O que resta
Por Gabriel Mendes
Uma discussão acalorada ocorria no acampamento. Gustaff, Jed, Lily e Wanda discutiam as diferenças entre os sexos. Lily defendia sua crença na superioridade feminina; Wanda argumentava que não havia diferenças entre homens e mulheres; Gustaff ouvia tudo, questionando os argumentos de cada uma, construindo sua opinião e formulando seus argumentos; e Jed lançava perguntas nada polêmicas apenas para moderar a discussão.
Guilherme estava sentado em seu acampamento individual comendo uma coxa de galinha. A discussão o irritava. Aquelas pessoas ali, perto dele, o irritavam. Só queria que aquela conversa toda acabasse, queria o silêncio. Pensava no que deveria fazer: abandonar o grupo ou matar todos eles. Estava considerando os prós e contras de cada situação.
Após cerca de três horas discutindo, Lily e Wanda chegaram a um consenso. Lily passou a aceitar que os homens podiam ser tão bons quanto as mulheres, mas nunca melhores; e Wanda passou a entender que as mulheres são, geralmente, melhores em situações sociais. Ainda discordavam, mas não queriam mais discutir aquilo. Nenhuma tinha lábia suficiente para convencer a outra. Feitas as pazes, Wanda tirou seu violão do estojo.
– Que tal uma música pra animar a noite? – Perguntou.
– Qual música você vai tocar? – Perguntou Jed.
– A que vocês escolherem. – Respondeu Wanda. Dito isso, Jed, Lily e Gustaff começaram a discutir qual música queriam ouvir. Como não chegaram a um consenso (nunca chegavam), Wanda decidiu interferir – Pensando melhor… Que tal eu tocar Marvin?
– O que é isso? – Perguntou Lily.
– São músicas que eu escrevi contando a história desse imperador. – Respondeu Wanda.
– Qualquer coisa é melhor que nada vindo de você e esse seu instrumento. – Comentou Gustaff. O violão era um instrumento realmente raro. Era comum que as pessoas perguntassem a Wanda: “Por que seu alaúde só tem seis cordas?”. Ainda assim, o som do instrumento era divino. Wanda começou os primeiros acordes.
Guilherme não gostou da ideia de música. “Música não! Definitivamente não”, pensou. Guilherme se levantou e foi até o outro lado da estrada. Quando Wanda estava prestes a começar a cantar, Guilherme tomou o violão de suas mãos com violência, segurando-o com apenas uma mão.
– Sem música. – Disse ele, seco.
– Quem você pensa que é, seu bruto? – Gritou Wanda – Devolve meu violão!
– Sem música. – Repetiu, dessa vez em tom ameaçador. O olhar dele refletia o tom de voz.
– Você não manda no grupo, todos nós queremos música e se você não quer, o problema é seu! – Retrucou Wanda, ainda gritando – Devolve meu violão!
– Olhe bem como fala comigo, cadela! – Guilherme levou a mão ao pescoço de Wanda e a suspendeu no ar a meio metro do chão – Eu posso muito bem matar seus três amiguinhos, quebrar seu instrumento e usar você de escrava.
– Me põe no chão. – Gemeu Wanda, sem ar. A mão de Guilherme apertava sua garganta com muita força.
– Solta ela, Guilherme. – Ordenou Lily, levando a mão ao cabo do sabre – Ou vai ter que lidar com a gente.
– Vocês acham mesmo que podem me enfrentar? Eu sou mais poderoso que todos vocês, eu posso matar cada um de vocês da forma que eu quiser e você não podem fazer nada contra mim. – Guilherme soltou Wanda, que caiu de bunda no chão. O Ranger riu. Sua expressão exibia um sorriso insano. Todos tinham certeza que ele enlouquecera de vez. O problema era que Guilherme tinha 2,2 metros de altura e, mesmo não sendo muito musculoso, era muito mais forte que todos ali juntos e além de saber lutar de formas variadas.
– Ley é mais poderoso que você e ele nunca faria isso. – Retrucou Wanda, ofegante. Seu rosto estava muito vermelho devido à pele dela ser pálida.
– Não mesmo. – Disse uma voz aguda, fantasmagórica, que parecia vir de lugar nenhum.
Eles olharam em volta, procurando pelo dono da voz, e perceberam que tudo à sua volta eram Trevas. O breu era tão forte que a fogueira iluminava um raio de três metros e perdia completamente sua força. Todos agiram por instinto, armando-se e assumindo posição de defesa. Gustaff tinha o cajado pronto, carregando uma magia; Lily desembainhara o sabre; Jed segurava a lança; Guilherme empunhava suas facas; e Wanda tocava uma música em seu violão para criar uma barreira em volta deles.
Uma figura foi vista em meio às sombras, um vulto surgindo do breu. A escuridão diminuiu em volta do grupo à medida que Ley se aproximava. O susto bem dado cumpriu sua função: acabar com a briga.
– O que eu lhe disse? – Perguntou Ley a Guilherme, que não entendeu.
– Hã?
– O que eu lhe disse lá no vale? – O tom de Ley era sério e isso era um péssimo sinal.
– Você não manda em mim! – O Ranger encheu-se de raiva. Ley o olhou nos olhos, causando o efeito hipnotizante que atormentava qualquer um.
– Olhe bem como fala comigo, seu merda! – Ley falava baixo, de modo assustador, deixando todos com medo e receio. E então Wanda notou coisas que haviam passado despercebidas.
– Por que esse sangue todo em você e na sua espada? – Perguntou ela.
– Depois eu te falo. – Respondeu Ley, virando a cabeça na direção dela. Guilherme preparou-se para dar um soco em Ley, mas o chão embaixo dele sumiu de repente. A única coisa que impedia Guilherme de cair era a pequena mão de Ley, que não apertava seu pescoço, mas deixava que o peso do Ranger o enforcasse. Ley olhou nos olhos do amigo com uma expressão sádica, varrendo a alma de Guilherme através de magia. Ele descobriu que o pouco que restava dele era só raiva, que estava quase sendo devorada pela Sombra. E essa sombra preenchia o vazio de Guilherme. Terminada a varredura, Ley jogou o Ranger no chão e o arrastou de volta ao acampamento – A partir de agora, … – Disse à Sombra – Você me obedece. Chega de brigas, chega de se descontrolar e se você tentar qualquer coisa, eu acabo com você.
Ley retornou ao acampamento principal. Explicou aos amigos o que aconteceu na caverna dos magos aliviando bastante o ocorrido. Não mentiu, mas omitiu e retirou vários detalhes. Todos acabaram perdoando Ley pelo ataque de Rage.
Wanda cantou várias músicas, as primeiras canções da lira “Marvin”. Elas contavam da infância e da vida do imperador como um épico, seguindo o estilo das Lendas. Wanda escreveu aquelas canções tendo Ley como orientador histórico e ele contava a história através das Lendas e de suas memórias. Mais tarde, todos foram dormir e Ley pôs-se a explicar a Wanda a situação de Guilherme.
– A alma dele está quase completamente devorada. – Disse à amiga.
– E o que isso causa? – Perguntou ela.
– A única parte dele que restou foi sua raiva. O resto das emoções, o vazio da alma, foi preenchido pela Sombra; por isso as atitudes agressivas e estúpidas. Eu duvido que ele sequer se lembre de nós como amigos.
– Isso é mau.
– É péssimo! Logo aquela sombra o deixará e ele ficará desalmado.
– E como é uma pessoa desalmada? – Quis saber Wanda. Ley não respondeu da primeira vez.
– É difícil explicar… – Começou Ley – Uma pessoa é formada por corpo, alma e mente. O corpo é físico, o que tocamos, e está sujeito ao mundo e às regras do plano terreno. Alma e mente se confundem com espírito e consciência, pois, além de sinônimos, essas palavras são usadas de formas diferentes em diferentes religiões. Mente e consciência são a mesma coisa, mas são interpretadas de maneiras diferentes. São nossas experiências, memórias, conhecimentos… Já a alma e o espírito são a mesma coisa, também interpretados de formas diferentes. São nossas emoções, personalidade, natureza, princípios… E tanto alma quanto mente estão interligadas. Quando uma pessoa tem sua memória perdida, ela muda também em alma. É possível notar que o comportamento dessa pessoa é diferente.
Ley fez uma pausa para refletir um pouco. Wanda prestava bastante atenção.
– Quando Guilherme começou a ter a alma devorada, ele mudou. Conforme ele foi perdendo suas emoções, perdeu as memórias, e depois o resto foi se deteriorando. Quando uma pessoa desalmada sobrevive ao processo de perder a alma, ela se torna uma espécie de morto-vivo, pois enquanto o corpo está vivo e funcional, a falta de alma prejudica a mente. Ela passa a agir como um animal e permanece consciente ainda assim. A pessoa não reflete sobre suas ações, mas não perde a capacidade de raciocínio lógico ou seus conhecimentos. Essas sequelas tornam o desalmado potencialmente perigoso, pois alguém que não tem senso de moral, mas tem raciocínio lógico, pode muito bem matar alguém por pagamento; afinal, isso só a beneficia.
Outra pausa.
– Quando uma pessoa perde a alma, ela perde a capacidade de fazer magia, pois o poder de uma pessoa está em sua alma. A perda de poder muda a pessoa. Então o desalmado vai mudando aos poucos e deixa de ser um ser humano para se tornar um ser decadente. Geralmente, a coluna fica muito curvada, a pessoa perde a capacidade de andar em pé e emagrece muito. Além de perder os pelos do corpo, a massa muscular e jovialidade. E isso é, basicamente, o que acontece quando uma pessoa perde a alma.
– Se Guilherme perder a alma? O que acontece? – Wanda estava preocupada, mas já tinha começado uma terapia mental para superar a perda.
– Podemos levá-lo a Angband e “montá-lo” de novo. Substituir o vazio que a Sombra deixar com Trevas. Assim, as características que compõem a alma serão substituídas por essas Trevas.
– E ele vai viver como um corrompido? – Wanda não gostou da ideia.
– O que há de errado em viver como um corrompido? – Retrucou Ley – Eu sou assim e não há nada de errado com isso. Ele vai ser um Guilherme diferente, sim, mas vai ser um Guilherme.
Wanda assentiu. Sua expressão deixava claro que ela não gostava da ideia, mas Ley não podia fazer nada. Ela deitou-se no saco de dormir, uma grande bolsa de couro afofada por dentro.
Ley não dormiu. Nunca dormia. Por que dormir se a noite era sua zona de conforto? Além disso, alguém precisava vigiar o acampamento. Já que Ley não precisava dormir, ele ficava de vigia todas as noites, o que deixava o grupo mais disposto e descansado. Nesta noite não tirou os olhos de Guilherme, pois ele era a maior ameaça.
Guilherme não dormiu. Estava muito ocupado roendo o osso que sobrou da coxa de galinha. Sentia-se vazio e tentava preencher aquilo com qualquer coisa. Sua raiva passou, deixando uma sensação de vazio ainda maior. Isso lhe tirou o sono e o fez permanecer acordado em uma espécie de transe, que foi quebrado com o nascer do Sol. Com a aurora, Guilherme se levantou e andou lentamente até a fenda. Uma lâmina o parou na entrada, Ley o olhava nos olhos. Após se encararem por alguns segundos, Ley recolheu a espada e permitiu a passagem do Ranger. Guilherme caminhou através da fenda, que agora era iluminada, e pelo túnel até chegar ao vale onde estivera com Ley no dia anterior.
O que Guilherme viu só não lhe deu ânsia de vômito porque ele não tinha mais emoções. O que antes era um vale verde, com animais, plantas e água, tornara-se uma terra devastada. O solo estava cinza, queimado em algumas partes, e a água negra e venenosa. Guilherme foi se aproximando da caverna sentindo receio, que logo se transformou em medo. À medida que se aproximava da caverna, a temperatura começou a cair e ele sentiu um frio estranho na barriga. Chegando à entrada da caverna, Guilherme ouviu um sibilo fantasmagórico. Voltou correndo para o acampamento. Aquele lugar era amaldiçoado.