Já estava muito velho quando finalmente se cansou de vestir todo dia a mesma farda. Usando a bacia de água, ele tirou camadas e mais camadas de maquiagem, acumuladas ao longo dos anos. Encarando no espelho, perguntou-se o quão fundo se podia chegar. E toda vez que uma camada dissolvia, encontrava-se mais com o vazio da expressão verdadeira.
Os presbíteros de São Luiz davam cinco voltas na praça Lindolfo Bell todas as manhãs, mas naquele dia não houve procissão. O irmão Marcos tinha se matado no segundo andar.
Diversas perguntas foram feitas para as pessoas erradas. Até hoje, vozes se alteram quando o assunto é discutir o que leva um homem santo a querer encontrar o diabo. São as mulheres, falou um que muito falava e pouco sabia. Os irmãos, em sua maioria, não desejavam mulheres.
Mas isso não impediu uma mulher de desejar irmão Marcos, na época, um jovem sonhando com aviões de guerra fabricados nos Estados Unidos. Quando as bombas caíram nos Japoneses, ele decidiu virar Santo. Em dezembro, ela casou-se com seu primo. Mesmo com dois anos de diferença, os dois eram muito parecidos.
A igreja cuidou do velório, os dois insistiram em pagar o caixão. Eram donos da loja de móveis e o carpinteiro não cobrou. Um homem santo, disse ele.
O caixão ficou pequeno, mas não houve quem negasse o presente.
Dois cachorros moravam na praça Lindolfo Bell antes daqueles dias. Um, era magro de doer. O outro, era tão magro que dava dó. Irmão Marcos deu comida e conquistou a confiança dos dois, como fizera com os outros irmãos.
Linguado e Peteca uivaram durante todo o funeral, ao ponto do Bispo — ninguém esperava presença menos importante — mandar que os irmãos fossem se livrar de pelo menos um dos dois. O outro ficaria de sobreaviso.
Piedosos, soltaram os cachorrinhos na divisa com Guadalupe, onde viveram grandes aventuras, foram adotados por um pescador caolho e tiveram dezenove filhotes.
No meio da missa alguém cochichou que o irmão havia se matado. Até a homilia todo mundo já sabia, e, em meio aos cânticos, uma bolsa de apostas já estava aberta. Queriam saber se ele ia ser enterrado junto com os cristãos de verdade. E assim foi.
Em São Luiz todo mundo fala que foi ali que tudo começou a dar errado. Embora os mais velhos insistam que tudo estava errado há muito mais tempo, e os muito mais velhos nem se lembrem mais de quando as coisas eram certas, mas sabiam que agora tudo estava errado.
Enterraram o suicida como um cristão, porque ele era santo. E assim virou um santo suicida, único de sua categoria e diretamente de São Luiz. Tudo o que teve em vida foram cem milagres confirmados e um revólver guardado na caixa de evidências. Dizem que, quando o assunto finalmente chegou ao Papa, este desistiu do emprego. Por garantia, chamaram um argentino.
Na época, a notícia parou na mesa do editor do Notícias Populares, que ligou para Augusto, que era amigo de Filipe, que morava perto de João. João disse para Filipe que disse para Augusto que disse para Raimundo que era melhor ele deixar o assunto morrer. Um cheque de cinquenta mil parou na mesa do editor no dia anterior que ele desapareceu da redação. Sem assunto, optaram por seguir com aquela história do bebê diabo.
Assim, a chance de São Luiz aparecer para o Brasil morreu junto com o santo. Outras ideias vieram, como uma estátua do irmão, uma escola no seu nome ou, quem sabe, rebatizar uma rua. Todo prefeito daquela cidade de dois mil habitantes prometeu ao menos um monumento dedicado ao Santo.
Nenhum monumento foi erguido, mas oito prefeitos ganharam nomes de ruas.
Embora o homem fosse santo com mais de cem milagres confirmados, só ficou conhecido em São Luiz. O são-luzente mais famoso acabou sendo João Miguel, da dupla Jefferson e Leandro. O engraçado é que mesmo João Miguel tendo sido curado de um mal terrível pelo homem santo, jamais em toda sua vida pública chegou a comentar sobre o ocorrido ou sua cidade natal.
Por alguns anos, o sentimento em São Luiz sobre o cantor era de alguém que venceu na vida. Diziam que eram felizes pelo garoto fazer tanto dinheiro. Depois, o sentimento passou a ser de raiva, por ele não ter voltado para dar o dinheiro para eles. Onde já se viu, disseram, garoto ingrato, confirmaram. E o assunto ficou assim por mais cinco anos, até o empresário de João Miguel dar cinco tiros nas costas dele em legítima defesa.
João não morreu, mas não se fala mal de um homem que é baleado cinco vezes nas costas por outro em legítima defesa. Nessa época, o Notícias Populares não existia mais e Raimundo já tinha passado por cocaína, heroína e chá de fita.
Raimundo ficou conhecido pelos colegas como o único sujeito que tomou chá de fita e se arrumou. Sobre isso, houve aquela vez em que tomei cerveja em um bar com Aurélia, irmã de sua segunda esposa, que me disse que o homem que ela conheceu, morreu na bebida.
Uma das netas de Linguado e Peteca acabou parando no programa do Gugu. E isso é tudo que tenho para falar desse assunto.
Quanto ao irmão Marcos, homem santo e suicida, soube que, quando chegou no inferno, foi separado dos suicidas comuns. O diabo não queria ele influenciando e dando esperança para as almas torturadas. Ganhou um apartamento próximo ao Rio de Janeiro, mas sem vista para o mar. Faz parte da mesma panelinha de Galileu e São Francisco. Muitas vezes, passa horas discutindo com Melquíades se o jejum às quintas e aos domingos não seria de fato obrigatório para se ir para o céu.
Luís H. Beber não é escritor e não usa o primeiro nome.
Aparentemente, esse desinteresse é comum em pessoas chamadas “Luís”.
É apresentador e produtor de podcast no Homo Literatus.
Você pode escutá-lo todo mês no podcast Hora Alucinógena.