Computador ligado, processador de texto aberto, página em branco. Alguém com minha experiência já deveria estar habituado a essa sensação, mas quem pode se acostumar a algo que é ao mesmo tempo tão familiar e assustador, um mal que se manifesta no branco absoluto? Quanta inveja destes escritores copiosos que despejam facilmente palavras e mais palavras no papel. Comparada a estes prolíficos autores, minha imaginação é um tonel de água com um minúsculo furo, por onde as ideias escapam em forma de gotículas a irrigar um grandioso deserto branco. É verdade que já fiz uma ou outra anotação e desenhei algumas linhas de raciocínio, mas o que tenho até agora é apenas matéria bruta.
Duas coisas me preocupam neste momento: o prazo e a obra do outro lado da rua. O primeiro vence daqui a alguns dias; o segundo eu não tenho certeza quanto tempo dura. Este último é mais grave e tem tornado minhas atribuições extremamente complicadas. Funciona assim: estou bem no meio de um raciocínio, um esforço faraônico para construir um argumento quando o som insistente de uma marreta entra pela janela, despedaçando qualquer vestígio daquela iniciativa criadora. Quando não é a marreta, é uma serra ou um trator ou uma britadeira ou um caminhão ou mesmo uma makita multiuso. Todos em uma barulhenta conspirata para me impedir de cumprir o prazo acordado.
A movimentação durante o dia é intensa, mas à noite também há agitação na obra. Ontem mesmo eu perdi uma frase tão bonita por causa do clarão de uma solda que refletia diretamente no espelho à minha frente, como se tudo estivesse ocorrendo bem aqui dentro de casa. Fui até a janela e fechei as cortinas, mas quando retornei ao computador era demasiado tarde. A frase já havia escapado. Cheguei a ligar para a associação de moradores no dia seguinte para reclamar do barulho e da agitação, mas fui informado de que eles possuíam permissão para trabalhar até de madrugada, evitando apenas barulho excessivo, seja lá o que isso signifique.
Às vezes eu me levanto e vou até a janela, onde posso ver claramente o vai-e-vem de operários, máquinas e materiais. Vez em quando um engenheiro surge e dá algumas instruções aos funcionários enquanto aponta alguma coisa na prancheta que leva consigo. Logo desaparece. Um dos vizinhos me disse que ali será construído um condomínio residencial. Ainda estão levantando a estrutura dos primeiros pavimentos, mas já especularam que terá no mínimo uns 15 andares. Com a parte que já foi construída bloquearam uma fração da vista de uma igreja que fica no alto de um morro. Ainda posso ver parcialmente a cruz no topo, mas não consigo deixo de pensar que o bloqueio tirou um pouco da proteção divina que havia sobre mim. Em breve haverá uma ausência completa.
Cheguei a creditar minha dificuldade com a escrita à pauta proposta pelo editor, mas creio agora que o problema é realmente a obra aqui em frente. É certo que a pauta me desagrada terrivelmente, mas a obra é ainda pior. Ontem durante o dia notei a primeira presença feminina naquele ambiente. Em um lugar amplamente dominado por homens, a mulher se destacava de maneira particular. E como era bela! Estava vestida de maneira simples: jeans, tênis e uma camisa social branca. Usava um capacete de proteção conforme mandava o protocolo e luvas amarelas. Chegou acompanhada de um engenheiro e debateu algumas questões com seus subordinados, apontando o dedo aqui e acolá. Depois se retirou. Tinha uma expressão séria e uma postura muito profissional. Caminhava com firmeza enquanto conversava com seus colaboradores. Os cabelos loiros e suavemente cacheados eram constantemente acariciados por uma leve brisa que se aventurava por ali. Era magnífica, mas fingia não ser, como se a beleza pudesse ser irrelevante em qualquer circunstância. Os operários acompanhavam seus passos com um misto de admiração e surpresa. Eu fazia o mesmo. Alguns – creio que todos – a desejaram.
Ontem à noite consegui escrever alguns parágrafos devido ao silêncio incomum que se instalara na obra. Antes de iniciar meus trabalhos, fiquei observando as sombras que se acomodavam por toda parte. Notei que não havia ninguém trabalhando naquela ocasião. Imaginei se estávamos em um feriado ou algo do gênero. Sentei para escrever e escrevi. Levantei-me à certa altura para esticar a coluna e fui até a janela. Fiquei um tempo vislumbrando o emaranhado de cimento, tijolos e materiais que mais tarde dariam forma a um prodígio da engenharia. A obra estava deserta e silenciosa, totalmente dominada pelas trevas. Uma sensação de calmaria pairava no lugar. Subitamente percebi algo se mover entre as sombras em um canto destacado da edificação. Firmei os olhos naquele ponto específico – como desejei um binóculo! – e só então pude perceber o que ocorria. Era a mulher do dia anterior. E não estava só, uma figura masculina a acompanhava. Abraçavam-se e beijavam-se freneticamente. Despiram-se de suas roupas e voltaram a se beijar. E se tocaram e se chuparam e fizeram tudo o que havia para ser feito entre um homem e uma mulher na escuridão. Fiquei ali parado durante todo aquele tempo, observando sombras que trepavam loucamente. Refleti por um tempo, entre o tesão e a razão, pensamentos indo e voltando, corpos indo e voltando. Imaginei os motivos que levariam aquela mulher a optar pelo lugar sombrio quando poderia estar em qualquer outra localidade mais segura e confortável. Imaginei-a em canteiros de obras por todo o país. Desci meu calção, tirei a cueca e me masturbei. Segurei o gozo o quanto foi possível, tentando acompanhá-los. Terminamos praticamente juntos. Fui ao banheiro lavei as mãos e fui dormir sem escrever mais nenhuma linha.
Tentei retomar a escrita na manhã seguinte, mas a movimentação na obra havia regressado ao caos costumeiro, com toda a sonoridade característica que me impedia de produzir um único parágrafo. Tentei forçar a barra e escrever ao menos algumas linhas, mesmo envolto naquela atmosfera perturbadora. Desisti logo nas primeiras tentativas. Aproveitei o tempo livre para realizar outras atividades pendentes e providenciar um binóculo. Corri à janela diversas vezes durante o dia, fosse pela esperança de rever a engenheira da noite anterior ou mesmo para acompanhar as ocorrências cotidianas da construção. À noite retornei ao quarto para escrever, mas não pude. A obra não permitia. Era constantemente assaltado pelas lembranças da noite anterior, pela devassidão daquelas sombras que se devoravam na penumbra. Aguardei a noite toda de tocaia, incansável e mesmo assim, só o que pude contemplar foi o trabalho de alguns operários. As horas passaram rápido enquanto eu aguardava e quando percebi já era manhã.
No dia seguinte liguei para meu editor e pedi a prorrogação da data da entrega do material. Ele ouviu minhas explicações com incredulidade, mas aceitou a súplica por nossa longa amizade. Agradeci efusivamente e desliguei o telefone. Teria mais uma semana para terminar o trabalho. Descansei naquele dia. Não escrevi e tentei me manter o mais distante possível da obra. Na manhã seguinte notei-a completamente deserta. As máquinas estavam paradas e nada de trabalhadores em suas atividades costumeiras. Desci até o térreo para conversar com o porteiro. A obra foi embargada, ele me disse. Parece que faltava alguma papelada da prefeitura.
Subi correndo as escadas, sem paciência para aguardar o elevador. Fui até o quarto, coloquei o ventilador na potência máxima e liguei notebook. Pensamentos e conexões vieram à mente, transferidos imediatamente ao papel através do teclado. Finalizei o primeiro parágrafo, o segundo e o terceiro. Comemorava o rompimento do bloqueio agora que estava livre das distrações causadas pela obra. Terminei o quinto parágrafo confiante e fui buscar um copo d’água na cozinha, aproveitando para descansar a cabeça brevemente. Retornei ao quarto e me sentei na cadeira. Quando fui depositar o copo sobre a mesa, percebi uma trilha de formigas no chão. Estavam agitadas, formando um caminho até o vão entre o armário e a parede. Percebi que carregavam os restos de uma mariposa morta caída atrás da mesa. Pensei em ir à cozinha buscar o inseticida e me livrar das formigas, mas desisti ao percebê-las tão formidáveis e organizadas naquela tarefa de dividir o cadáver e carregar as partes até o formigueiro. Deitei-me no chão, bem ao lado do corredor formado por elas. Fiquei, talvez por horas, observando-as trabalhar.
Anderson Henrique nasceu no Rio de Janeiro, Capital, em 1982. É formado em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa. Alguns de seus textos foram premiados em concursos literários nacionais. Publicou nos livros “Dramas Urbanos”, pela editora Monte Castelo, “Dimensões.br” pela editora Andross, “Grimoire dos Vampiros” e “Ufo – Contos não identificados” pela editora Literata. Em 2014, publicou seu primeiro livro solo entitulado “Anelisa Sangrava Flores”. Blog do autor: Anelisasangravaflores.