Ao terminar de ler o livro “O Doador de Memórias” cheguei a uma simples conclusão: esse livro me deixou mais cheia de dúvidas do que de respostas. E me fez ficar mais pensativa e ter mais vontade de me debruçar em busca dessas respostas e de outras que surgiram no meio do caminho, do que eu realmente imaginaria que ele teria o poder de fazer.
Vou me explicar: o livro se desenrola em uma sociedade totalmente controlada e idealizada. Essa sociedade é perfeita: não existe nada de negativo ou errado com ela ou com seus membros, pois todos são saudáveis, bem educados, bem sucedidos em suas unidades familiares e em suas profissões. Nessa sociedade utópica não existe fome, doença, tristeza, agonia, ansiedade, raiva, depressão, cansaço, estresse, acidentes ou morte descontrolada. Todos nascem para cumprir um propósito e são orientados por todas as etapas de suas vidas para cumprir com êxito e perfeição cada nova tarefa para o qual é designado. Ela é, em suma, uma sociedade equilibrada.
Motivo pelo qual ela funciona assim e funciona tão bem? As pessoas não tem memória.
Não estou falando daquela memória breve, aquela que nos embala no sonho bom todas as noites ou nos aterroriza a noite quando nos deitamos. Não é essa lembrança facilmente acessível e acessada por mais vezes do que nos damos conta durante o desenrolar de nosso dia. Estou falando de memória histórica, memória do povo, conhecimento de causa e consequência. Estou falando de carregar o peso de todo os erros e glória de todos os acertos dos nossos antepassados, de forma que flutuando no espaço possamos notar-nos como seres que estão também inseridos dentro de um tempo presente, presente que virará um futuro.
Consegue imaginar?
Quando a utopia vira distopia
A comunidade onde Jonas, um garoto de doze anos, vive é uma sociedade utópica tão controlada e regrada que vive sob o manto da distopia e ninguém sabe.
Digo “saber” pois não se trata de “notar”, já que o próprio conhecimento é limitado uma vez que as pessoas não sabem nada além do que lhes foi designado a saber.
Nessa sociedade, cada novo dezembro significa um novo ano. E a cada novo ano os novos membros ganham novos objetos e objetivos que estão vinculados aos seus poderes e ir e vir, fazer e desenvolver. Assim, quando se chega aos doze anos, essas crianças recebem dos Anciãos a designação de suas futuras profissões.
Para evitar erros, as crianças são observadas por toda a sua infância. Logo, é muito difícil que haja algum erro na indicação de profissão e atuação na sociedade.
E a função de Jonas é a mais honrada de todas: Recebedor de Memórias. Sua função é a de receber todas as memórias de um passado do qual ele não sabia que existia, ser conhecedor de todas as verdades do mundo e sentir em sua própria pele todos os sentimentos humanos possíveis. Dessa forma, é esperado que ele esteja apto a se tornar um sábio, estando sempre pronto a ajudar aos demais quando for solicitado.
É durante seu treinamento que Jonas conhece o Doador de Memórias, um adulto com aspecto de ancião que carrega em sua alma e corpo todas as verdades e irrealidades do universo. Sua obrigação? Passar esse cargo e todas as sensações a seu aprendiz.
Mais perguntas do que respostas
Como eu disse no começo dessa resenha, esse livro me deixou com mais perguntas do que respostas.
Algumas delas são de cunho relacionado ao próprio desenrolar da história. Alguns aspectos como desde quando essa sociedade vive na Mesmice e o porquê de algumas pessoas como Jonas não serem como os outros não são explorados no livro. Não é explicado também como funciona essa tal de doação de memória. Embora eu tenha algumas opiniões pessoais, fica tudo subentendido, não dá pra saber se minha interpretação está correta ou não.
O mesmo acontece com diversas cenas, que parecem que ficam meio vagas. O próprio fechamento da obra nos dá essa sensação – aconteceu? Ele lembrou? Ele viveu? Ele criou? Enfim… cabe a você, leitor e leitora, decidir tais respostas.
Saindo de dentro das linhas e indo para a esfera “fora da caixa”, esse livro infanto juvenil desperta a curiosidade acerca de algumas questões. E essas questões são verdadeiros tapas na cara e tocam uma ferida muito incômoda em nossa vida: como podemos julgar e acusar alguém de outra cultura, grupo social, religião, orientação sexual, idade ou profissão se não temos acesso a tudo o que eles sentem e sabem, assim como eles também não têm acesso à nossas intimidades?
Isso fica muito bem retratado quando Jonas começa a ver cores e aprende a nomeá-las. Como ninguém mais as vê, ele nunca foi ensinado a vê-las e portanto não sabia de sua existência, bem como as demais pessoas não o sabem. Complexo? Dolorido, eu penso.
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Análise crítica
Sem mais delongas, o livro é um livro infanto juvenil, escrito portanto para jovens. A sua linguagem é simples e o conteúdo é promissor, pode até ser confuso ou “pesado” para alguns. Para outros, pode parecer incompreensível.
Não é um lançamento, foi originalmente escrito em 1993 e classificado como “ficção científica”, “drama”. O título original é “The Giver” (O Doador). Existe o tom distópico, embora seja sutil e esteja nas entrelinhas.
A última edição, lançada em 2014 pela Editora Arqueiro, traz a capa da adaptação cinematográfica. Ponto para quem gosta, aaaaargh para quem detesta. O que não falta, é claro, são opções de deixar o leitor escolher qual capa ele quer ter em sua estante, mas isso é outra discussão.
As fontes tem um excelente tamanho e o espaçamento facilita o ritmo de leitura. É um livro rápido de ser lido (principalmente se você passar batido pelos questionamentos e focar apenas nas palavras – o que acho muito difícil!). As folhas são amarelas (ponto para quem gosta!) e ele tem as orelhas de livro (aquelas mesmas que fazem falta em edições econômicas).
Para quem leu o livro e espera a continuação, boas e más notícias: “O Doador de Memórias” é o primeiro volume de uma saga de quatro livros. Porém, eles não tem relação entre si.
É, não sei mais o que dizer depois disso. Minhas perguntas vão ficar mesmo sem respostas ou dependentes da minha interpretação? E não é sempre assim?! Enfim… Leia!
Nota
Dados técnicos
Nome: O Doador de Memórias
Autora: Lois Lowry
Edição: 1ª
Editora: Arqueiro
ISBN: 9788580412994
Ano: 2014
Páginas: 192
Sinopse: Em “O doador de memórias”, a premiada autora Lois Lowry constrói um mundo aparentemente ideal onde não existem dor, desigualdade, guerra nem qualquer tipo de conflito. Por outro lado, também não há amor, desejo ou alegria genuína. Os habitantes de uma pequena comunidade, satisfeitos com a vida ordenada, pacata e estável que levam, conhecem apenas o presente o passado e todas as lembranças do antigo mundo lhes foram apagados da mente. Um único indivíduo é encarregado de ser o guardião dessas memórias, com o objetivo de proteger o povo do sofrimento e, ao mesmo tempo, ter a sabedoria necessária para orientar os dirigentes da sociedade em momentos difíceis. Aos 12 anos, idade em que toda criança é designada à profissão que irá seguir, Jonas recebe a honra de se tornar o próximo guardião. Ele é avisado de que precisará passar por um treinamento difícil, que exigirá coragem, disciplina e muita força, mas não faz ideia de que seu mundo nunca mais será o mesmo. Orientado pelo velho Doador, Jonas descobre pouco a pouco o universo extraordinário que lhe fora roubado. Como uma névoa que vai se dissipando, a terrível realidade por trás daquela utopia começa a se revelar.