[Estante Mágica] A coragem de contar uma História Sem Fim

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O AURIN
O AURIN

Frequentemente me perguntam qual é meu livro preferido. Acho que não é uma surpresa para os interlocutores eu citar um de fantasia, mas – levando em conta o tipo de história que escrevo – acho que a maioria espera ouvir: “O Hobbit”! ou “O Senhor dos Anéis”! No entanto, embora admire o trabalho de J. R. R. Tolkien e tenha tido muito prazer com a leitura de suas obras, meu favorito de todos os tempos é um livro que li aos dezessete anos de idade: A História Sem Fim, do alemão Michael Ende, publicado pela primeira vez em 1979 e que muitos conhecem através do filme dirigido por Wolfgang Petersen (1). A canção-tema passou a ser também a minha música preferida, aliás. (2) Em 2014, o filme chegou ao seu trigésimo aniversário, e eu aproveito para falar um pouco sobre o livro que lhe deu origem… e marcou para sempre minha carreira literária.

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Bastian

A História Sem Fim tem como protagonista Bastian Baltazar Bux, um menino que menos compreende a si mesmo do que é, de fato, incompreendido. Há diferenças entre o Bastian do livro e o do cinema: o primeiro é gordinho, introspectivo e solitário, enquanto no filme, pensado para agradar a um público acostumado ao cinema americano, o menino é vivido pelo magrinho Barret Oliver e sofre bullying na escola. Seja como for, em ambas as versões Bastian vem a travar contato com um misterioso antiquário, o Sr. Koreander, e não resiste a “pegar emprestado” um livro de sua loja. Na capa, uma serpente que morde a própria cauda: o Ouroboros alquímico, relativo ao eterno retorno. E é bem por aí, pois no livro acabam por se fundir a experiência de leitor de Bastian e as aventuras do herói da obra lida por ele.

No livro que Bastian lê – ou melhor, devora -, um reino denominado Fantasia está desaparecendo velozmente, e sua salvação está nas mãos de um jovem caçador chamado Atreiú (no cinema, Noah Hathaway, que no filme “Troll”, lançado em 1986, vive um menino chamado Harry Potter Jr. (3) Será que J. K. Rowling viu esse filme?). Na companhia de seu cavalo, com quem vive uma das cenas mais tristes e tocantes já incluídas num filme de fantasia, Atreiú passa por toda sorte de provas e peripécias, acompanhadas por Bastian com o coração aos pulos e os olhos arregalados… até chegar à conclusão de que Fantasia deve recomeçar do ponto de partida, e que este depende da intervenção de uma criança humana.

Bastian continua a ler, com ansiedade cada vez maior, enquanto nós, leitores do livro de Ende, vemos se mesclarem as partes do livro que tratam dele e de Atreiú. Na verdade, a partir de certo momento, os trechos, compostos em cores diferentes (em verde para Bastian, em vermelho para Fantasia, na minha edição da Martins Fontes), começam a ser complementares um ao outro — e tal é a habilidade de Ende que, quando se percebe que a criança que todos esperam em Fantasia é o próprio Bastian, a própria noção de se estar diante de duas histórias paralelas praticamente já desapareceu. Um trabalho magistral de escrita… que, no entanto, está apenas começando.

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Atréio e Falkor

Não vou dar spoilers, na possibilidade (improvável) de que alguém não tenha nem sequer visto o filme. A maioria de vocês deve conhecer o cavalo Artax, o Dragão da Sorte (um dragão chinês, com formato de serpente – o do cinema lembra um pouco um cachorro), o Monstro que Come Pedras, a Imperatriz Criança e outros personagens. O que poucos sabem é que o livro não termina daquele jeito, e muito menos naquele ponto; e a sua continuação nada tem a ver com as duas (atrozes) sequências que a obra ganhou nas telas.

É na segunda parte de A História Sem Fim que realmente começa o meu fascínio. Após ter salvado Fantasia da destruição, Bastian é convidado a formular uma série de desejos, a partir dos quais aquela terra mágica vai sendo reconstruída e reinventada. No entanto – a exemplo do que acontece com os irmãos de Wendy e os Meninos Perdidos, em Peter Pan -, cada um daqueles desejos vai apagando a verdadeira identidade de Bastian, fazendo-o esquecer de seu pai, de seu passado, de sua vida, enfim, no mundo que podemos chamar “real”. Recuperar a memória e a identidade, a partir do único elo que sobrou, é um trabalho difícil, mas finalmente ele consegue – e volta para seu próprio universo, deixando que Atreiú, desde sempre habitante de Fantasia, viva por ele as aventuras que lhe restam por viver.

Quase trinta anos depois de ter lido esse livro, é difícil explicar por que ele foi tão importante para mim. Na verdade, foi uma espécie de “sacudida”, ou melhor, de “despertar” para a pessoa que eu era, para o que vinha fazendo e para o rumo que queria dar à minha vida (sim, eu pensava nisso aos dezessete, aposto que muitos aqui também!). Eu sempre gostei de escrever, mas antes que começasse efetivamente a fazê-lo houve a fase de criar, de inventar histórias, e, como vocês sabem, nem sempre isso recebe apoio e compreensão por parte das pessoas com quem a gente convive.

Capa do livro A História Sem Fim
Capa do livro A História Sem Fim

Lembro a quem estiver lendo que isso aconteceu na década de 1980. Naquele tempo, antes do boom que foi o Harry Potter (não o Jr.), o gênero fantasia era pouco divulgado, ainda mais no Brasil. Não havia uma Internet que unisse as pessoas com os mesmos interesses, e praticamente ninguém com quem eu pudesse trocar ideias. Fui rotulada de “louca”, “infantil” e até mesmo “esquizofrênica” em diversas ocasiões. A alegação era a de que eu “vivia em outro mundo” e “não separava a fantasia da realidade”, coisa que hoje, olhando para trás, posso afirmar que não acontecia. Ao contrário de Bastian, nunca corri o risco de perder meu elo com o “mundo real”. O risco que eu corri foi, isso sim, o de cercear minha criatividade, abrindo mão de tudo que havia de original em mim pelo desejo de ser “igual às outras pessoas”.

Na época em que li “A História Sem Fim”, eu passava por um momento de crise e de muitas indagações a esse respeito. Eu tinha lido os livros de Tolkien, mas não o maravilhoso “Sobre Histórias de Fadas” (4), que contesta a ideia da fantasia como escapismo e argumenta que, ao contrário, ela pode nos ajudar a superar nossas barreiras e os problemas cotidianos. Também não tinha lido Joseph Campbell nem Clarissa Pinkola Estés, que acompanharam os meus vinte e os meus trinta anos e que eu recomendo, em doses fartas, a todos os escritores, não apenas os de literatura fantástica. Assim, o livro de Michael Ende permaneceu especial, não apenas pelo prazer que me proporcionou ao lê-lo, mas também por ter me fornecido um insight precioso: a consciência de que um mundo fantástico, maravilhoso, existia dentro de mim, e que eu podia criar o que quisesse, não importando se alguém iria ler e muito menos se me chamariam de maluca.

De qualquer jeito, isso me tornaria mais forte para enfrentar os monstros que vivem aqui fora.


  1. Artigo da Wikipedia sobre o filme “The Neverending Story”, de Petersen http://en.wikipedia.org/wiki/The_NeverEnding_Story_(film)
  2. Videoclip da canção-tema interpretada por Limahl, com cenas do filme: https://www.youtube.com/watch?v=c7DwWK3xojo
  3. Artigo da Wikipedia sobre as influências na obra de J. K. Rowling, incluindo “Troll”:  http://en.wikipedia.org/wiki/Harry_Potter_influences_and_analogues
  4. Texto de Roberto de Sousa Causo acerca de “Sobre Histórias de Fadas” http://terramagazine.terra.com.br/ficcaoespeculativa/blog/2007/02/02/sobre-historias-de-fadas/