegaram.

Acordou novamente com o canto dos índios chamando os demais para o almoço. Sacolejou seus irmãos até que a preguiça os abandonasse. Lavaram o rosto rapidamente o foram para o pátio onde todo dia comiam com o resto da tribo. Os olhos de Inca-Mair correram por todas as direções e não encontraram nem o pai e nem a mãe. Eles já deveriam ter voltado.

Deixou a preocupação dentro de sua cabeça e se juntou aos irmãos. Assim que Ipê terminou tudo o que tinha pego para comer, Inca-Mair puxou os irmãos pelo braço e levou-os em direção à oca da família.

— O que foi, Inca? Por que toda essa pressa em sair do pátio? O Pajé nem começou com as histórias ainda — resmungou Cauê, chateado por perder a sua parte favorita do dia.

Inca-Mair se sentiu mal por privar o irmão daquele momento, mas seria breve. Logo ele e Ipê voltariam para o pátio. Só precisava avisá-los do que faria.

— Papai e mamãe sumiram e eu vou atrás deles. Sonhei que algo tinha pego nossa mãe e estava prestes a fazer algum mal a ela. Eles sumiram desde as seis horas, Cauê. Vou atrás deles e quero que você fique aqui com nosso irmãozinho.

O garoto esboçou uma expressão de irritação e seus olhos negros se estreitaram:

— Claro que não vou ficar aqui de braços cruzados, Inca. Iremos juntos, nós três.

A garota se segurou para não chorar ao lembrar do que a criatura tinha lhe pedido. Se aquele sonho fosse real e ela levasse seus irmãos junto, seria o fim dos dois. Ela jamais se perdoaria por deixar as duas pessoas que mais amava em perigo.

— Não, Cauê; você e Ipê ficam aqui. Você vai proteger ele de qualquer coisa que possa aparecer na tribo. Não tenho mais tempo a perder. Fique aqui com ele e fiquem seguros. Logo volto com mamãe e papai.

Ela apressou os passos em direção à casa das armas e pegou uma grande lança, sua arma preferida. Saiu de fininho para que ninguém a seguisse.

Da porta da oca, Cauê e Ipê viram a irmã sumindo por entre as grandes árvores. Mas Cauê não ficaria ali de braços cruzados. Eram os pais dele que estavam em perigo, e não deixaria que Inca-Mair fizesse aquilo sozinha. Pegou Ipê pela mão e foi em direção ao ponto da mata onde, minutos atrás, sua irmã havia entrado.

 

4

Como pode estar tão escuro aqui, se há pouco o sol brilhava?, pensou a garota, segundos após entrar na mata.

Não estava tão escuro quanto em seu sonho, mas ela sabia que era porque ainda era dia. Tinha que ser rápida. Acharia o local do sonho e veria se seus pais estavam lá. Caso não estivessem, voltaria para a tribo e, se não tivessem chegado, informaria ao Pajé. Certamente ele convocaria um grupo de busca.

Caminhou pelo que pareceu uma eternidade, tendo que abrir, pelo menos umas três vezes, caminho por entre mata virgem. Sabia que estava perto, mas não sabia como. Era um pressentimento. Durante todo o percurso se deixou guiar por ele, e sabia que estava perto. Ao pensar nisso, seu coração acelerou e suas preces foram enviadas aos deuses, para que não encontrasse nem seu pai nem sua mãe presos a uma árvore. Quando chegou ao lugar do sonho, seu coração congelou. Não encontrou nada além de árvores. Nem sinal de seus pais, e muito menos de Abaçaí.

Resolveu verificar as redondezas em busca de algum sinal perdido, algo que fosse imperceptível caso alguém não estivesse procurando. Mas sua busca foi em vão.

Inca-Mair estava voltando para a tribo, com uma espécie de felicidade por não ter achado seus pais amarrados e sofrendo nas mãos daquele demônio, quando ele apareceu.

Estivera lá o tempo todo, observando-a. Agora ela conseguia vê-lo por completo. Uma criatura um pouco mais alta do que ela própria, com o rosto desfigurado, como se alguém lhe tivesse ateado fogo e, de alguma forma, ao invés de ter queimado, derreteu. Aquela aura vermelha que contornava todo o seu corpo era ainda mais forte do que no sonho.

Inca-Mair congelou. Sua mente gritava para que corresse, mas seus pés não obedeciam. Tinha certeza que a criatura era real e que seu sonho, de alguma forma, poderia vir a acontecer também. As imagens da tribo e de seus irmãos vieram à sua cabeça e aquilo pareceu destravá-la. Começou a correr. Estava quase fora do alcance de Abaçaí quando avistou seus irmãos. E o demônio também percebeu a presença deles.

— Corram! — gritou.

E foi isso o que eles fizeram. Começaram a correr por entre a mata, na frente da irmã mais velha. Se jogavam por arbustos intocados pelo homem e pulavam por galhos de árvores centenárias, que ficavam imóveis assistindo aquela fuga descontrolada.

Inca-Mair arriscou uma olhada para trás e viu a criatura se movimentando. Ela corria rapidamente, como um animal. Corria com suas patas de lobo e suas mãos disformes, todas no chão. Movimentava-se com a boca cheia de dentes pontiagudos escorrendo saliva. Os olhos da criatura eram verdes e sem íris, o que a deixava ainda mais assustadora.

Voltou a olhar para frente e seguir os irmãos. Estavam certos de que conseguiriam fugir daquilo. Que chegariam na tribo e teriam ajuda do Pajé para combater a criatura, quando, ao atravessarem mais um daqueles arbustos, a esperança os abandonou.

 

5

Inca-Mair e seus irmãos estavam encurralados na beira do penhasco. Abaçaí se encontrava na frente deles, sorrindo, mostrando seus grandes dentes.

Finalmente conseguiram ver a luz da Lua. Como o tempo passou rápido. Parece que estou aqui há minutos, pensou a menina.

Os pés de lobo do demônio eram ainda mais aterrorizantes que no sonho de Inca-Mair, e as mãos tinham unhas compridas e afiadas.

— Acho que esse é o fim da linha para vocês, ó, filha do Sol e da Lua. Eu lhe dei a opção de me entregar os dois — disse a criatura, apontando seu dedo pontiagudo para os dois irmãos gêmeos — para que eu poupasse os outros, mas como vocês fugiram e o trato não foi firmado, depois que terminar com vocês acabarei com a tribo toda também.

A menina não sabia o que dizer. Não sabia por quê o demônio estava fazendo aquilo com eles. Nunca lhe fizeram nada de ruim… Arriscou-se a perguntar:

— O que foi que fizemos para enfurecê-lo tanto, criatura?

Abaçaí gargalhou. Olhou a garota no fundo dos olhos e respondeu:

— Você não me fez nada, filha do Sol e da Lua. Quem fez foram seus pais. Eles geraram essas duas crianças do seu lado. É deles que eu tiro meu poder. Quando um irmão gêmeo se alimenta da carne e do sangue do outro, isso me fortalece, me deixa ficar nesse plano por mais tempo.

Abaçaí avançou e Ipê deu um passo para trás, assustado. Seu pé escorregou na beirada do penhasco e ele se desequilibrou. Inca-Mair foi rápida e o segurou pelo braço, trazendo-o novamente para a segurança do solo.

Ela percebeu uma expressão de espanto no rosto de Abaçaí. Se um dos irmãos morresse, ele não teria como se alimentar. Mas logo tirou aqueles pensamentos da cabeça.

A criatura continuou a andar na direção deles, e Inca-Mair não sabia mais o que fazer. Pegou-se, inconscientemente, pedindo ajuda. Não sabia para quem, mas pedia. Clamava por socorro, para que alguém aparecesse e os salvasse daquele monstro.

Foi Cauê quem berrou, pegando Abaçaí de surpresa:

— Deixe-nos em paz! Fique comigo, mas deixe minha irmã e meu irmão em paz! Faça o que quiser comigo, mas não machuque eles!

Lágrimas escorriam pelo rosto do rapaz. Amava os irmãos e não se perdoaria, fosse naquela vida ou na próxima, se algo acontecesse com qualquer um deles.

— Ah, pequeno Cauê, que heroico da sua parte. Mas acho que não há por quê eu aceitar sua vida em troca da dos seus irmãos, se eu já tenho a de vocês três em minhas mãos. Além disso, eu preciso de vocês dois juntos, não separados.

O garoto se deixou cair no chão, sentando em cima dos pés e com as mãos cobrindo o rosto. Estava tudo perdido. Falhara com os irmãos e com a tribo. Todos iam morrer, e a culpa era toda dele por ter seguido sua irmã pela floresta.

Inca-Mair se abaixou e abraçou Cauê. Puxou Ipê para baixo e ficaram ali, abraçados, enquanto Abaçaí avançava. Já tinha perdido a esperança quando algo começou a brilhar no caminho de onde eles tinham vindo

A criatura percebeu a expressão de felicidade da menina e se virou no mesmo instante em que um veado branco, com grandes olhos vermelhos, saía da floresta. Quando falou, sua voz parecia uma mistura de trovão com palavras.

— Deixe essas crianças em paz, Abaçaí. Deixe a elas e toda a tribo em paz

Inca-Mair percebeu um certo temor na voz de Abaçaí:

— Não se meta nisso, Anhangá. Seu dever é proteger animais, e não se intrometer em assuntos meus com os humanos. Você sabe que é dessa forma que eu me alimento e é dessa forma que me mantenho vivo e forte.

O veado branco não pareceu dar atenção ao que a criatura dizia.

— Eu estou aqui para proteger os inocentes dos corrompidos, demônio. Deixe-os em paz e volte para as profundezas da mata, de onde você nunca deveria ter saído.

Abaçaí foi em direção a Anhangá. O veado se transformou em um espectro humano com uma longa lança de madeira. Seu cabelo era amarelo como o de Inca-Mair, e sua pele era tão branca que dava a impressão de que brilhava quando tocada pela luz, que parecia ser da Lua. Os dois travaram uma batalha.

Anhangá se jogou para cima de Abaçaí, mirando sua lança direto no coração da criatura, que desviou por poucos centímetros. O golpe passou rente ao seu peito, criando um pequeno arranhão.

Enquanto Anhangá recuperava o equilíbrio da investida falha, Abaçaí projetou suas garras em sua direção, acertando-o nas costas e derrubando-o no chão. Colocou seus pés nas costas do adversário, pressionando-o contra a terra.

— Nunca gostei muito de você, Anhangá. Que oportunidade maravilhosa essa que me foi dada: acabar com você e depois destruir essas criaturas imundas e toda a sua tribo.

Anhangá tentou se levantar, mas Abaçaí voltou a forçar seu pé contra as costas do outro, e começou a socá-lo. Anhangá estava prestes a perder a consciência quando a sua lança atravessou o peito de Abaçaí, fazendo-o cuspir sangue.

O espectro empurrou o demônio, derrubando-o de lado no chão, ainda com a lança atravessando seu corpo. Viu que quem o tinha salvo era a menina de cabelos amarelos e pele branca. A filha do Sol com a Lua, como todos os espíritos a chamavam.

Anhangá pronunciou algumas palavras que Inca-Mair não conseguiu entender e retirou a lança do corpo de Abaçaí. Virou-se para os três índios e disse:

— Venham comigo. Levarei vocês de novo em segurança até sua tribo. Lembrem bem do que viveram hoje e nunca se aventurem dessa forma novamente. Existem coisas nessa floresta que vocês desconhecem. Coisas piores do que ele — terminou, olhando para o corpo inerte de Abaçaí.

Inca-Mair pegou a mão dos dois irmãos e foi em direção ao espectro, que agora voltara a sua forma de veado branco. Ele pediu que subissem em suas costas. A menina não conseguiu segurar a curiosidade e perguntou:

— Ele está morto? Eu matei ele?

Anhangá olhou-a, virando a cabeça para trás, e falou em um tom afável:

— Não, criança; você apenas o pôs para dormir. Daqui a cem anos ele despertará novamente, e provavelmente acordará furioso e buscando vingança. Mas, no momento, não se preocupe; vocês estão seguros.

Inca-Mair fez um sinal de aprovação com a cabeça e então Anhangá os levou de volta para casa.

Pouco antes de chegar no local onde horas atrás os irmãos adentraram a mata, Anhangá os deixou.

— Vão, crianças. Seus pais e a tribo inteira estão procurando por vocês. Digam a todos o que aconteceu e fale ao seu Pajé sobre a necessidade de proteção. Abaçaí é apenas um dentre tantos demônios que vivem nessa mata, e a história que a filha do Sol com a Lua o derrotou ecoará pela escuridão da floresta e chegará aos ouvidos desses outros seres que se alimentam da escuridão. Você não está mais segura em circular sozinha por aqui. Nenhum habitante da sua tribo está.

A figura deu as costas aos três e se foi, tão sorrateira quanto havia aparecido. Aos poucos o brilho emanado por ela foi engolido pela escuridão da floresta.

Quando saíram da mata, Inca-Mair abriu um grande sorriso e seu coração começou a pulsar mais rápido. Correndo em sua direção vinham seus pais, que logo juntaram os três irmãos em um longo e apertado abraço.

Inca-Mair faria o que a criatura tinha pedido: alertaria o Pajé e a tribo sobre os perigos que eles correriam a partir daquele dia. Contudo, uma sensação de ser observada mesclava-se com a de sentir-se segura. Podia jurar que um par de olhos (ou vários pares) estava escondido por entre os galhos das árvores e arbustos da floresta, observando-os. Estudando-os. Planejando um momento de atacar e talvez até de se vingar por Abaçaí. No entanto, o abraço dos pais foi levando aquele emaranhado de sentimentos para longe, pouco a pouco, até que a sensação de segurança e o amor que eram transmitidos através daquele gesto dissipou-o de vez.

Estava em casa e, naquele momento, era tudo o que importava.

 


João Paulo Effting nasceu na cidade de Blumenau, Santa Catarina. Desde criança é apaixonado pelo gênero de fantasia/terror e, sempre que podia, estava lá, assistindo a filmes com monstros e mistérios. Atualmente, com 26 anos, vive na cidade onde nasceu, e trabalha como Desenvolvedor de Sistemas. Nas suas horas vagas, sempre está com um livro em mãos, paixão que descobriu com aproximadamente quinze anos, quando, em uma biblioteca, encontrou o primeiro livro da renomada saga Harry Potter, da escritora J.K. Rowling.