[Conto] Lendas do Dragão do Céu: A Queda da Ampulheta – Parte 4

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Capítulo 4: Sobrevivência dos mais adaptados

Dune di Wan CazaPor Gabriel Mendes

Esticou o braço, que emergiu das areias. Cavou um buraco de dentro para fora de seu sepulcro desértico. Era assim que tratavam pessoas como ele naquela terra. Os cabelos começaram a sair do chão, seguidos pela cabeça – que veio um minuto depois – e então respirou de novo. Ah! Como era bom o ar e como eram horríveis os grãos de areia invadindo e ressecando seu nariz. Com a boca acima da areia, começou a cavar em volta de si e impulsionar o corpo para cima. Que sede! Precisava de água, de comida, de sangue. Um forte calor o torrava ao sol. Maldito fosse o astro! Acabaria por matá-lo nas próximas horas caso não encontrasse um abrigo. Arrastou-se de quatro para fora do buraco, libertando (finalmente!) as pernas. Seu corpo estava completamente envolvido por uma “crosta” de areia. Olhou para frente pela primeira vez naquele dia. Viu algo reluzindo à luz do deserto: sua espada. Enterrada até a metade, a lâmina de um gume e uma serra, feita de mytryl, esperava seu mestre. O cabo de Ang, revestido com couro, agora estava exposto em alguns pontos. “Quantos milhares de anos esta espada durou? Quantos mais ainda durará? Estarei com ela em seu fim? Ou a levarei ao túmulo comigo?” Esses eram seus pensamentos enquanto se arrastava até a espada. Col Rhyper como era chamada em Angband, famosa em todo o mundo durante o final da Segunda Era. Soul Reaper como era chamada pelos humanos das Ilhas do Norte. Melhor tradução impossível, apesar de o nome não lhe ser tão adequado. Sua mão envolveu o cabo, que tinha 20 cm de comprimento. Usou a espada como apoio para se levantar, ajoelhando-se primeiro – A lâmina afundava ainda mais na areia enquanto o fazia. Ficou de pé. Levou a mão direita ao cabo mais uma vez. Tocou a espada. O poder fluía em suas veias mais uma vez. Maldito fosse o Sol! O astro tornava a espada e ele mais fracos. Arrancou a espada da areia como os Bretões alegam que Arthur fez com Excalibur na pedra. Mas Excalibur não era páreo para a Col Rhyper. Podia cortar o que fosse, seria presa e destruída pela serra de Soul Reaper, pois ambas eram de mytryl. Encarou o horizonte. Girou uma volta completa. Areia. Areia! E mais areia! Essa era sua visão. E então um mantra ecoou em sua mente. Uma Lenda que salvara a outros tantos e que agora o salvaria. “À aurora, siga sua sombra, e ao crepúsculo, deixe-a lhe seguir”. Oeste era a salvação. Não para ele. Fez exatamente o contrário do mantra, pois era o contrário exato de quem o criara. E ele tinha algo a fazer, uma missão a cumprir que se tornara pessoal.

A Sombra de Mordhoth buscava vingança. E deixaria um rastro de Angband por onde passasse: um rastro de sangue, medo e Trevas.

E então veio a razão. O Sol já estava se pondo. Havia passado uma noite enterrado, sabia disso. Sentira o poder aumentar após o pôr do Sol, mas a areia dificultava muito seus movimentos e gastar energia à toa com magia poderia ser muito perigoso. Sua espada, que costumava usar de condutor, não estava com ele naquele momento. Além disso, estava fraco demais. A exposição ao Sol nas horas do dia anterior, mesmo com a proteção de quilos de roupas grossas, o enfraquecera. E precisava desesperadamente de água. Mesmo que não fosse do Rio Negro, pois qualquer água serviria. Tamanha era sua fraqueza que mesmo a noite não lhe trouxe as forças esperadas quando chegou, enquanto ele caminhava para Leste. Chegou a um vale, uma depressão circular, que o protegia dos ventos frios da noite do Deserto. Absurdo! Era aquele vento que ele queria, apesar de ele só o desidratar ainda mais. Que tristeza! Morrer abandonado no Deserto dos Desertos após tantas glórias vividas em vida e pós-vida. Então ouviu.

O som era rítmico, areia sendo esmagada e movida. Não era uma cobra, pois, mesmo sendo quase constante, havia intervalos entre ouvir e não ouvir o som. Um leão do deserto ou qualquer outro predador desse gênero não andaria rápido o suficiente para fazer esse som que tinha a frequência de um coração batendo aceleradíssimo. Olhou em volta, para o alto. Contou seis leões do Deserto – predadores de três metros de comprimento e com proporções felinas – dando voltas e mais voltas conforme desciam, cercando-o no vale. “E agora isso!” – pensou. Mais um combate desnecessário para exaurir suas forças de vez. Os leões tinham vantagem, pois um salto letal poderia vir de qualquer direção (provavelmente de suas costas) e rápido demais para ser impedido. Resolveu confiar nos instintos. Há quantos dias não matava? Um, dois, três, quatro? Três ou quatro. Não importava. Iria deixar essa vontade o dominar, pois sua sobrevivência estava em jogo. E veio um som diferente, de algo às suas costas.

O pobre leão mal pôde desviar quando viu, a uma velocidade impossível, uma lâmina surgindo; pálida e reluzente. Era Lua Nova, o brilho vinha da própria espada e não da reflexão da luz do luar. Era Lua Nova, não era para ter acontecido. Mas aconteceu. E o leão caiu cortado em dois ao redor do espadachim vestido de negro, com muitas roupas e uma capa cobrindo todo o seu corpo; e um capuz escondendo o rosto. Os outros leões se afastaram um pouco, calculando se valia a pena tentar aquela presa. Parecia muito mais perigosa do que eles agora. Começaram a se afastar, rumando para o topo do vale circular, mas foram impedidos. Um muro de chamas negras surgiu, cercando o vale completamente e prendendo os leões e sua presa. A caça se tornara o caçador. Um caçador de olhos amarelos.

Apagou o fogo negro. Teria muito trabalho pela frente, mas valeria a pena. Com sua faca ele fez uma magia. Uma magia de fogo. Teve muito trabalho abrindo o primeiro leão, o que pulara em cima dele. Ao menos achou carne boa. Não tinha muita gordura, mas era carne. Usou a faca flamejante para assá-la, carne crua era pior que carne assada. Não tinha muitos escrúpulos, mas preferia grãos. Além disso, a necessidade falava mais alto, como sempre. Maldito deserto! Maldito Sol! Se não fosse por ele, não precisaria comer. Principalmente aqueles leões. Ao menos pôde matar sua sede de sangue e sua sede com os leões e o sangue deles, antes que esse vazasse pela areia e se perdesse. Não tinha lenha, pois nada crescia no Deserto, muito menos no Deserto dos Desertos. Exceto perto de oásis. “Oásis”. Não havia animais no Deserto, principalmente no Deserto dos Desertos, exceto em locais próximos a fontes de água. “Oásis”. Havia um oásis perto. Água. Provavelmente com doenças e um gosto horrível, mas água. E seria necessária para ter uma sobrevida de ao menos uma semana naquele deserto. O Deserto dos Desertos.

Onde guardar esses suprimentos? A carne era o único. E na falta de como levar, não levaria. Seria mais fácil comer o máximo possível – mesmo com o gosto horrível daqueles leões magros –, pois ao menos a comida era a última coisa que precisaria para sobreviver. E antes do fim da noite levantou-se, ajeitou a espada nas roupas para que ela não cortasse nenhuma e começou a caminhar para Leste. E caminhando para Leste achou uma caverna. Era funda, poderia lhe proporcionar abrigo do Sol, que estava nascendo. Entrando lá sorrateiro, sem fazer barulho algum, ele se protegeu do Sol e encontrou um ninho. Um grande leão tomava conta de seis filhotes, que brincavam na escuridão com os ossos das presas. Os ossos dele deveriam estar lá, mas não estavam. A Natureza é cruel e ele era mais cruel ainda. O leão rugia alto. Se houvesse na caverna estalactites, teriam caído. Mas não havia estalactite alguma, pois todas caiam antes de crescer. E ele respondeu ao rugido do leão. Mostrou à fera o poder das Trevas, o escuro supremo, a Escuridão palpável; e sua voz soou como a morte. Não era alta, como o rugido do Vento; não era densa, como o rugido da Terra; não era traiçoeira, como o rugido da Água; não era ameaçadora, como o rugido do Fogo; não era poderosa, como o rugido da Energia (mais conhecido como Trovão); não era maravilhosa, como o rugido da Luz. Era o rugido das Trevas, o aterrorizante sibilo de pânico.

As criaturas da caverna fugiriam amedrontadas se soubessem aonde estavam indo ou sequer pudessem se mover. Quando o terror passou, num tempo que pareceu uma eternidade, os animais encaravam-no, paralisados. Ele encarou o leão com seus olhos sugadores de alma. A fera chamou seus filhotes, mas parou diante de uma lâmina. O espadachim estava muito tentado a matá-lo, mas teve uma ideia melhor. Nada sairia da caverna até ele dizer. Os leões lhe levariam à água. Ele montou guarda próximo à entrada da caverna. Longe do Sol, mas perto o suficiente para saber quando era noite. E ela veio doce.

Ele deixou as feras saírem. Sedentos como estavam, os leões fingiram ignorá-lo, pois ele sabia lidar com felinos. Sabia como mantê-los sempre à vista e como impedi-los de fugir. E eles lhe levaram à sua mina de ouro. Um grande lago de onde a água brotava. Seria uma nascente de rio se o solo não fosse tão arenoso em volta e se não houvesse tantos buracos no chão para segurar a água. Era um oásis pantanoso com um lago principal no centro e vários em volta. Mato e poucas árvores cresciam no lugar, que era cercado por areia. Devia ter a área de dezenas de acres, mas estava crescendo.

Era assim que a Natureza funcionava. A água que surgia lá, se durasse, criaria raízes profundas. Umedeceria a terra, impedindo que a areia a sugasse. E então o lago surgiria uniforme e colosso. A água continuaria com o passar dos milênios, inundando uma área cada vez maior, até que um filete escorresse. E esse filete cresceria com as dezenas de milênios, formando um gracioso leito de rio que seguiria seu caminho para o mar. Ou outro lago, ou para debaixo da terra. Se a água persistisse.

Assim que chegou, espantou os leões. Mas antes, ficara abismado com a quantidade de água. Com as feras longe, bebeu e se esbaldou na água. Na hora de urinar, correu até longe e se aliviou. O Sol nascia outra vez. Mas isso não seria um problema. Havia a sombra das árvores mais altas e alguns arbustos grandes para se esconder. Era a sobrevivência dos mais adaptados. E as Trevas se adaptam até na mais forte das Luzes.

E Ley era a personificação das Trevas.

Continua…