Este post não é direcionado a pessoas que não saibam ler. Na verdade, a ideia para escrever esta matéria surgiu quando, ouvindo pessoas falarem dos benefícios da leitura, percebi que todos chegavam aos mesmos lugares-comuns. Questionado sobre quais as vantagens que a leitura traz para a vida de uma pessoa é comum recebermos como resposta a lista:
1. “Você ganha mais vocabulário”;
2. “A leitura deixa você mais criativo(a)”;
3. “Você passa a escrever melhor”.
Mas seria só isso mesmo? Ler exige muito mais; daí a razão do post, fornecer suporte para leitores que precisam defender o hábito da leitura respondendo a fatídica pergunta: afinal, o que é ler?
Todos sabemos que ler não é uma atividade de decodificação. Quem lê não está necessariamente identificando vogais, consoantes, sílabas… A leitura é uma atividade de interação. O leitor usufrui de várias estratégias e utiliza muitos recursos para compreender o que está lendo. Parece difícil? Pois é mesmo, porém quanto mais lemos mais fácil fica executar uma série de tarefas que com o passar do tempo se tornaram intuitivas e nos tornaram mais eficientes para, por exemplo, reconhecer que tipo de texto estamos lendo.
Aviso que muito do que será dito lhes parecerá óbvio, porém não há demérito nisto. O que parecerá óbvio para alguns mostrará apenas que os benefícios da leitura são perceptíveis a todos, mesmo aqueles que não possuem conhecimento acadêmico ou sejam estudiosos dos aspectos linguísticos da leitura.
1. Conhecimento gramatical
Você já parou para perceber que é capaz de compreender tudo aquilo que lê? Meio óbvio, né? Contudo, a obviedade fica por conta de uma capacidade do leitor de assimilar o conteúdo gramatical presente no texto, ou seja, se você está lendo este post, compreende as regras gramaticais da nossa língua portuguesa. “Mas, Lucien, como posso saber regras de gramática, se sempre fui um(a) péssimo(a) aluno(a) nas aulas de português”, você pergunta fidelíssimo, leitor.
Acha mesmo que não sabe nada de gramática? Se isto fosse verdade, se as notas do seu boletim representassem sua incapacidade de leitura poucos de nós leriam, certo? Nas aulas de português o professor exige a nomenclatura dos termos, a questão aqui é outra. Todo o leitor reconhece o uso (não a classificação) dos termos mais elementares de sua língua nativa. Duvida? Vamos a um exemplo prático.
Você pode não saber a que classes gramaticais o mais e o mas pertencem, entretanto compreendeu bem que o segundo mas, foi utilizando em um contexto oposto ao primeiro mais. É perceptível que o segundo mas indica um sentido de oposição, quando o personagem diz “mas é claro que não“, ele está se opondo ao sentido construído no primeiro enunciado “… que existem coisas mais divertidas“. Se esta explanação nem passou pela sua cabeça, mas se percebeu o que a tirinha quis dizer, então você sabe sim as regras da gramática da sua língua, mesmo não sabendo explicá-las.
2. Conhecimento enciclopédico ou conhecimento de mundo
Não importa a sua idade, toda a sua experiência de vida é exigida na hora da leitura. Quem lê exercita a memória. Mas até que ponto? Que exercícios precisamos realizar para assimilar tudo o que é dito. Os estudiosos do texto reconhecem que nem tudo está dito no dito, em outras palavras, o autor de um texto não diz exatamente tudo. Usa-se, a caráter de ilustração, a metáfora do iceberg, enquanto vemos uma formação de gelo sob a água, muitas vezes nem imaginamos o quanto de gelo está submerso. O mesmo se aplica aos textos, o que esta escrito através das palavras, ou seja, a parte emersa do gelo, não é todo o texto. Existe muito mais ‘embaixo’, do que está dito. Em uma texto, grande parte do seu sentido está implícito.
Já imaginou como seria um livro, onde o autor precisa explicar tudo? Cada palavra, cada vírgula? Por que isto não ocorre? Por que o autor conta com a capacidade do leitor de completar a informação que falta. Isto se chama inferência. Muito se fala do excesso de descrições presentes na obra do J. R. R. Tolkien, mesmo assim, o escritor de O Senhor dos Anéis não descreve tudo. Durante a minha leitura de Anjos da Morte do Eduardo Spohr, ele diz que Denyel tem cabelos pretos. Spohr não necessita parar a leitura para definir o que venha a ser a cor preto, pois eu sei que cor é preto. O mesmo ocorrerá na leitura dos livros do Tolkien, por mais detalhista que ele fosse, existem palavras que o próprio leitor inferi o sentido para prosseguir na leitura. O Tolkien não precisa definir o que é uma montanha para que o leitor possa visualizá-la.
Vamos a mais um exemplo?
Onde você ouviu a frase: “Com grandes poderes, vem grandes responsabilidades”?, dita por Tio Ben ao jovem Peter Parker, nas páginas das HQ’s do Homem-Aranha, a frase ficou eternizada na memória dos leitores. Para completar o sentido da tirinha é preciso resgatar o peso que esta frase tem para Parker, nos quadrinhos, apesar de não saber que seu jovem sobrinho possuía os poderes do Aranha, o sábio tio o alertou, que ter aquela capacidade exigia dele uma responsabilidade maior do que quando ele não as possuía. Agora vem a pergunta: por que o artista de Um Sábado Qualquer a utilizou? Sabendo que Cristo, é o filho de Deus e segundo a Bíblia transformou água em vinho, seu Pai, Deus, lembra-lhe de que seus poderes trazem responsabilidades como fazer um bom vinho.
O mais importante é você perceber que toda esta explicação, todo este blá, blá, blá fica no subentendido. Você, leitor, faz todas estas associações de forma tão mundana que pouco fica evidente, para aqueles que dizem que ler é bobagem, ou julgam que quem lê está perdendo tempo está ai uma boa prova do contrário. E o mesmo podemos dizer do autor da tira, que ao usar a frase do universo das HQ’s, esperou que o leitor fizesse a ponte necessária para entender a piada.
3. Conhecimento de gênero
Julgar um livro pelo título ou pela capa é um bom exemplo de como conhecemos os gêneros textuais. Quem começa a ler O Massacre da Serra-elétrica não espera encontrar romances e momentos de conflitos amorosos. Novamente indago: parece óbvio? Contudo o que seria do leitor sem esta capacidade? Se para ler uma bula de remédio alguém precisasse avisar que se trata de uma bula de remédio? Essa capacidade de reconhecer os gêneros nos ajuda na hora da leitura, por que para ler precisamos identificar o que é “real”, daquilo que não é.
Existem autores que são inteiramente impregnados pelos gênero que escreveram. Asimov lembra ficção científica; Tolkien lembra fantasia; Stephen King lembra terror. Essa seleção é necessária não apenas para nos ajudar a saber o que leremos como também, no próprio cotidiano, para nos auxiliar a decifrar um outdoor ou panfleto. Quem pega no meio da rua um papel dizendo “Você precisa de dinheiro?”, sabe perfeitamente que o gênero panfletário quer fisgar o leitor gerando uma identificação instantânea entre o serviço oferecido e a necessidade à quem a mensagem é direcionada. O você, no caso, não é obviamente direcionada a todas as pessoas que pagarem aquele papel; a pessoa que pega um panfleto não recebeu uma ordem, uma intimação e dotada deste conhecimento pode descartar a mensagem expressa ou se sentir motivado a recorrer aquele serviço.
“Poxa, Lucien, mas tá na cara, né?!” Não use o discurso da obviedade como ofensivo. A capacidade de reconhecer os gêneros e interpretar sua função é algo que cada leitor assimila das formas mais diversas. Quanto mais se lê, mas compreendemos o direcionamento da mensagem. O consumismo que usa o gênero propaganda como uma de suas ferramentas faz com que muitos brasileiros acabem se endividando. Agora eu lhe devolvo a pergunta: “não é óbvio que quando o gênero propaganda diz ‘compre’, significa dizer você pode comprar ou não? Que não implica uma necessidade imediata? Então por que tantos acabam cedendo?” Sei que estou minimizando o fenômeno da sociedade de consumo, entretanto permanecendo no campo da linguagem, da leitura, não seria uma leitura correta do gênero em questão que a mensagem ali explícita pode ser desobedecida sem prejuízo ao leitor? Identificar o gênero de um texto é fazer toda uma leitura não apenas do que está na superfície, no caso do ‘compre’ ou ‘adquira’, mas perceber que numa sociedade de consumo, onde empresas divulgam suas marcas com fins a estimular o consumidor a comprar precisando ele ou não daquele produto, seria ler além do que está explícito, ir além da ponta do iceberg.
Considerações finais…
A questão apresentada neste post parte do princípio que o leitor sabe que o hábito da leitura lhe traz benefícios, contudo por não serem visíveis quem lê muitas vez não consegue expor com clareza no que a leitura lhe favorece. Aos olhos de quem não lê, o leitor está sempre ‘desocupado’ e como ‘não tem nada para fazer’ desperdiça minutos preciosos do seu dia lendo, em resumo, fica horas sentado perdendo tempo. Malhar em uma academia, comprar algum produto traz resultados muito mais vistosos, diferente, logo, do que acontece com a leitura, já que as mudanças acontecem internamente e, como já dissemos, quem mais lucra nem se dar conta disto.
Quem lê se torna uma pessoa melhor por que está exercitando partes do cérebro que não-leitores deixarão adormecidas. A leitura é benévola, mas de maneira silenciosa. No cotidiano, as mudanças se refletem em aspectos que pouco são valorizados em nossa sociedade como a capacidade de articular ideias, a questão é que em tempos de redes sociais onde vigora a lei do quem grita mais alto, infelizmente quem argumenta com propriedade, escolhe as palavras certas na hora de se expressar (seleção vocabular) muitas vezes é sobrepujado numa maré de mediocridade. Mesmo assim, acredito piamente que quanto mais leitores, melhor nosso dia a dia será. Por isso, se você lê, e desconhecia os impactos positivos deste ato em sua vida, espero que este humilde texto tenha servido com uma introdução a pergunta que dá título a este post.