[Conto] O abandono

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Ele acordou bem cedo. No horizonte, o sol ainda não dava sinais de sua existência. Lá fora, a claridade provinha dos postes tortos, que além da única luz, também emanavam o único som da madrugada, um sibilante chiado elétrico. O garoto não o ouvia. Ou melhor, não o percebia. O chiado sempre estivera ali. De tanto ouvir, já o ignorava.

Ele preparou o desjejum às pressas. Pão com margarina regado com uma xícara de café para despertá-lo do gotejante resquício do sono sem sonhos. Comeu e bebeu sem apreciar. Não que ele não gostasse. Ele adorava. Um glorioso dia, já perdido entre memórias mais importantes, ele havia descoberto o prazer do pão, margarina e café. O habito, claro, foi incorporado na rotina. Agora, era só mastigar e engolir.

Olhou o relógio na parede, era quase hora de ir. Os minutos restantes, previamente calculados, serviriam muito bem para que o pão terminasse de ser engolido e para uma rápida higiene bucal. Depois seria só vestir a camisa e os sapatos, pegar o crachá e ir em direção ao ponto de ônibus duas ruas abaixo.

Sentou-se no fundo, como de costume. Assim seria mais fácil simplesmente se levantar e descer do transporte, quando seu ponto chegasse.

Ele olhou as pastas em suas mãos. Checou os papéis. Todos estavam lá. Checou os bolsos. Lá estavam a carteira e as chaves. Checou o hálito. Um suave cheiro de menta. Checou, disfarçadamente, se havia se lembrado de banhar-se na noite anterior. O desodorante, um reforço dado ao acordar, cheirava realmente muito bem.

Relógio no pulso, cabelos penteados, sapato engraxado. Dinheiro da passagem de volta, botões abotoados, braguilha fechada. O que havia sido esquecido? Tudo parecia estar presente e em ordem, mas a sensação persistia, estranhamente. E essa sensação, imagina-se que por hábito – talvez dele, talvez da sensação -, voltava diariamente. Após tudo checado, a insistente percepção era simplesmente ignorada. Seguia-se viagem.

O elevador ainda não era disputado quando o garoto chegou, dez minutos adiantado, como habitualmente. Ele achava, com razão, que se chegasse na hora certa, junto dos demais, teria que disputar o elevador e os corredores com outros funcionários, todos diferentes e caóticos em suas rotinas, que esbarrariam em sua própria rotina, tornando-a também caótica. Entrou no elevador e pouco antes da porta fechar-se automaticamente, outra rotina adentrou. O garoto levantou a cabeça, deu um sorriso de canto-de-boca, acompanhado com uma leve balançar de cabeça. Aquele típico cumprimento usado comumente ao se cruzar com alguém em um local não muito movimentado. É o suficiente para não parecer rude e o necessário para evitar algum contato desnecessário, que afinal, quebraria a rotina.

Após alguns longos minutos em que o garoto fingia interesse em algum artigo aberto no smartphone, a porta abriu-se no andar desejado e ele finalmente pôde se livrar do artigo e do incômodo.

Marcou seu cartão de presença e sentou-se em sua mesa, naquele escritório coletivo cujas placas de algum material leve davam a impressão de que eram escritórios individuais. Diz-se que essas divisórias foram adotadas como forma de evitar gastos com muitas salas e, tendo uma sala coletiva, para evitar o indesejado encontrar de olhares e rotinas.

Ele abriu a pasta, retirando de lá todo o resto de seu dia, juntamente com alguns papéis. Ele era grato por nada ter dado errado. Ele era grato por ter mantido sua rotina sem distúrbios durante todo o trajeto.

À medida que os papéis eram preenchidos, assinados, carimbados e encaminhados, a tarde passou. Agora tudo que precisava fazer era o trajeto contrário. Com igual precisão e igual blindagem em sua rotina.

Se demorou por alguns minutos reorganizando seus papeis, até que o elevador levasse a grande massa de rotinas apressadas, ficando livre para rotinas mais pacientes.

O ônibus ia seguindo o mesmo trajeto da vinda, como que achando o caminho de volta vendo as pegadas que deixou. Um pouco mais cheio, obrigou o garoto a voltar em pé se agarrando com força à barra de suporte e à pasta contendo o restante do dia de amanhã. A viagem em pé era significantemente mais incômoda do que sentado. As rotinas dentro do ônibus se tornavam ligeiramente mais conturbadas com a proximidade.

O garoto olhava fixamente para fora da janela, tentando não agravar as já perturbadas rotinas, quando ironicamente, quase como uma provocação, o ônibus chacoalhou. Ele – que no momento fingia, novamente, interesse em seu smartphone enquanto alguém passava – despreparado para o movimento inusual e repentino do ônibus cambaleou esbarrando em alguém ao seu lado. Alguém que carregava uma pequena garrafa plástica de refrigerante, que com o baque caiu, encontrando-se, comicamente para alguns passageiros, com o sapato do garoto. A bebida espirrou e espalhou-se pela barra da calça e pelo sapato.

– Meu Deus! Me desculpe! – disse a antiga dona da bebida no chão. – Sinto muito, de verdade!

O garoto, atônito, só olhou para tudo com um misto de decepção e culpa. Algo tinha que acontecer antes do fim do dia. Tudo estivera perfeito. Sentia-se culpado por ter esbarrado na rotina rica em glicose da pessoa ao lado, que agora era identificada como garota.

Ele aceitou as desculpas e desculpou-se, sem jeito, esperando que aquilo fosse resolvido rapidamente. Estranhou quando percebeu que a garota olhava fixamente para ele com uma expressão interrogativa.

– Acho que eu conheço você. Tenho certeza que te vi em algum lugar. – disse ela enquanto o encarava, tentando despertar alguma lembrança.

Ele tentou, apressadamente, repetir a decorada expressão que usara hoje no elevador, em uma tentativa de responder sem ser rude e juntar as pontas para dar sequência em sua rotina, do mesmo modo que fizera mais cedo. O refrigerante derramado que escorrera para longe levara um bom bocado de sua paciência junto. A tentativa só agravou a situação.

– Já sei de onde te conheço! Nós trabalhamos juntos. Tenho certeza que te vi hoje no elevador. – Disse a garota aparentemente feliz pela realização de ter se lembrado do, até pouco tempo, estranho. – Eu sou a Evelin. Quem é você? Talvez até já nos conheçamos. – Perguntou ela estendendo a mão livre do apoio do ônibus para um cumprimento.

Era uma simples pergunta. Bastava uma simples resposta. Mas era um simples momento que quebrara mais de um ano de ininterrupta rotina. Não havia paciência sobrando para tal situação. O dia fora cansativo e uma de suas pernas estava suja de refrigerante ao ponto de ouvir o barulho de grude ao dar um passo. E essa garota, culpada por tal perturbação, ainda vinha com perguntas.

“’ Quem é você?’ Só responda rápido e vá embora”, pensava o garoto. “Quem é você?” Ele se chegou a apertar a mão estendida da garota, apesar de com má vontade, mas seu cérebro travou. Talvez pelo estresse dos últimos momentos, talvez por um acaso, tudo que ele soube dizer foi que era o seu ponto de descer.

Desceu do ônibus, mas não seguiu duas ruas acima para casa. Ficou parado na calçada por alguns minutos. A sensação de esquecimento, tida todas as manhãs, tinha voltado, agora em um momento e de um modo diferente. Os postes estavam se acendendo. Anoitecia. E a sensação vinha diferente de todas as vezes anteriores. Agora ele sabia o que tinha esquecido.

– Quem é você? – perguntou para si mesmo, se sentindo totalmente perturbado pelo abandono em que ficara, depois que a rotina o deixou.


 

Daniel Marques Vieira é quase um adulto. Quase um blogueiro. Quase um leitor. Quase um poeta. Quase um escritor. Totalmente apaixonado por todas formas de arte, especialmente as palavras. www.papodecafeteria.com