[Conto] O Homem Vivido

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– Que dia horrível! – resmungou o homem, que afastava as cortinas com a mão para que pudesse ver como estava fora daquelas paredes de cimento.

Como dois irmãos, céu e mar ostentavam um azul digno do brilho de um diamante. No plano superior, que aos olhos humanos parecia se prolongar infinitamente, aquela cor encontrava-se em todo lugar, como uma base, um plano de fundo para uma obra de arte.

Espalhados primorosamente pela sua extensão, o grandioso sol e algumas nuvens, finalizavam aquela visão com a maior cautela possível, que só um ser superior poderia moldar, ou para os céticos, como apenas um certeiro conjunto de reações podia proporcionar.

O sol aparentava estar muito maior do que se pode esperar de um dia qualquer. O calor era forte, mas sopros de ventos leves auxiliavam na criação de um clima agradável.

– Seria pedir muito um dia de chuva para um funeral? – questionava, para quem pudesse ouvir, além do buldogue, com a mesma cara rabugenta do dono, que o encarava deitado no sofá.

Mario era velho. Não, velho não era a palavra certa, Mario era vivido. Claro que 68 anos já era o suficiente para classificar uma pessoa como idosa, mas não era raro conhecer pessoas que chegavam muito mais longe.

Os cabelos grisalhos já tomavam conta, apesar de um ou outro fio negro que resistiam bravamente. A barba, também branca, era rasa, rodeando a boca e se ligando com os cabelos através das entradas das costeletas.

Uma barriga simpática também se fazia presente. Mario achava que já passara da idade em que tinha que se preocupar com isso e sua coleção de camisas xadrez de flanela funcionavam bem para disfarçar o relevo. Por último, os olhos claros, que presenciaram todas suas lembranças e também o que já não se lembrava mais.

Bem, é importante explicar que quando Mario se referiu a um funeral, ele falava do seu próprio. Era estranho falar de seu velório em terceira pessoa, mas não tinha ninguém que pudesse fazer isso por ele.

Segundo como o próprio homem planejou, aquela seria sua última tarde de vida. Mario sentia que estava na hora de se despedir e como não queria esperar na fila do manejador de foices, achou melhor agilizar o processo.

Não entenda errado, em sua cabeça, isso não se tratava de nenhum ato depressivo. Na verdade, Mario estava bem determinado em ter uma boa despedida, preferia muito mais fazer algo que o agradava do que acabar morto em uma cama. Já era um homem sozinho, então nesse caso, o suicídio não podia ser classificado como egoísta. As únicas pessoas que o restavam, na verdade, a única, porque provavelmente não se deve contar um buldogue como pessoa, era sua enfermeira, que o visitava de tempos em tempos.

Não havia se esquecido de Ringo, é claro. Os anos de convivência entre o buldogue apelidado, carinhosamente, com o nome do baterista inglês, foram suficientes para desenvolver um grande laço, mas a mulher que cuidava de Mario, Helena, uma ótima pessoa, nutria um  grande afeto pelo animal e vivia comentando de como um dia teria um próprio cachorro. Sendo assim, o homem resolveu deixar um simples bilhete para a enfermeira, que deveria o visitar no dia seguinte ao seu suicídio:

Estou morto, cuide de Ringo.

Sim, provavelmente simples demais, talvez precisasse ser mais sutil. Teria até o anoitecer para trabalhar nisso, realmente não era bom com as palavras.

Sem outras pessoas para se preocupar e achando que já tinha visto tudo, pelo menos tudo que sua condição financeira permitia, achou que era o suficiente, sua vida não fora ruim. Teve momentos muito felizes, mas que, como qualquer coisa, foram engolidos pelo tempo.

A noite se aproximava. A hora marcada para o grande evento estava chegando e nenhuma mínima sensação de medo, ou um mísero impulso de voltar atrás, existia no coração de Mario. Ele estava sereno, talvez até um pouco excitado, quem sabe o universo teria compaixão de permitir que tudo ocorresse como planejado.

 ***

Com certeza esse era um dos jantares mais românticos que Mario já tivera. Aproximava-se da meia noite, passava-se muito da hora na qual o homem vivido costumava dormir, mas na situação em que se encontraria nas próximas horas, sua rotina já não era tão importante.

Empenhara-se tanto para fazer a comida como para preparar a mesa, mas em sua cabeça tudo isso era necessário, afinal, aquela seria a última refeição com seu amado Ringo.

Algumas velas jaziam entre os dois pratos, frente a frente, homem e cachorro sentavam nas cadeiras. Mario comia um prato de espaguete, o seu preferido e Ringo comia selvagemente a melhor refeição que já tivera, devido aos caprichos de seu dono. O cachorro realmente parecia um humano, confortável no seu assento

Depois de se alimentar, satisfeito, o animal foi até o sofá e se deitou. A ação desencadeou um sorriso singelo em Mario, ele realmente torcia para que o cachorro se adaptasse bem sem sua presença.

Às vezes era como se o relógio zombasse das pessoas. Quando se espera por alguma coisa, o tempo parece demorar mais. Mario se encontrava nessa situação, mas depois de muito combater com a ansiedade, as duas horas da manhã apareceram nos ponteiros.

O silêncio da madrugada sempre o atraiu, além de que, à essa hora, ninguém estaria na rua para atrapalhar seus planos. Acariciou a cabeça do seu companheiro, que ainda jazia descansando em cima do sofá, cabeça encostada e roncando em volume baixo. O animal não podia estar mais satisfeito.

Bateu a porta da casa e foi em direção ao seu destino final, a ponte Hercílio Luz. Para ele, aquela história terminaria em lugar um perfeito. Amava a cidade de Florianópolis, não era nativo, verdade, mas desde quando a visitara  pela primeira vez, ainda pequeno, sempre teve o desejo fervente de se aposentar ali.

– Bom dia, amigo. Que a paz seja contigo… – o homem vivido, enquanto andava, recitava versos já ditos antes, mas recitava para ninguém, além da imensidão da noite.

– Eu vim somente dizer que te amo tanto, que vou morrer… – agora sorria, mas sorria sozinho e sereno.

Os postes de luz projetavam o caminho por onde Mario passava. Como planejado, as ruas por onde rumava estavam completamente vazias, silenciosas, a não ser pelo próprio homem que às vezes balbuciava algumas palavras.

– Amigo, adeus…

Seguiu a passos pesados. A rua em que andava era estreita, seguiu observando as casas e gostou do padrão que via. Todas tinham detalhe com madeira e isso o atraia. O céu estava repleto de aparições de estrelas.

Após alguns minutos de caminhada, não o bastante para o deixar cansado, Mario viu o seu objetivo e não podia esperar mais nada do que já tinha imaginado. Era perfeito, a Hercílio Luz ficava linda ao anoitecer e a primeira vista estava completamente vazia, como esperava.

Conforme adentrava o lugar, ficava mais maravilhado. Observou o horizonte, a visão era linda e apesar de ter se questionado se suicidar-se afogado seria a melhor opção, por prever um momento precedente de sofrimento, viu que aquela altura seria o suficiente para dar conta de um homem vivido como aquele.

Agora mais seguro, antes de pular para o fim, deu uma última olhada ao redor:

– Não me leve a mal, mas não podia ter escolhido lugar melhor para morr… – Antes que pudesse acabar a frase, uma visão o interrompeu. – Mas o que?!

De longe avistou um homem. Onde estava parecia só uma sombra negra, mas dava para ver que ele apontava um revólver para a própria cabeça.

Mario, andando rapidamente, foi em direção ao homem e irritado falou:

– Ei amigo, eu meio que já tinha marcado esse lugar para hoje, você não pode se matar aqui no mesmo dia que eu, vai me desvalorizar totalmente, você está estragando meu funeral! – Falava alto, já que ainda não estava perto da pessoa. Ao se aproximar percebeu que era um homem alto, de rosto limpo, cabelos escuros e penteados para cima.

– Você não vai me impedir! Já estou decidido, ela… me… deixou…, como pode? – o homem que parecia jovem falava quase choramingando.

– Eu não acredito, um Romeu? Era só o que me faltava, o universo deve estar de brincadeira comigo. – Mario zombou do rapaz.

– Desiste! Você não vai me impedir! – Repetiu o jovem.

Mario riu, irônico:

– Desistir? Impedir? Romeu, acho que você não entendeu, eu meio que tinha reservado o dia para o meu suicídio, você não pode se matar agora. – Respondeu o homem vivido.

– Como assim não posso me matar?  Eu realmente não acho que se pode reservar uma ponte. – As lágrimas do jovem foram trocadas por indignação.

– Olha Romeu, eu realmente não to afim de discutir e  pelo seu rosto dá para ver que você é bem jovem, então eu sei e, no fundo você também sabe, que você não ama tanto essa mulher para se matar por causa dela, agora peço gentilmente que você caia fora! – Respondeu Mario.

– Para de me chamar de Romeu, esse não é meu nome e não importa se eu tenho vinte anos, podem passar mais vinte, mais quarenta e nunca vou achar uma mulher como ela!

– Vinte anos? Você deve estar de brincadeira – Mario riu – Agora com licença Romeu, ou seja qual for seu nome, tanto faz, acho que sendo mais velho tenho prioridade aqui.

Aquela situação extravagante e inesperada mexeu com a cabeça do homem mais jovem, afinal o que ele estava fazendo ali? Ia acabar com a sua vida por causa de uma mulher? Certo que estavam juntos desde o tempo de escola, mas se matar parecia um pouco idiota.

– Ahn, ok… – um tanto consciente e um tanto confuso ao mesmo tempo, largou a arma no chão, deu as costas para o homem desconhecido e começou a andar.

– Só o que me faltava… – Mario reclamou consigo mesmo. – Bem, onde eu estava?

O homem tentou retomar sua cena final, mas aquele garoto, o tal Romeu, realmente tinha estragado tudo, não sabia se ia conseguir recomeçar o momento.

– Merda – Mario reclamou baixinho.

Aquele momento tinha sido quebrado, Mario teria que voltar na próxima noite. Seguiu todo caminho anteriormente percorrido na ponte, irritado com o azar daquela situação inoportuna.

Enquanto atravessava a rua que o levaria de volta para o trajeto que fez na ida, olhou para trás, viu a silhueta do homem que se desfazia com a distância. Idiota, pensou. Ao retornar o olhar para frente, o tempo de reação foi mínimo, um carro esporte branco que vinha com a máxima velocidade possível acertou-o em cheio. Mario caiu, morto.

Amigo, adeus…

 

 


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Lucas Garcia é estudante e leitor assíduo de obras de qualidade, independente do gênero, de Machado de Assis a Stephen King.