[Curto&Grosso] Como conheci Clarice Lispector

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“Clarice não se lê, Clarice se sente”.

E foram com estas palavras que fui apresentado à Clarice Lispector. Naquele momento eu pensei, como assim “sentir”? Sempre convivi com a lei da ação e reação. O cavaleiro chega ao castelo mata o dragão e fica com a princesa. Uma mulher grita porque vê uma barata, o homem vai lá e mata. Ação e reação. Neste período, eu fazia cursinho e esta frase do meu professor de redação, talvez um dos professores que eu mais admirei martelou na minha cabeça durante muito tempo.clarice-lispector

Como seria possível sentir um texto? Se bem me lembro, eu já havia lido Perto do Coração Selvagem e apesar de pouco ter compreendido, gabava-me por já ter um lido um de seus livros. Infelizmente, eu havia lido no sistema da ação e reação. Este tipo de pensamento sempre fez parte do meu universo masculino. “Um homem sabe resolver as coisas…”, era isto que me diziam. “Um homem toma a frente na hora de paquera, um homem pede a mulher em casamento, um homem de verdade precisa prover sua casa…” e me aparece um cara dizendo que eu preciso sentir para ler? Ler é uma ação, você senta abre o livro, decodifica as palavras para poder compreender a história que ali esta; quando termina é só fechar o livro e ir ao próximo. Simples assim. Por que devo perder meu tempo preocupado em sentir algo, já pensou em quantos livros deixaria de ler se ficasse divagando?

Contudo, e ainda bem, que eu estava completamente enganado. Certo dia, meu cunhado levou para a casa dos meus pais – na época em que eu morava lá – vários livros dentre eles A Paixão Segundo G.H. lembro bem que era um período bem conturbado da minha vida. Eu estava bastante confuso com um monte de coisas: trabalhava dois turnos, estava sempre cansado, fazia especialização, estudava psicanálise e fazia terapia na época… quando comecei a ler aquele livro e li através daquela personagem de Clarice comecei a sentir o texto pela primeira vez.

Se você não leu A Paixão Segundo G.H. isto não é um spoiler: no livro a protagonista diz que tinha três pernas, que a terceira perna não existia, mas era a sua sustentação, uma parte fundamental dela… para mim, Clarice estava falando do inconsciente (lembra que eu estava estudando psicanálise na época?). Em momento algum ache que estou afirmando ou impondo essa interpretação estou dizendo, que foi uma identificação. O inconsciente é um apoio necessário, uma perna que não existe, mas está lá. Quando acessamos nosso inconsciente (sei que isto não é possível, contudo falo do processo terapêutico), quando começamos a deixar vazar para nossa consciência fatos que estavam afundados, escondidos no nosso inconsciente então perdemos esta perna, nem sempre é fácil lidar com essa realidade, porém quando ela ocorre é um momento mágico para o paciente. Esse véu da realidade que cai, cria uma nova maneira de ver o mundo a sua volta.

Imagine-se de olhos fechados, caindo de braços abertos. Quando você diz que está cansado, segundo o princípio da ação e reação você pensa imediatamente: eu preciso descansar, dormir. Mas se você começar a sentir ir além do próprio código da palavra pode-se questionar: por que estou sempre cansado? Será que estou feliz com meu trabalho? Este cansaço é de satisfação ou de fardo? Foi com Clarice que aprendi a perceber que as palavras são muito mais poderosas e vão muito além do que podemos imaginar. Eu estava vivendo assim. Enquanto caia as palavras passavam por mim, viver não é estar o tempo todo no automático. Não é reagir a tudo a sua volta no modo “ação e reação”, às vezes, em momentos muito precisos precisamos sentir as palavras passar por nossos dedos, o sentido faz com que olhemos não para mundo, mas para nós mesmos.

Clarice Lispector me emocionou com seu livro, me fez sentir as palavras e perceber que existem mais significados em um texto do que apenas o cavaleiro que salva a princesa. Na verdade, sentir o texto é perceber que nós somos cavaleiros e princesas tentando sempre resgatar aquilo que o mundo faz questão de nós fazer esquecer, faz questão que façamos de modo automato e frio como se fôssemos máquinas. No fundo, sempre estamos em busca de nós salvar.

Obrigado, Clarice.