[Conto] A Penumbra e a Chuva

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por Danton Brasil

no-escuro

Chovia com força, batendo nos vidros das janelas e tornando tudo esfumaçado por dentro. O barulho era intenso; haverá quem diga que este é perturbador ou relaxante. Cada um que escolha seu lado, porém, este é um som poderoso que preenche o espaço. Um som que substitui o silêncio, e, nessa noite em particular havia algo perturbador e relaxante. Um escritório, residia na penumbra criada em seu âmago, todo feito de madeira. Nas paredes, no piso, na escrivaninha. Uma garrafa de Whisky, aberta, pela metade e um copo na mão do provável dono daquele local. Talvez do prédio inteiro. O cabelo era cortado curto, muito bem penteado. O terno impecável, suas unhas lustrosas, uma juventude amadurecida em seu rosto e neste último, olhos negros. Olhos que se destacavam na escuridão, como se dela fossem filhos gêmeos, brilhando com aquela cor digna do universo. Havia beleza, tanto quanto havia seriedade e inclusive, o temor. Mas não dele, claro, de qualquer outro. O charuto no cinzeiro terminava de pintar o quadro. Sua fumaça espiralada perfumava. Tudo estava normal para O Homem. Tudo sobre seu controle. Até ouvir a porta ser batida. Doces toques três vezes repetidos, a ressonar na madeira sólida da porta.

– Entre –  a voz era feita de fogo. Viva  poderosa, daquele calibre que é natural entre os poderosos líderes. A penumbra foi maculada, quase gritando no processo. Com essa nova luz, podemos ver mais claramente o rosto do Homem. Nenhum fio de barba ponteia seu queixo, e sua pele era cor de mármore puro. Seu rosto era uma escultura. Parado na porta, estava outro homem. Dois metros de altura, usava uma boina e um sobretudo claro, apertado aonde haveriam gigantescos braços. Usava também coturnos sujos de lama. Da ponta do casaco, caiam pingos d’água. Grosso lábios, olhos pequenos, dedos enormes. Feições rudes como se houvessem sido talhadas em pedra.

– Encontrei – O Gigante diz, e o faz com um sotaque forte. – Este lhe servirá.

– Deixe-me vê-lo – O copo é pousado. O charuto é levantado. O Gigante volta para detrás da luz que saía do portal e retorna com uma criatura nos braços.

Um sujeito.

Embrulhado em farrapos sujos e encharcados, cabelos negros e longos, desgrenhados, imundos e empapados. Uma barba longa  rançosa, falha e raiada de pelos grisalhos. Descalço, e com unhas longas e destruídas, pretas e podres.

– Olhe para mim – O Homem falou baixo, mas a potência de sua voz sempre fora suficiente. O Mendigo olhou: os olhos negros estavam ali. Iguais, universais e poderosos, mesmo numa débil criatura como aquela. Só que em vez de poder, o olho negro estava preenchido com medo.

– Vamos Começar. Você se superou – O Homem sorri sem abrir a boca.

– Como deseja, senhor. – O Gigante abre uma das gavetas da escrivaninha e tira uma tesoura, uma navalha, uma faca, uma toalha. Coloca tudo numa pequena mesa situada ao lado do Mendigo. E este, é esmurrado violentamente, sendo jogado ao chão, arfante. O Gigante tira toda a sua roupa e a joga aos pés do Homem. Com a faca, ele faz uma linha, que vai do ombro esquerdo até a coxa direita, entre gritos e sangue jorrando ao chão.

– não! não faça isso! – gritava o Mendigo. Ninguém ouviu. Ele foi posto de pé pelas mãos monstruosas.  O Homem vai até a sua frente, e o encarando, tira seu terno e todo o resto da roupa. Ele, possui uma cicatriz exatamente igual ao corte recém criado no corpo do Mendigo. A roupa do Homem é jogada ao chão.

– A cicatriz está perfeita – E um novo sorriso é produzido.

O mendigo tremia, mas não conseguia desviar o olhar. Suas mãos foram puxadas, suas unhas cortadas e lixadas pelo Gigante. O cabelo, aparado e penteado cuidadosamente. A barba; eliminada. Foi perfumado ao fim, se tornando Idêntico ao  Homem, que colocou as roupas do Mendigo. O Mendigo entendeu, e colocou o terno. O Gigante coloca a manta mal-cheirosa e ensopada por cima da cabeça do Homem, criando um capuz.

– Porque? quem é você? – O Mendigo está atordoado.

– Ora, eu já fui aonde você estava. E você um dia irá voltar. – O Homem sorri e sai pela porta, desce as escadas e entra na chuva. O Mendigo não tem reação. Ele vê o Gigante arrumar e limpar todo o salão, e dizer:

– Tudo o que o senhor desejar, pode pedir a mim.

-Quem era ele?

– Ele quem senhor? Só há eu e o senhor aqui. Sempre houve apenas eu e o senhor. Sempre haverá. Boa Noite. – Ele sai pela porta e a fecha, atrás de si. A penumbra volta, como num assomo de prazer. A fumaça do charuto ainda sobe espiralada e perfumada. E o charuto é levado a boca, tanto quanto o copo. Os olhos negros estão ali, na mesma posição. E a chuva bate com força nas janelas, deixando tudo esfumaçado por dentro, sendo intrépida, insuperável.