Em uma prisão controlada pelo exército, um grupo de crianças segue uma estranha rotina. Comparecem a aulas diárias. Semanalmente são banhadas e alimentadas. E, exceto quando estão em suas celas, permanecem contidas em cadeiras de roda reforçadas, onde passam a maior parte do dia. Esse é o overview básico de “A Menina que tinha Dons” do britânico M.R.Carey.
A protagonista é Melanie, uma criança superdotada e muitíssimo dócil por quem sentimos uma afeição imediata. Ela é aficionada por datas, que lhe passam a tranquilizadora sensação de controle. Também decorou boa parte da geografia de seu país e é um prodígio com números. Além disso, nutre uma devoção imensa por uma de suas professoras, a senhorita Justineau. O que Melanie não sabe sobre si mesma – o segredo que todos escondem dela – é que ela é uma Faminta – uma variação dos nossos tradicionais zumbis.
“A morte e a donzela embrulhadas num só pacote.”
Em seu romance de estréia, M.R.Carey traça um paralelo entre Melanie e o mito de Pandora. De acordo com a mitologia grega, Pandora foi a primeira mulher a existir e recebeu dádivas de todos os deuses – daí o seu nome: “aquela que tem todos os dons”. Como Pandora, Melanie é repleta de dons: força, inteligência e sagacidade. Ao mesmo tempo, representa enorme perigo: enquanto a maioria dos zumbis é guiado apenas pela fome, Melanie tem consciência de si mesma e do mundo. Quão perigosa é uma arma quando ela tem discernimento de sua capacidade de matar?
– Esta é a Pandora – disse a Srta. Justineau. – Ela era uma mulher maravilhosa. Todos os deuses a abençoaram e lhe deram dons. É isso que seu nome significa…’A menina com todos os dons.’ Então ela era inteligente, corajosa, bonita, engraçada e tudo mais que vocês iam querer ser.
O núcleo ao redor de Melanie é muito interessante, principalmente no conflito entre a senhorita Justineau, professora das crianças, e a doutora Caldwell, cientista-chefe do experimento que tenta criar uma cura para o vírus da Fome. Justineau quer tratar as crianças com humanidade e respeito – afinal de contas, não é a consciência de si que define os seres humanos? Caldwell, porém, tenta enxergar as crianças – e Melanie principalmente – como cobaias, como a única saída para salvar a humanidade. E, por não saber se há outros cientistas vivos no resto do mundo, está disposta a ir até as últimas consequências.
“A Menina que tinha Dons” é uma narrativa sobre como o medo frente ao desconhecido nos torna preconceituosos e cruéis. Mesmo sendo apenas uma criança, Melanie personifica o perigo, o estranho, o incomum. Portanto, deve ser ou destruída ou adestrada. É lindo vê-la se rebelar contra isso, principalmente quando põe os olhos pela primeira vez na imensidão do mundo e compreende tudo que seria capaz de realizar. Sem dúvidas, Melanie é uma leitura moderna e muito bonita para o mito de Pandora: de um lado, todos os males do mundo. Do outro, escondida no fundo da caixa, a esperança.