Capítulo 3: Justiça dos vencedores
Por Gabriel Mendes
A porta foi aberta. Lily levantou a cabeça e fitou Farid entrar, seguido por guardas que traziam dois prisioneiros consigo. Ela reconheceu Guilherme e Wanda enquanto os dois eram presos com correntes às paredes da masmorra.
– Pronto. – Disse Farid ao ver todos presos a sua frente. E então, abrindo um sorriso, começou a falar:
– Finalmente tenho vocês. Vocês fazem ideia do mal que causaram? – Ele gritava e vociferava para os prisioneiros, mostrando total desprezo. Lily retribuía o sentimento, enquanto os outros apenas demonstravam raiva – Você faz ideia da tristeza que minha sobrinha está sofrendo por sua causa? – Ele apontava para Guilherme.
– Eu não tive culpa! Estava fora de mim… – O Ranger respondia quando foi interrompido pelo capitão da guarda.
– Mentira! Você matou e feriu dezenas de pessoas. Entre eles muitos de meus melhores homens. Enquanto ela, por exemplo,… – Ele apontou para Wanda –… Apenas os fez dormir. Nenhum deles se machucou pelas mãos dela, então a pena dela será diferente da sua.
– Como assim pena? – Perguntou Gustaff.
– Vocês serão punidos pelos seus crimes nesta cidade.
– Eu não cometi crime nenhum! – Retrucou Lily – Nem Gustaff, nem Jed. Liberte-nos seu fraco maldito. Covarde! – Ela sacudia as correntes enquanto falava com Farid.
– Injúrias não conseguirão sua liberdade, mulher. – Ele esbanjou desprezo ao pronunciar a última palavra. Ao menos ele falava Língua Geral de uma forma compreensível – Vocês todos mentiram para a guarda da cidade, causaram o caos e aterrorizaram os moradores e ainda acham que sairão impunes? – Farid riu.
– O que você vai fazer com a gente? – Perguntou Jed assustado.
– Vocês saberão amanhã ao meio dia. – Respondeu Farid – Passar bem.
Ele saiu junto com seus guardas e o grupo ficou sozinho durante algumas horas. Guilherme quebrou o silêncio que seguiu a saída de Farid em poucos minutos.
– Como vocês vieram parar aqui? – Perguntou Guilherme.
– Eu conto. – Disse Lily, interrompendo Gustaff, que já abria a boca – Nós ficamos algum tempo desacordados depois da surra que você nos deu. Acordamos durante a noite em um hospital da cidade, onde fomos muito bem tratados pelos médicos. Pela manhã, alguns guardas nos prenderam e trouxeram para cá, onde ficamos desde então. Ninguém se feriu gravemente, apesar da surra bem dada.
Guilherme se sentiu mal após a explicação de Lily, se sentiu culpado por ter se deixado corromper.
– Onde está Ley? – Perguntou Gustaff, de repente – Eu esperava que ele fosse trazido junto com vocês.
– Segundo Farid, está morto e enterrado. – Respondeu Guilherme num tom pesaroso – Wanda e eu tentamos fugir, mas fomos rendidos por Farid e seus guardas. Wanda quase desmaiou devido ao esforço de fazer muitas magias.
Isso explicou as duas perguntas que o Ranger antecipara: Como foram parar ali e o que aconteceu com Wanda, que estava desacordada.
– Que pena. – Disse Gustaff após passar um minuto se lamentando – Eu esperava que ele estivesse aqui. – O mago sorriu.
O clima entre Gustaff e Ley era sempre tenso, pois o único que poderia derrotar Ley, no grupo, era Gustaff e o único que poderia derrotar Gustaff, no grupo, era Ley. Um estava sempre provocando o outro e brigando enquanto não se provocavam, mas concordaram com uma trégua quando Guilherme e Wanda começaram a brigar.
– Será que Farid falou a verdade sobre Ley? – Perguntou Lily.
– Duvido. – Respondeu Guilherme – Aquele homem não é confiável.
O silêncio se instaurou nos minutos seguintes, sendo interrompido quando alguns guardas trouxeram o jantar dos prisioneiros. As correntes deixavam todos com mobilidade o suficiente para movimentar os braços e comer sozinhos. A noite não lhes proporcionou um sono agradável, pois o lugar onde estavam presos – apesar de algumas longas e estreitas janelas gradeadas proporcionarem um frio agradável – era fedorento e o chão e as paredes eram duras. O chão era coberto de feno, como num estábulo, e as paredes eram feitas de pedregulhos, que ficavam muito frios durante a noite (mas Guilherme e Wanda não tiveram problemas com isso). A masmorra onde estavam ficava no porão do posto de Farid, que era ao lado do portão principal da cidade. E veio o dia seguinte. Eles receberam o café da manhã às sete horas: uma pasta estranha com um gosto horrível. Ao meio dia, Farid entrou na sala.
– Muito bem! – Disse ele, batendo as palmas das mãos – Espero que tenham gostado da estadia.
– Poupe-nos de sua ironia sádica. – Disse Wanda, cuspindo nos pés dele. Farid fez cara de nojo.
– Mais educação. – Pediu Farid – Ou eu vou lhe dar um castigo justo.
– Encoste um dedo nela e eu esmago essa sua cabeça oca. – Ameaçou Guilherme. Farid o fuzilou com o olhar.
– Eu não me lembro de ter lhes dito qual seria sua pena… – Continuou Farid. Ninguém o respondeu e ele continuou – Como vocês são prisioneiros condenados, são propriedade do Estado. E como ninguém pagou a fiança de vocês, serão leiloados como escravos.
– Isso é um absurdo! – Gritou Lily, sacudindo as correntes que prendiam seus pulsos – Você não pode fazer isso. Não cometemos nenhum crime.
– Se não tivessem cometido nenhum crime, não teriam sido condenados. – Retrucou Farid – Voltarei em uma hora para buscar vocês e levá-los à praça onde serão vendidos.
– Seu maldito! – Gritou Lily enquanto ele saia.
A porta não fechou quando Farid saiu, pois os carcereiros entraram com o almoço, mais uma gororoba horrível. Os carcereiros saíram logo após, deixando os prisioneiros sozinhos.
– Precisamos fugir e rápido. – Disse Wanda após a saída dos guardas.
– Como vamos fugir? – Perguntou Jed.
– Improvisando. – Respondeu Guilherme – Como sempre fazemos.
– Mas é bom lembrar que você vai improvisar contra dezenas de guardas armados com espadas e lanças. – Disse Gustaff.
– É mais fácil do que improvisar contra um mago que tem um anel de poder e está tentando nos matar. – Retrucou Guilherme, lembrando a Gustaff do incidente com o anel de poder.
– Mas desta vez não teremos Ley para nos ajudar. – Retrucou Gustaff.
– Mas temos você. – Retrucou Wanda, sorrindo.
Eles engoliram o que conseguiram da refeição intragável e planejaram fracamente o início da fuga. Sete guardas entraram na sala, que tinha bastante espaço, com espadas embainhadas e começaram a libertar os prisioneiros. Cada um iria libertar seu prisioneiro e algemá-lo, depois os prenderiam a uma corda e os levariam até a praça. Mas eles não contavam com a reação do grupo.
Assim que cada um foi liberto das algemas, arrumou sua forma de neutralizar seu guarda.
Guilherme, que tinha dois para dar conta, usou sua força bruta para nocautear os dois. Um deles havia se posicionado atrás do Ranger e o advertiu a não reagir. Uma ordem que foi muito bem desobedecida, pois Guilherme cabeceou o guarda a sua frente e depois girou com os braços levantados, acertando o segundo com uma cotovelada. Esse precisou de um soco a mais para apagar completamente. O primeiro sofreu traumatismo craniano e entrou em coma na hora.
Jed, que vinha em seguida, segurou seu guarda pelos braços, cabeceou-o, posicionou-se atrás dele e bateu a cabeça dele contra a parede com força. Ao ver que ele havia apagado, pegou sua espada.
Gustaff sabia lutar desarmado por sua convivência com uma elfa durante a infância, mas preferiu enfeitiçar o guarda com uma magia de ilusão. Sob o comando de Gustaff, as palavras “Fique olhando para a parede. Não há nada mais interessante aqui”, o guarda ficou parado, com o olhar vidrado, encarando os pedregulhos a sua frente.
Lily não foi muito gentil. Chutou o saco do guarda, socou sua mandíbula, montou atrás dele e quebrou seu pescoço.
E Wanda, que era a única que não sabia lutar, não tinha seu violão. Aproveitou a confusão causada pelos outros para sacar a adaga que trouxera escondida e cortar a garganta do guarda – que tinha tentado socorrer o amigo – por trás, antes que ele decapitasse Lily.
– De onde você tirou isso? – Perguntou Lily ao ver a arma de Wanda.
– Eu trouxe escondida, mas não tive oportunidade para usar antes. – Respondeu ela.
Todos se armaram, exceto Wanda, que já estava armada; e Guilherme foi à frente, pois era o mais furtivo. Jed decapitou o guarda de olhar vidrado.
– Mago, por que não usa uma magia para ajudar Guilherme? – Perguntou Wanda antes que o Ranger saísse.
– Ele não pediu… – Respondeu Gustaff – Além disso, estou sem meu cajado e…
– Cale a boca, você não precisa de condutores para fazer magia. – Retrucou Wanda – Se precisasse não seria chamado de “mago”. E aliás, se eu tivesse meu violão, eu mesma faria um encantamento.
– “Se” não é certeza. – Rebateu Lily – Não vamos ficar teorizando e lamentando na hora de agir.
– Como você ajudaria Guilherme? – Perguntou Jed a Wanda.
– Que tal invisibilidade? – Pediu Guilherme.
– Essa é difícil, mas eu consigo fazer. – Disse Gustaff – Só que vou fazer uma fraca pela nossa falta de tempo e de condutores de magia. – Ele olhou para Wanda de relance enquanto encostava no Ranger. Ele não precisava de condutores mágicos (varinhas, cajados, cristais), mas era difícil fazer e controlar uma magia sem eles – Não toque em ninguém ou a magia será desfeita. Enquanto ninguém tocar em você, não o perceberão. Ninguém ouvirá qualquer barulho que você fizer, mas não abuse. Pode ser que isso chame atenção.
E dito isso a magia se concretizou. Guilherme saiu invisível (imperceptível) da sala e pôs-se a procurar a saída.
– Você não acha que vai ser um pouco difícil ele não tocar em ninguém? – Perguntou Lily.
Todos pararam por um momento, após perceberem o erro. Guilherme sabia ser sorrateiro, mas era um homem muito grande e os corredores eram apertados.
– Merda. – Resmungou Wanda – É nessas horas que Ley é útil.
Guilherme se esgueirava pelo porão mantendo-se longe das pessoas. As únicas pessoas que havia lá eram os guardas-carcereiros, que tomavam conta das salas-cela. Guilherme achou uma escada que levava ao andar superior após perambular por dois minutos. Subiu os degraus e viu que havia chegado a um corredor, o único caminho a seguir. Havia espaço suficiente para duas pessoas andarem lado a lado, mas Guilherme era uma pessoa e meia. Ele chegou a uma esquina, onde teria três opções de caminho: para frente, para a esquerda e para a direita. Tomou o caminho da direita (quando espiou o da esquerda viu que só havia uma porta de cada lado e a parede) e viu que Farid se aproximava. Ficou nervoso, pensando que ele estava indo buscar os outros, mas o capitão da guarda simplesmente continuou pelo corredor e entrou na última porta à direita (sala particular dele). Guilherme olhou pelo caminho que escolhera e viu a porta de saída. Disparou de volta à sala onde seus amigos estavam. Chegou lá ansioso para contar a novidade, mas quase esbarrou em um carcereiro no caminho. Entrou na sala com um sorriso no rosto, mas lembrou-se que estava imperceptível. Estava prestes a tocar em Gustaff, que estava próximo à porta quando alguém esbarrou em suas costas.
Guilherme ouviu Farid gritar algo em sua própria língua e virou-se, ouvindo o som de uma espada sendo desembainhada. Ficou frente a frente com Farid, mas o capitão da guarda sacara a espada rápido demais e já a encostava em seu peito.
– Como ousam? – Gritou Farid após ver os corpos na sala – Vocês merecem uma punição mais severa depois disso.
Guilherme olhou para trás nervoso, enquanto os outros pensavam no que fazer.
– Guardas! Venham aqui e me ajudem! – Ordenava Farid, aos berros.
Guilherme se distanciou dele e seu grupo formou uma linha defensiva na sala. Ela tinha espaço para quatro homens andarem lado a lado, então o espaço serviu. Guilherme tomava a frente junto com Lily e Jed, enquanto Gustaff e Wanda ficavam um pouco atrás, preenchendo os vãos entre os três.
Uma falange de guardas se formou oposta a eles, com Farid liderando e todos usando espadas. Havia mais guardas chegando.
– Mago? – Chamou Jed – Melhor fazer alguma coisa, nós não vamos aguentar muito tempo sem nossas armas e equipamento.
– Fale por você. – Retrucou Lily – Eu luto bem com sabres, que não são muito diferentes dessas cimitarras.
– Rendam-se! – Interrompeu Farid – Rendam-se agora e não aumentarei a pena de vocês.
– Perdão, senhor, mas não iremos nos render – Retrucou Wanda, ironizando com Farid.
– Então… – Dizia Farid quando foi interrompido; ele estava prestes a dizer “morram”.
Gustaff havia lançado um clarão naquele momento, que cegou os guardas por alguns segundos. Isso foi tempo suficiente para que Guilherme, Lily e Jed abrissem caminho. Com Lily à frente, liderando o avanço e os outros dois ao seu lado, protegendo os flancos (Guilherme não era muito bom espadachim, mas sabia algumas técnicas que Ley lhe ensinara e Jed costumava lutar com lanças e bastões longos). Os cinco avançaram em meio aos guardas e abriram caminho em uma fuga desenfreada até a saída. Mas quando chegaram lá se viram diante do portão, cercados por guardas por todos os lados e com Farid vindo atrás deles liderando uma porção de guardas.
Lily praguejou quando Farid surgiu da porta do posto com sua cimitarra na mão. Desejava ter cortado a cabeça dele durante a confusão, mas estava ocupada demais abrindo o caminho.
– Muito bem. – Disse Farid, arranhando a garganta – Cá estamos nós. Vocês estão em grande desvantagem pelo que vejo, com todas essas flechas apontadas para vocês. Então que tal desistirem logo e aceitarem seus destinos?
– Nunca – Retrucou Wanda.
– Nunca? – Zombou Farid – Então irei convencê-los.
– Duvido. – Retorquiu Guilherme, apontando a cimitarra para Farid.
– Você merece o pior dos castigos, Ranger. – Disse Farid – Então vou fazer você sentir uma dor inigualável.
– Torturas não irão me atingir. Além disso, você não é um homem de palavra, Farid. – Retrucou Guilherme – Não acredito em você.
– Pois deveria acreditar. – Disse Farid, por fim – Eu tenho uma chuva de flechas preparada para acabar com vocês.
Eles ouviram alguns arqueiros puxarem a corda de seus arcos. A maioria dos atiradores usava bestas, mas alguns usavam arcos recurvos.
– Maldito seja. – Praguejou Jed, jogando sua arma no chão.
Ele foi reprendido pelo resto do grupo (exceto Gustaff, que fez o mesmo), mas logo todos repetiram seu ato ao ver que não havia escapatória. Todos chutaram suas armas, que foram recolhidas, e se ajoelharam com as mãos na cabeça. Farid foi até eles e pegou Wanda por um dos braços. Ela protestou enquanto era afastada do grupo, mas foi imobilizada pelo capitão da guarda, que era um homem forte.
– Você, Ranger, devia ter me levado a sério quando eu disse que iria lhe aplicar um castigo justo. – Disse Farid.
– Eu juro por Deus que se você causar algum mal a ela, eu te mato. – Retrucou Guilherme.
– Muito bem. – Disse Farid – Suas ameaças não valem nada.
– Não! – Gritou Wanda. Farid guardou a espada e puxou uma pequena faca curva, que era usada pelos Rangers do Deserto (dos Desertos) para cortar gargantas – Não! Por favor. – Ele fez Wanda se ajoelhar a sua frente levantou a faca, que foi reconhecida por Guilherme.
– Por favor, não a mate, pelo amor de Deus. – Implorou Guilherme – Eu faço qualquer coisa.
– Você não merece minha compaixão. – Retrucou Farid, falando com frieza – E seu deus é uma blasfêmia.
– Por favor, não! – Gritou Wanda, chorando – Não!
Farid enfiou a faca no olho direito dela, fazendo-a gritar de dor muito alto. O grupo inteiro praguejou, mas Guilherme foi além. O Ranger levantou de um salto e correu desesperado para salvar Wanda, mas se obrigou a parar pelas lanças que surgiram a sua frente (por pouco não se deixou empalar numa delas). Farid girou um pouco a faca e retirou o globo ocular de Wanda, ainda preso ao corpo por um canal. Ele livrou a faca do olho e cortou esse canal que o prendia a Wanda. Ela só gritou mais ainda, sangrando pelo buraco aberto e chorando pelo outro olho. Farid viu o sofrimento de Guilherme na expressão do Ranger, que estava sentindo mais dor psicológica que a dor física de Wanda. Isso o fez sorrir, pois sua vingança estava quase completa. Wanda, soluçando, vislumbrou Guilherme uma última vez. Viu as lágrimas pintando o desespero em seu rosto, enquanto ele a encarava impotente e profundamente triste. Farid repetiu o processo com o outro olho de Wanda e ela passou a ver apenas escuridão.
– Tratem desses ferimentos para que não infeccionem. – Ordenou Farid – Irei leiloá-la depois que estiver curada.
Ele entregou Wanda aos cuidados de um dos soldados, que trazia um kit de primeiros socorros.
– Os outros devem ser amarrados e trazidos comigo à praça principal. Vamos! – Ele continuou dando ordens aos guardas.
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Continua…