A poesia é um presente que cabe apenas ao leitor tirar da caixa.
O papel do poeta é papel de embrulho.(Elton SDL)
O que é o poeta para você?
Um mero sujeito que consegue dizer palavras rebuscadas e bonitas? Um indivíduo que consegue fazer umas rimas engraçadinhas? Um vagabundo que não tem mais o que fazer? Um cara que você aplaude em um sarau mesmo sem ter entendido bulhufas do que ele falou, apenas por educação ou pelo frenesi do público?
O que é o poeta para você?
Acredito que essa pergunta por si só tenha inúmeras respostas – que vão ficando maiores à medida que a questão compreende uma outra: para você, o que é poesia? Sujeito e objeto não estão cada qual para um lado, na maioria das vezes pensar no fazer poético é pensar quem o faz. Os limites entre o eu-lírico e um “eu que fala” é cada vez mais fragilizado, como uma fronteira que é ultrapassada por clandestinos noturnos sorrateiros, apesar de toda a vigília dos guardas sisudos. Mas, caso sua resposta tenha sido uma das supracitadas ou algo parecido, saiba, caro(a) leitor(a), que nem sempre foi assim. A poesia já foi considerada coisa do outro mundo, ferramenta de gente muito poderosa… e perigosa!
Desde tempos remotos, quando as culturas ditas “primitivas” e pagãs eram em número maior, passando também pela Idade Média, a figura do poeta já transitava pela terra. Não era difícil que tal papel fosse ocupado por antigos xamãs ou bardos. Alan Moore, famoso escritor de histórias em quadrinhos/graphic novels (V de Vingança, Watchmen, A Piada Mortal) é quem nos diz:
Magia na sua forma mais antiga é referida como “A arte”. Creio que isto seja completamente literal. Creio que a magia é arte, e que essa arte, seja a escrita, a música, a escultura ou qualquer outra forma é literalmente magia. A arte é, como a magia, a ciência de manipular símbolos (palavras ou imagens), para operar mudanças de consciência.
Um grimório, por exemplo, um livro de feitiços, é simplesmente um modo extravagante de falar de gramática. De conjurar um encantamento. É somente encantar, manipular palavras pra mudar a consciência das pessoas. Eu acredito que um artista ou escritor são o mais perto do que você poderia chamar de um xamã do mundo contemporâneo.
Na Idade Média, os famosos bardos misturavam música e poesia para diversos fins: relatar feitos heroicos (de nada adiantava para um rei ou cavaleiro ser triunfante se não houvesse um bardo para cantar seus atos), registrar acontecimentos cotidianos e momentos históricos, consolar em situação de penúria ou alegrar em ocasião de júbilo, fazer sátiras, piadas e escárnio de seus alvos. O bardo, esse poeta ancestral, era amado e temido, mais temido até do que a mais perigosa bruxa ou o mais poderoso mago. Os magos podiam controlar seu corpo temporariamente ou lançar um feitiço sobre uma mulher grávida e seu filho nasceria com uma perna de pau. Um bardo, por outro lado, não te amaldiçoaria, ele faria uma sátira tão feroz que te destruiria. E se seus versos fossem bem feitos, isso te destruiria por anos, décadas, milênios… aos olhos dos seus amigos, familiares e quem quer que fosse. Sua imagem arruinada permaneceria por gerações e todos lembrariam de você da forma jocosa e devastadora cantada pelo bardo. Assim, conclui Alan Moore:
A tradição mágica dos bardos os colocava num patamar muito mais elevado que os magos (…). Os escritores, [poetas] e as pessoas que podiam comandar as palavras eram respeitados e temidos como gente que manipulava a magia.
O que acontece quando você se depara com a poesia hoje em dia? Será que esse poder enfraqueceu? Ou o mundo se desencantou? Afinal, poetas, escritores e artistas em geral possuem algum tipo de poder ou são apenas uns “homenzinhos frouxos e afrescalhados” falando bobagens existenciais?
Talvez falte em nós a capacidade (adormecida apenas, não perdida) de, através das palavras, irmos além delas; a sensibilidade de decodificar os símbolos, de construir significados a partir de caminhos iniciados pelo autor. A humildade e a paciência de aprendizes mediante as lições mágicas de um feiticeiro, a escuta desapressada perante o canto e a lira de um menestrel.
A poesia, a prosa, a música, o cinema… a boa arte, nunca se põe por inteiro na mesa do seu degustador – ela exige de nós algum esforço, um exercício constante, um construir junto com o autor, uma participação co-autoral, de fato. Mas estamos tão habituados ao clique fácil, ao acesso rápido, a degustação instantânea que nos tornamos apressados, impacientes, desatentos. Preferimos a coisa já dada, pronta em nossas mãos. Optamos por sermos escravos do mago que já dá o ouro final ao invés de iniciados com o mago que vai ensinando o processo da alquimia e possibilitando que também nos tornemos seres mágicos e, por fim, descubramos nosso próprio ouro. Está na hora de com isso romper, e talvez um primeiro passo seja responder:
Afinal, o que é o poeta para você?
Poetize!