Capítulo 2: Pecado
Por Gabriel Mendes
Wanda acordou. Ainda era cedo, por volta das sete horas. Ela olhou em volta e viu que estava deitada no mesmo quarto onde passara a tarde anterior com Ley. Ela se vestiu e foi até o outro quarto, onde Guilherme continuava dormindo seu sono de pedra. Ela fechou o mecanismo de proteção contra tempestades da única janela do quarto, deixando-o muito escuro. Trancou a porta, despiu-se e deitou-se ao lado de Guilherme. Cochilou por mais duas horas e foi acordada quando um braço forte a envolveu e uma mão grande acariciou seus cabelos. Ela abriu os olhos e encarou o olhar romântico de Guilherme.
Os dois aproveitaram o escuro do quarto para fazer o que queriam fazer havia muito tempo: aquilo. Após mais três horas (daquilo), cochilaram de novo. Foram acordados às duas da tarde pela fome de quase 24 horas de jejum. Vestiram-se e desceram até o salão principal, recebendo olhares hostis ao chegar lá. Uma escrava estrangeira, nórdica que fora vendida várias vezes até chegar àquele reino, veio atendê-los. A presença dela os surpreendeu, pois nórdicos eram incomuns naquela parte do mundo.
– O que o casal deseja? – Ela se sentiu bem por encontrar “conterrâneos” (há muitos reinos e povos nórdicos, alguns rivais, mas encontrar nórdicos fora das Ilhas do Norte era motivo para simpatia e união).
– Acho que pernil de carneiro está bom. – Disse Guilherme. E depois voltou seu olhar para Wanda – Está bom, amor?
– Sim, mas use um molho apimentado e traga pão com mel. – Completou Wanda, falando de forma estranha – Vamos tomar cerveja. – Acrescentou.
A escrava concordou com a cabeça e voltou à cozinha com o olhar confiante. Finalmente os habitantes locais passaram a respeitá-la depois do incidente do dia anterior.
Wanda sentiu o olhar de Guilherme sobre si e levantou o rosto.
– Tá doendo? – Perguntou ele após observar a expressão dela.
– Sim, mas isso é falta de costume. – Respondeu ela – Fazia meses desde a última vez.
– Verdade. – Guilherme baixou o olhar, sua expressão estava um tanto tristonha.
– Não se sinta culpado. – Wanda tentou tranquilizá-lo abrindo um sorriso – Foi bom. Além disso, não está doendo tanto assim.
– Tudo bem então. – Guilherme voltou a sorrir para ela.
A escrava-garçonete trouxe duas canecas grandes de cerveja. Os olhares das outras mesas sobre os nórdicos eram completamente ignorados por eles e os habitantes locais e viajantes daquela parte do mundo estranharam que Wanda também bebesse. Havia igualdade entre os sexos nas Ilhas Nórdicas, algo que não ocorria nos reinos de Beleriand. A cerveja era clara e de gosto leve, mas era em grande quantidade e satisfez Wanda, mas o mesmo não podia ser dito de Guilherme. A garçonete antecipou seu pedido e foi buscar um pequeno barril assim que deixou as canecas na mesa.
– Obrigado. – Disse Guilherme ao receber o barril.
– A comida chegará em uma hora e meia. – Respondeu a garçonete – Fiquem à vontade para pedir o que quiserem.
– Obrigado. – Disse Wanda, apreciando a cerveja.
Após brindarem no estilo de Angband: encostando as canecas no ar, bebendo um longo gole, levantando-os até que o fundo ficasse na altura dos olhos e batendo com elas na mesa.
– Quanto tempo aquela Sombra ficou me controlando? – Perguntou Guilherme.
– Depende. Qual a última coisa que você se lembra? – Respondeu Wanda, franzindo o cenho.
– De sair do quarto na estalagem de Haggem puto da vida, logo depois de discutir com você.
– Então foi por uns dois dias. Você foi limpo dela ontem.
– Como?
– Você lutou com Ley aqui neste salão e foi derrotado. Ele lutou com a Sombra e depois a absorveu com Col Rhyper. Então devolveu sua alma ao seu corpo e depois ficou esperando o Sol se pôr.
– O que aconteceu depois disso? – Guilherme levantou a sobrancelha.
– Você dormiu, nós fomos até o outro quarto e esperamos o tempo passar lá. – Disse ela, sem mentir.
– Depois ele saiu e não voltou mais?
– Sim.
– Alguma ideia do que ele foi fazer? – Perguntou Guilherme.
– Ele me disse que ia resolver nossos problemas aqui. – Ela deu de ombros.
– Entendo… – Guilherme ponderou por alguns minutos. Ficou tentando imaginar o que Ley estava tentando resolver – E quais foram esses problemas?
– Você causou uma puta confusão ontem, na praça principal. – Disse ela, sorrindo.
– Causei? – Guilherme levantou as sobrancelhas e franziu a testa, surpreso.
– Sim. Você deve ter espancado umas cinquenta pessoas. Parece que você e Ley mataram um homem, sem querer.
– Matamos? Como? – A preocupação dele aumentou, mas Wanda estava tranquila demais para que aquilo fosse um problema.
– Ley me contou que o homem estava segurando uma porta, você estava do outro lado tentando arrombá-la e ele pulou em cima de você dando um chute. A porta caiu por cima do homem, que foi esmagado. – Disse Wanda, após dar de ombros.
– Meu Deus! – Blasfemou Guilherme – E depois?
– Depois eu e Ley demos nosso jeito de chegar até aqui inteiros. Mandaram uns guardas prenderem a gente, mas ele deu um jeito neles.
– Espere! Onde estão os outros? – Perguntou Guilherme, referindo-se a Gustaff, Lily e Jed.
– Não faço a menor ideia, mas tenho certeza que estão bem. Eles sabem se virar. – Wanda bebeu o último gole da caneca de meio litro. A dor no ânus passara a essa altura por causa do álcool.
Guilherme concordou com a cabeça. Wanda esticou o braço mostrando a caneca vazia e ele a encheu de novo. Brindaram mais uma vez e ficaram em silêncio por mais alguns minutos.
– Você e o Ley fizeram alguma coisa ontem à tarde? – Perguntou ele, preocupado.
– Sim. – Respondeu Wanda após tomar mais um gole.
– Fora a conversar.
– Claro! – Ela balançou a cabeça com força – Foi muito bom, inclusive.
– Foi o que eu estou pensando? – Disse Guilherme com as mãos no rosto, mas deixando um olho livre.
-Sim. – Respondeu Wanda, que ainda não estava embriagada.
– Por que eu sempre te decepciono? – Perguntou Guilherme olhando para cima, como se a pergunta fosse dirigida a Deus.
– Você deve ter algum talento para isso. – Retrucou Wanda – Mas lembre de que eu sempre te perdoo.
– Verdade. Talvez eu mereça afinal.
– Por quê?
– Eu faço tanta merda que acredito merecer esse castigo. Pelo menos você escolhe bem seus parceiros.
Wanda riu – Você é uma figura. Tá vendo por quê eu sempre te perdoo?
Guilherme sorriu – Se eu morresse, eu preferiria que você ficasse com ele. É um bom amigo.
– Onde está o nórdico que eu conheci? – Retrucou Wanda, fingindo se irritar e batendo a caneca na mesa – Gastou sua masculinidade no quarto agora? Vou ter que pedir que Ley a devolva?
– Não mulher! Só estou lamentando. Eu me sinto um merda sempre que você faz isso. – Guilherme fez voz de marrento.
– Por quê?
– Porque eu sinto como se eu não conseguisse ser o suficiente para você. E por isso você busca satisfação em outros.
– Isso eu não nego. E outra: foi um castigo bem dado. – Disse Wanda, ironizando.
– Você vai ver o que é castigo depois do pernil.
Os dois gargalharam. Como adoravam fingir uma briga.
– Falando no Ley… – Recomeçou Guilherme após se recuperar da risada.
– O quê?
– Será que ele vai encontrar uma mulher para ele algum dia?
– Ele já respondeu isso tantas vezes… – Disse ela. E então imitou a voz do amigo e seu jeito de falar: – “A única mulher para mim morreu muitos anos atrás”.
– Engraçado. Ele nunca disse nada mais sobre isso. – Comentou Guilherme – Ele geralmente conta muita coisa da vida dele para nós.
– Verdade… – Disse Wanda. Sorrindo com malícia e mostrando a caneca vazia.
Eles brindaram mais uma rodada e continuaram a conversa, enveredando para rumos mais pessoais.
– Mas fale-me: ele fez você feliz nessas noites em que eu estive “fora de mim”? – Perguntou Guilherme.
– Sim. – Respondeu Wanda – O que você tem em tamanho ele tem em velocidade. E ele é especialista em formas “não ortodoxas”.
– Como assim? – Perguntou Guilherme, fingindo curiosidade.
– Aqueles dedos são mágicos. E a língua afiada dele não é boa só em discussões. – Wanda riu da própria piada. O jogo psicológico de Guilherme estava funcionando perfeitamente. Ele sabia que aquele tipo de conversa a deixava excitada.
– Essa é uma matéria que eu não compreendo. – Retrucou ele, fingindo desprezo.
– Mas compensa completamente a falta de tamanho. Às vezes ele é melhor que você.
– Só acredito vendo. – Brincou o Ranger. Os dois riram mais uma vez.
– Será que essa mulher que ele fala que era “a única mulher para ele” era bonita? – Questionou Wanda.
– Eu tenho certeza que sim. – Respondeu Guilherme – Ele tem bom gosto para mulheres. – Ele piscou o olho.
O pernil chegou com os acompanhamentos e foi devorado no mesmo tempo que demorou a chegar. Guilherme e Wanda secaram o barril de cerveja, que tinha cerca de 5 litros de capacidade e voltaram para o quarto. Após o jogo psicológico de Guilherme, Wanda pediu para fazer mais daquilo e ele aceitou com prazer.
O leitor deve estar estranhando a conversa desses dois, então acho que eu devo explicar que o casal em questão, além de liberal, não é de casados. Os dois não têm laços de se conservar um para o outro ainda e por isso não o fazem. Outra coisa que eu devo dizer: tive que aliviar muito a conversa deles, pois estava muito pior do que vocês leram (fiquei até com medo de mim mesmo).
Eles fizeram mais daquilo e sucumbiram ao cansaço, o sono e à cama, que era um convite para dormir. Foram acordar ainda durante a madrugada, às três e meia. Há essa hora não havia serviço de quarto, o bar e o restaurante estavam fechados. Então decidiram ficar namorando ali mesmo, no quarto, pois não conheciam a cidade. Foram interrompidos somente quando alguém bateu na porta. Os dois haviam perdido a noção do tempo sem perceber, pois o mecanismo de proteção contra tempestades estava fechado. A porta não tinha olho mágico e quem quer que fosse estava apressado.
– Abram a porta! – Disse um homem no corredor, batendo freneticamente – Aqui é a guarda da cidade. Vocês estão presos!
Os olhares do casal se encontraram e eles se vestiram. Guilherme pegou o arco (o que a Sombra lhe dera), sua faca de caça, mas não achou a faca de arremesso, que não estava no cinto. Wanda escondeu sua adaga longa e preparou seu violão. Com o arco pendurado nas costas e a faca na mão direita, Guilherme destrancou a porta e saltou para trás para escapar da magia de Wanda. O guarda que abriu a porta só teve tempo de ouvir um acorde quando desabou no chão, desacordado. Havia mais quatro guardas, todos com espadas em punho, que entraram logo em seguida.
Wanda continuou a tocar e os guardas continuaram a adormecer ainda em pé ao som do violão.
– Suas coisas estão aqui. Tranque a porta. – Ela se virou e foi até as mochilas – Vamos pegar nossas coisas e as de Ley e fugir da cidade. Gustaff, Lily e Jed vão ter que se virar sozinhos.
Guilherme concordou com a cabeça enquanto trancava a porta novamente. Pendurou sua mochila e a de Ley nas costas e olhou para Wanda. Ela já estava pronta. O Ranger abriu a porta e os dois dispararam até a saída. Azir estava na sala e os questionou, mas foi ignorado. Guilherme arrombou a porta da estalagem e se deteve diante da falange de guardas que estava à frente da estalagem. Já era manhã.
– Rendam-se agora nórdicos. – Gritou Farid – Ou sofrerão consequências piores.
– Seu porco imundo! – Retrucou Wanda – Onde está Ley?
– Está morto e enterrado em algum lugar do deserto. – Disse o capitão da guarda – E é melhor você me obedecerem ou o mesmo acontecerá com vocês.
– Mentiroso! – Vociferou Guilherme – Deixe a gente ir ou eu acabo com sua raça.
– Duvido muito, bárbaro. – Zombou Farid, apontando para a fileira de lanceiros à sua frente.
– Wanda, quando eu disser… – Começou Guilherme, mas ele se interrompeu ao ver que os guardas começaram a tombar de sono. Wanda estava tocando mais uma vez.
– Vamos embora. – Disse ela ao terminar o serviço.
Guilherme trocou de arma enquanto corria em direção ao portão de entrada. Estava “escoltando” Wanda, pois ela era mais lenta. Alguns guardas estranharam os dois e tentaram abordá-los, mas Guilherme simplesmente os nocauteava e continuava. Chegaram ao portão em poucos minutos, mas esse estava fechado. Guilherme derrubou os guardas que protegiam a entrada com algumas flechas e Wanda começou a abrir o portão com suas músicas mágicas. Vários guardas vinham de todas as direções, armados com espadas, lanças e bestas, mas todos eram derrubados pelos tiros mortais de Guilherme. Wanda estava quase conseguindo abrir a pesada porta de madeira e ferro. Faltavam apenas alguns centímetros para que eles conseguissem passar quando Farid reapareceu acompanhado de vinte guardas.
– Estou sem flechas! – Gritou Guilherme, que puxou a faca e pendurou o arco nas costas.
– Merda. – Resmungou Wanda, exaurida pela magia, que demandava muito esforço.
Guilherme analisou os guardas que avançavam correndo. Os mais rápidos, que estavam na dianteira, usavam espadas curvas de ferro negro.
– Guilherme. – Chamou Wanda, parando de tocar – Abra o resto do portão, eu não aguento mais. – Ela disse ofegante. Já não aguentava ficar em pé e estava ajoelhada, quase desmaiando.
O Ranger gritou e correu até o portão, guardando a faca no caminho, ele bateu com uma mão em cada porta e empurrou-as com toda sua força. As portas maciças de papiro abriram-se mais um pouco e ele parou, ofegante. Correu de volta a Wanda e tomou-a em seus braços, ele a carregaria até lá fora. Mas os guardas haviam diminuído muito a distância e o cercaram assim que ele se virou para correr.
– Vamos acabar com isso. – Disse Farid, apontando a espada para os dois – Antes que fique pior.
Guilherme olhou em volta. Estavam completamente cercados e as lanças mantinham os guardas afastados demais dele e ele não tinha nenhuma arma em mãos. “É nessas horas que Ley é útil” pensou ele, imaginando o amigo trucidar os guardas na velocidade de um furacão. Ele pôs Wanda no chão com cuidado.
– O que está fazendo? – Perguntou ela, irritada por não senti-lo correndo.
– Salvando nossas vidas, querida. – Ele respondeu calmamente.
Guilherme jogou as mochilas do chão, colocou o arco, a aljava e a faca no chão e chutou um de cada vez para os pés de Farid. Ele deixou que os guardas amarrassem suas mãos às costas e prendessem Wanda.
– Não machuque ela, por favor. – Ele pediu a Farid – Não faça ela pagar pelos meus crimes.
– Você tem minha palavra – Mentiu Farid.
Ele não achava que aqueles nórdicos eram gente. Por não compartilharem da mesma religião, ele julgava que as regras fundamentais dela não se aplicavam ao nórdico, nem a ninguém que não a seguisse. Assim, ele mentira para Ley e para Guilherme sem nenhum pudor.
– Levem-nos daqui! – Ordenou ele – Vou conversar com cada um deles e dar um destino justo.
Continua…