[Coluna] O poder da primeira frase

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A primeira frase é o equivalente a primeira impressão. Muita gente diz que é a capa – não me entenda mal, a capa também tem seu peso – mas a verdade é que o primeiro contato que seu leitor terá com você é aquele espaço entre o branco da página e o seu primeiro ponto final.

E não é só a ideia de uma literatura fast-food. Gostando ou não, essa é uma realidade que novos escritores precisam encarar: se um editor recebe centenas de exemplares a cada semana, é insano imaginar que todos serão lidos da primeira a última linha. Caso você busque uma publicação por uma editora maior, não se engane: você não tem seu livro todo para conquistar o editor. Você tem a primeira página. Tem os 300 caracteres de resumo que te pediram. Tem os trechos da sua obra. E, acima de tudo, você tem sua primeira linha.

Mas, como eu mencionei, o poder da primeira frase não se resume ao “buscar uma editora”. Grandes e impactantes obras, clássicos da literatura, não raramente possuem primeiras frases bem marcantes.

Alguns exemplos?

“Hoje, morreu a minha mãe”. O Estrangeiro, de Camus. E então ele continua com o clássico “Ou talvez ontem, não sei bem”.

“Sou um homem doente… um homem mau…” é o começo de Memórias do Subsolo de Dostoievski.

“Tudo isso aconteceu, mais ou menos”. Matadouro 5, de Kurt Vonnegut.

“Quando, certa manhã, Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso”, A Metamorfose de Kafka, na minha opinião, um dos maiores “primeiras frases” da literatura, já que O Processo também não fica para trás.

Pense com cuidado na sua primeira frase. Não considere o primeiro parágrafo do seu texto concluído até que o último ponto final tenha sido dado. É o momento de voltar a primeira página e imaginar “O que dizer? O que resume minha história? O que condensa o conteúdo mas ao mesmo tempo o torna misterioso e necessário?”

Lendo Neuromancer, de William Gibson, encontrei na sua nota do autor um comentário que eu achei, não apenas interessante, mas de uma importância imensa.  A obra, para quem não a conhece, é a precursora do gênero cyberpunk, foi a principal inspiração para o filme Matrix e é tida como uma referência no campo de tecnologia e modernidade. Foi por isso que o comentário do autor, logo no começo da sua nota, chamou minha atenção.

 “Levei pelo menos uma década”, diz Gibson, “para perceber que muitos de meus leitores, mesmo em 1984, jamais poderiam ter vivenciado a frase de abertura do Neuromancer do jeito que havia imaginado que eles vivenciassem”. Com esse comentário, Gibson se mostra receoso que o teor de sua primeira frase tenha perdido o propósito e não seja mais cumprido.

Para quem ainda não leu ou não se recorda, eis a primeira frase do livro: “O céu sobre o porto tinha a cor de uma televisão sintonizada num canal fora do ar”.

Genial, discreta, de uma simbologia imensa para uma obra do gênero cyberpunk. Tudo isso é verdade.

Mas e a “cor de um canal fora do ar”? Qual a criança, nascida a partir dos anos 2000, acostumadas com tvs digitais ligadas na internet, vai conseguir compreender a referência e a grandiosidade da frase?

É uma primeira frase incrível.

Mas não é atemporal, como percebeu o próprio autor.

Não é só o começo. Não é só o momento de pegar tração e deixar a criatividade embalar.

Sua primeira frase é, por muitos motivos, provavelmente a parte mais importante da sua história. Pense nela com cuidado.