Por Joe de Lima
Bom, chegou a hora. Ainda bem que nosso aerocarro recebeu autorização para usar a pista VIP, caso contrário, estaríamos presos no trânsito intenso da hora do rush, somado a grande quantidade de veículos daqueles que vieram para se juntar a um lado ou ao outro da multidão e dos que estão apenas curiosos para ver o que irá acontecer.
Pods da polícia nos escoltam para impedir qualquer possível agressão e drones da imprensa voam nos limites do corredor de isolamento, tentando conseguir alguma imagem exclusiva enquanto transmitem o que acontece em tempo real para os usuários da hipernet. As redes sociais não falam de outra coisa, milhões de mensagens são postadas nos fóruns que debatem o assunto. As telas gigantes dos arranha-céus transmitem declarações de líderes e formadores de opinião. No chão, manifestantes demonstram seu apoio ou seu repúdio.
O centro de Nova Sydney está completamente tomado por um mar de gente, enquanto os olhos do mundo se voltam para nós.
Passei muito dos últimos meses fugindo da agitação e me sentindo apreensivo sobre nosso futuro, mas nada disso importa agora. Minha atenção está toda voltada para X-Zero 15. O que se passa lá fora não pode nos alcançar dentro do aerocarro. As janelas estão no modo screen e mostram campos de flores. O isolamento acústico garante que o único som que chegue aos nossos ouvidos seja o do sistema interno de som, tocando uma música de violino que ela escolheu. Não há motorista, o computador do aerocarro nos guia.
— Tudo bem, amor? — pergunto.
Ouço um leve ruído hidráulico quando os dedos dela se fecham suavemente em torno dos meus. Meu olhar acompanha a fina linha escura que sobe pelo braço onde as placas de pele sintética se encontram. A linha se transforma em um círculo ao redor do ombro, passa por baixo da alça do vestido e sobe até o pescoço. Sempre achei essas linhas um tanto sensuais. Quando fazemos amor, costumo brincar passeando por elas com a ponta do dedo, mas agora a apreensão evita que eu me distraia.
X-Zero 15 se aconchega no meu ombro da melhor forma que sua barriga permite. Eu acaricio sua cabeça sem cabelos para confortá-la. Seus sensores epidérmicos transmitem o calor do meu corpo para o cérebro positrônico.
— Estou simultaneamente ansiosa e angustiada, Vinícius. — ela responde. — Restam apenas cinquenta e sete minutos e trinta segundos para nosso bebê nascer.
Uma hora para eu me tornar pai. Quem diria? Lembro daquela noite em que a X-Zero 15 acordou com sua sub-rotina de manutenção dizendo que precisava ingerir alguma coisa que tivesse proteínas e vitaminas. Essa necessidade a deixou com medo de estar com defeito, já que não precisava comer para viver. Nunca vou me esquecer das palavras que ela disse depois de realizar um diagnóstico interno.
— Meus sensores apontam a presença de um corpo estranho dentro do meu organismo cibernético. A análise indica que se trata de uma forma de vida embrionária alojada na parte inferior do meu abdômen.
— O que isso quer dizer? — perguntei.
— Que estou grávida!
Até aquele momento, eu nunca tinha pensado a sério em ser pai. Nem mesmo durante meu primeiro casamento. Também nunca imaginei que poderia ter um filho com uma robô, o que era considerado impossível até então, mesmo para uma unidade de socialização auto-reprogramável como a minha X-Zero 15.
Minha… Assim como sou dela. Nos conhecemos por acaso, ela era uma robô independente morando no Rio de Janeiro, com emprego e tudo, e eu era um analista de cyber-sistemas divorciado e sem filhos. Contam muitas histórias na hipernet, mas a verdade é que nosso relacionamento começou de forma bem comum: interesses mútuos, conversa agradável, atração física…
Sempre me encantei com o charme com que ela fala todo aquele palavreado cibernético, como quando me explicou que analisando o backup de seu gerenciador de tarefas, descobriu que a sub-rotina havia reprogramado suas nanocélulas para se ligarem a um dos meus espermatozóides e ajudá-lo a se desenvolver, fazendo o papel do óvulo feminino. O gel de lubrificação interna fornecia o ambiente.
Sem perder tempo instalamos uma bolha incubadora dentro do ventre dela, semelhante as que são usadas pelas robôs que trabalham como barrigas de aluguel. No mesmo dia, alguém da clínica comentou em uma rede social que tinha atendido a uma robô realmente grávida. A partir daí, nossas vidas viraram de cabeça para baixo.
— O bebê está chutando! — ouço ela dizer ao meu lado no banco do aerocarro.
Coloco a mão sobre a barriga e posso sentir a vibração. As placas abdominais foram trocadas várias vezes por outras maiores, cobertas com uma camada de gel por dentro, para que a gestação pudesse ocorrer sem maiores problemas.
— Ele está com pressa de nascer! — brinco.
— Ele?
— Ou ela!
O aerocarro chega ao alto da torre onde funciona a maternidade. Parte do teto se abre e descemos devagar pelo eixo central. Avançamos por um corredor e pousamos dentro das instalações.
— Como está a futura mamãe? — nossa obstetra, a doutora Clara já está a nossa espera, acompanhada de uma enfermeira-robô e de um ajudante humano.
— Acredito estar bem. — responde X-Zero 15. — Minha temperatura interna é de 309 graus kelvin. Meus sistemas estão operando em 94,6 por cento da capacidade e qualquer valor acima de noventa é considerado normal.
A doutora ri. Deve ser muito prático ter uma paciente capaz de realizar seu próprio diagnóstico com tanta precisão.
Passamos por um saguão com muitos pacientes à espera de atendimento que se voltam para nós no momento em que entramos. É inútil fingir, todos sabem quem somos. Nossos rostos estão nos noticiários da hipernet, em redes sociais e na TV. A maioria dos pacientes mantém a discrição, outros nos observam com curiosidade e alguns nos encaram como se estivessem prontos para briga.
Nada com o quê não tenhamos lidado nesses nove meses. Alguns, especialmente os religiosos, pareciam realmente incomodados com a ideia de uma robô dar a luz a um filho de forma natural. Quando a notícia se espalhou, os repórteres não pararam de ligar e drones paparazzi começaram a voar em torno de nossa casa.
A única coisa boa que veio do circo da mídia foi nosso caso ter chamado a atenção de uma das obstetras mais respeitadas do Brasil, a doutora Clara. Ela se dispôs a acompanhar a gestação da X-Zero 15 sem nunca cobrar um centavo. A ela se juntou o professor Carlos Takai, um renomado especialista em engenharia robótica. Todas as consultas passaram a ser com os dois presentes.
No quarto mês, eles fizeram a descoberta que abalou de vez a opinião pública. Foi no dia que analisaram o sangue do bebê. Normalmente os resultados dos exames saiam em minutos, mas daquela vez a doutora e o professor ficaram horas conversando à portas fechadas. Naturalmente, essa demora deixou X-Zero 15 e eu preocupados, temendo que algo ruim pudesse ter acontecido a nossa criança.
— O que temos aqui vai além das nossas expectativas. — disse a doutora naquele dia. — As nanocélulas de X-Zero 15 se fundiram ao DNA do bebê e ajudaram a completar o código genético. O corpo dele será tanto biológico quanto cibernético.
Perguntei se nosso filho seria como uma pessoa com próteses biônicas.
— Muito mais do que isso! — ela respondeu. — Ele vai ser humano e robô ao mesmo tempo. Um hibrido! A primeira criança de uma nova espécie, um… homo ciberneticus!
Homo ciberneticus. Deus, como odeio essas palavras! Odeio, mesmo tendo sido ditas pela nossa querida doutora.
Elas passaram a nos perseguir em toda parte. Se a ideia de uma robô grávida já causava comoção, o que pensariam de um bebê homem/máquina? Procuramos ser discretos no início, mas eventualmente o mundo inteiro ficou sabendo.
Começaram debates intensos sobre o tema. Uma robô poderia ser considerada mãe biológica? O bebê seguiria uma programação ou teria livre arbítrio? Seria considerado um ser humano ou uma máquina aos olhos da lei? O homo ciberneticus poderia gerar descendentes iguais a ele?
A discussão dividiu a opinião pública e a comunidade cientifica. Organizações humanitárias se manifestaram a favor e contra nosso bebê ser considerado um ser humano. ONGs pelos direitos dos robôs alegaram não considerar essa criança como um deles, enquanto outras declararam seu total apoio.
Algumas entidades religiosas disseram que toda forma vida era criada por Deus, qualquer que fosse a sua natureza e portanto, mesmo uma criança híbrida tinha direito a vida. Já outras foram mais agressivas, alegando que nosso bebê era uma afronta às leis divinas. Um certo político religioso foi especialmente ofensivo, fazendo discursos absurdos! Disse coisas horríveis e declarou que a lei deveria nos obrigar a interromper a gravidez imediatamente. E quando questionado, esse sujeito — cujo nome me recuso a pronunciar — respondeu só estar “protegendo a integridade da família”.
Não consigo compreender porque há pessoas que se sentem tão ofendidas com a maneira como outros decidem viver suas vidas. Fico imaginando se X-Zero 15 foi realmente a primeira robô a engravidar, ou apenas a primeira que teve a coragem de assumir a gravidez. Nos últimos meses, outras quatro robôs alegaram também estarem esperando bebês híbridos mundo afora. Os casos de Seattle e Manchester eram fraudes e o caso de Tóquio ainda espera confirmação, mas o de Joanesburgo se mostrou verdadeiro. Quantos casos mais existem escondidos por aí? Quantas crianças híbridas vivem nas sombras com medo da intolerância humana?
No quinto mês de gravidez, X-Zero 15 e eu não suportávamos mais todo aquele alvoroço e decidimos nos mudar. Deixamos o Rio e cruzamos o oceano rumo a Lisboa, onde uma ONG nos abrigou durante um mês, depois nos mudamos para Nova Sydney onde poderíamos ficar razoavelmente em paz até o fim da gestação. Sou muito grato à doutora Clara a ao professor Takai que durante todo esse tempo fizeram questão de nos atender pessoalmente, mesmo encarando algumas boas horas de voo a bordo de um Boeing semi-orbital.
Foram nove meses difíceis, de medo, apreensão e lágrimas, mas também aproveitamos as alegrias dessa fase, chegando, enfim, ao dia mais importante de nossas vidas.
Guiados pela doutora, seguimos para a sala de parto preparada especialmente para esse dia. O professor Takai está a postos com seus ajudantes em meio a uma dúzia de telas flutuando no ar.
— Prontos para fazer História, meus amigos? — diz ele.
— A História é secundária em minha lista de prioridades, professor. — responde X-Zero 15. — Minhas atenções estão voltadas para nosso filho.
— Ah, assim é que se fala! Tenho certeza de que você vai ser uma ótima, mãe. Sabem o que vão fazer depois?
Respondo que vamos nos mudar de novo assim que X-Zero 15 e o bebê tiverem alta.
— Há uma comunidade fechada em Toronto onde vivem famílias mistas. — digo a ele. — Já conseguimos uma casa lá.
— A associação dos moradores nos deu garantias de que nosso bebê poderá crescer em uma atmosfera tranquila e protegida. — acrescenta X-Zero 15.
Eu a acompanho até uma sala menor para os últimos preparativos. Depois a doutora e a enfermeira-robô saem para nos dar um momento a sós antes do parto.
— Bom, chegou a hora! — digo.
Abraço X-Zero 15 e ela se aninha em meu peito. Só quem nunca amou, nem foi amado por um robô pode acreditar que eles não têm emoções.
— Sinto-me muito feliz. — ela fala. — Minhas forças não seriam suficientes para suportar tudo o que aconteceu se você não estivesse ao meu lado durante o processo, Vinícius!
— E eu não teria um filho com ninguém mais!
Trocamos juras de amor e nos beijamos.
De volta a sala de parto, X-Zero 15 é deitada na maca. Ela poderia desligar seus sensores sinápticos e passar pelo processo de forma indolor, mas decidiu deixá-los ligados para sentir as dores do parto. Seguro a mão dela e a incentivo. Mais monitores surgem no ar. As placas abdominais são abertas, a bolha incubadora se rompe sozinha indicando que o bebê está pronto para nascer.
A doutora Clara e o professor Takai desconectam todos os cabos e ajudam o bebê a sair da bolha. Ele estava vindo, ou ela! Olho para a X-Zero 15 que é só felicidade. Ela não pode chorar, então o faço por nós dois.
Ouvimos um choro agudo levemente metalizado.
Nosso bebê acaba de nascer…
Joe de Lima é escritor amador e possui um blog pessoal: Baú do Joe.