por Alan Cosme
Ela atraia olhares por onde passava, pois naquela cidade muçulmanos não eram muito comuns. Ela não era muçulmana, as pessoas só deduziam isso devido ao fato dela estar vestindo uma burca. Ela não vestia uma burca, só estava coberta da cabeça aos pés com vários tecidos que deixavam livres apenas os olhos. A opção por usar tanta roupa não foi devido a convicção religiosa, mas sim para esconder as queimaduras. Queimaduras de segundo, terceiro e até quarto grau. Se fosse outra pessoa ela já estaria morta.
Ela não era muçulmana. Ela não era mulher. Ela não era humana.
Pessoas se aglomeravam, a curiosidade macabra que todos têm (mesmo que alguns neguem) os compelia a assistir ao corpo inerte na calçada. O crânio estava estourado. Do alto de um prédio ela havia se jogado. Vendo o cadáver naquele estado ficava difícil imaginar que alguém conseguisse fazer isso consigo mesma.
– Esse não vai para Jesus. Esse vai para o tinhoso. – Um homem, mais um entre tantos na multidão, olhava para o morto com nojo. Não tanto pelo estado dele, mas pela ação que cometera em seus últimos instantes de vida.
A falsa muçulmana toca na cabeça do homem e por um breve instante ele sente um choque. Nada muito doloroso, só levemente incomodo. Ele foge dos dedos da mulher enquanto esbraveja várias reprimendas desaforadas.
Usando um dos seus poderes, a falsa muçulmana removeu a capacidade do cérebro daquele homem de produzir endorfina, o hormônio do prazer. Em dois meses o emprego que ele tanto gostava irá perder a graça. Em três meses as horas prazerosas passadas com a esposa e seus filhos também. Em cinco meses ele irá ser acometido por uma tristeza sem motivo, essa falta de motivo o deixará ainda mais angustiado. Em um ano começará a depressão. Em um ano e meio ela se tornará severa. Em dois anos será ele a aparecer estatelado em uma calçada.
O prédio era abandonado. O projeto era criar um grande centro empresarial, mas por algum motivo escuso as obras pararam. O local acabou virando um centro de mendigos, drogados e de prostituição. A falsa muçulmana adentrou o lugar, indo direto para o seu canto. Uma das várias salas inacabadas. Não havia aguá encanada, não havia eletricidade. Havia mofo e um forte odor de urina e descaso público.
Os outros moradores do prédio não se importavam com sua presença, pois já haviam se acostumado com ela. Ademais, nas ruas era comum encontrar figuras diferentes.
Sentada em seu canto, sem se incomodar com a umidade no chão que não era só água, ela esperava.
****
Ele chamava atenção, as pessoas ao redor olhavam para ele e davam risada. O homem estava sentado sozinho em uma mesa de bar bebendo um copo de cerveja atrás do outro. O homem discutia com um conhecido sobre os seus problemas. O inusitado era que mais ninguém conseguia ver com quem ele falava. Parecia que o bêbado conversava sozinho.
– Ela não quer me ver nem pintado de ouro! Agora nem aceita me ver como paciente! Merda! Estava indo tudo tão bem! – Entre uma lamentação e outra Marcos Mignola tomava um gole.
– Você estava em um lugar como Paradísia com a mulher que ama. Por que quis voltar? O que você tem aqui que vale tanto a pena?
O fantasma tinha pele cinza, era esquelético de tão magro, suas orelhas e nariz bem pontudos. O desencarnado gostava de acompanhar Marcos bebendo, pois a medida que o vidente bebia o fantasma ia se alimentando de seu vício.
– Um pai que me odeia, um emprego sem estabilidade, o medo constante de voltar a um manicômio, o olhar torto das pessoas a minha volta… Porcaria! Como fui ser tão burro?! Joguei fora um paraíso!
– Se me deixassem ir a um plano tão elevado com certeza eu não voltaria.
– Obrigado! – Disse Marcos em tom de ironia. – Você está me ajudando muito!
– Sou um encosto. Por definição minha função não é ajudar.
Marcos bebeu mais duas garrafas. Quando já estava trocando os pés ele decidiu sair. Terminaria a lamentação em casa. Apesar de bêbado, ele não tinha dificuldade em acertar o caminho. Seu colega obsessor o levava apoiado no ombro. Queria protegê-lo. Não por bondade. Se Marcos morresse ele perderia uma boa fonte de sustento.
No meio do caminho a dupla passa por um prédio abandonado. De dentro da construção emanava uma vontade. Uma vontade tão intensa que conseguiu manipular a vontade do obsessor. Fazendo com que ele guiasse Marcos não para sua casa, mas sim para aquele lugar.
Com a mente entorpecida, o vidente é levado para dentro do prédio sem se dar conta. O obsessor deixa o homem em uma sala vazia onde uma mulher esperava.
Quando o encosto vai embora Marcos perde o apoio e cai com vontade. O baque do seu rosto no chão fedido o faz acordar.
– Onde estou?!
Uma mulher vestida da cabeça aos pés começa a se aproximar. Marcos sente um frio percorrer sua espinha. Algo lhe dizia que aquilo não era boa coisa. A mulher tira uma camada de suas vestes maltrapilhas revelando sua face. Uma mulher que seria bonita, se não fossem as queimaduras no lado direito do seu corpo que maculavam sua beleza. Uma mulher que Marcos conhecia. Essa mulher era Neide.
Talvez fosse o medo, ou talvez fosse um dos seus poderes se manifestando. Ao perceber que teria que lutar pela vida, como em um passe de mágica, Marcos instantaneamente ficou sóbrio.
Neide o agarra, tal como na primeira vez que lutaram, ela o joga longe. Voando uns seis metros o vidente se choca contra uma parede. Tirando um pouco do reboco.
Neide tenta agarrá-lo uma segunda vez. Marcos revida. Reúne todas as suas forças em um soco. Um soco pífio. Lorelei conseguia bater melhor do que ele. Neide aperta o ombro do vidente e o força a ficar agachado. A dor era incrível. Marcos chegou a pensar que algum osso iria quebrar ou ao menos deslocar.
A adrenalina corre solta pelas veias de Marcos. Fazendo com que ele se esquecesse que não era bom de briga. Fazendo com que ele se esquecesse que seus socos eram fracos e ineficazes. Marcos aplica outro golpe. As tatuagens em seu braço direito começam a brilhar. Uma luz dourada emana de seus desenhos. Marcos dá um soco com resultado bem diferente dos anteriores.
O punho de Marcos atinge o rosto de Neide com uma força muito superior ao que ele achava ser possível. A monstra é arremessada longe. Ela se choca contra uma parede a atravessando, indo parar na sala ao lado.
– Porra! – Marcos olha para as próprias mãos ainda sem acreditar no seu feito.
A luta ainda não havia terminado, Neide se recupera e começa a se aproximar. – Muito bom, garoto. Me mostre mais do que consegue fazer.
A monstra chegou perto. Agora ela não se detinha apenas em agarrá-lo e arremessá-lo. Neide começava a desferir socos. Socos que Marcos não sentia dificuldade em desviar. Ao contrário do que seria o mais lógico, Neide sorria. Ela parecia estar gostando do desempenho do vidente na briga.
Marcos levanta o braço com o punho fechado. Ao baixá-lo acerta com tudo no topo da cabeça de Neide. O golpe foi forte o suficiente para deixá-la tonta. Ela recua dois passos.
Marcos nunca praticou judô. Mesmo assim conseguiu agarrar Neide com muita desenvoltura. Ele a pega pelo colarinho da blusa e aplica nela um movimento que a joga novamente a vários metros de distância. Outra parede é destroçada, novamente ela vai parar em outra sala.
Com sangue nos olhos, Marcos vai para cima da monstra. Estava disposto a acabar com tudo quando:
– Tá bom, garoto. Já basta! Já vi o que queria.
O pedido inesperado fez com que Marcos esquecesse da cólera. – Oi?
– Você já me mostrou do que é capaz. Parabéns, garoto. Você não me desapontou. Isso é raro, meus padrões são altos.
– Que maluquice é essa?! Você tenta me matar duas vezes e de repente age assim?!
Neide gargalhou, Marcos não entendeu o motivo da graça. – Não seja convencido, garoto. Se eu quisesse te matar você não duraria dois minutos.
– O que é isso tudo então?
– Um teste. Você passou.
– Oi?
Neide começa a se aproximar, só que dessa vez sem nenhuma intenção belicosa. Marcos recua um pouco, ainda com medo. Apesar de esperar um soco, o que Marcos recebe é um cartão.
– Se quiser se unir a gente você será bem vindo.
Marcos olhou para o cartão. O pedaço de papel era totalmente branco, não tinha desenho ou palavra. Qualquer pessoa acreditaria que aquilo era uma piada, mas a experiência de Marcos o fez acreditar que ali tinha alguma pegadinha escondida.
O vidente tira o olhar do cartão para fazer uma pergunta a Neide, porém ela havia sumido. Se aproveitando dos poucos segundos que Marcos desviou sua atenção dela.
****
– Amor, tudo bem?
Heitor Sacramento estava jantando com sua esposa na cozinha, enquanto na sala o seu filho de cinco anos assistia televisão. A noite era rotineira, mas algo não conseguia sair de sua mente.
– Tudo, claro. – O delegado conta uma mentira.
A mente do policial volta no tempo e começa a analisar um sonho muito esquisito. Um pesadelo a bem da verdade. O sonho começa com ele indo trabalhar, de repente Heitor encontra um desafeto em seu carro. Em seguida ele se depara com um mundo vermelho, feio, triste. Heitor vê coisas inomináveis. O pesadelo termina de modo inusitado. Um homem com um penteado diferente, vestido todo de branco aparece o avisando de que ele não pertencia aquele lugar. Após isso Heitor acorda.
Como policial Heitor já presenciou muitas coisas dantescas que inspiraram vários pesadelos. Porém nenhum deles foi tão vivido quanto aquele.
– ROOAARRR!
Heitor dá um pinote na cadeira quando ouve um rosnado. Imediatamente ele corre até a sala temendo alguma ameaça.
Medo infundado, era apenas a televisão exibindo um seriado japonês tosco onde cinco heróis coloridos lutavam contra um monstro. O monstro era muito mal feito, dava para ver que não passava de um ator fantasiado. Mesmo assim a visão daquela falsa criatura deixou Heitor incomodado. Ele aproximasse da tevê e a desliga.
– Pai!
– Você já assistiu televisão demais, garoto. Vem ficar com seus pais, vem.
Na cozinha o trio conversava. As pequenas alegrias do cotidiano eram suficientes para manter a mente de Heitor longe das lembranças do mundo vermelho.
Um mundo que fugia tanto do conceito que a vida de Heitor o ensinou como sendo realidade que ele inconscientemente optou por acreditar ser só um sonho.
****
Afonso Nogueira estava perplexo.
Marcos Mignola encarava seu psicólogo sem entender o porquê daquela expressão. O homem o olhava como se ele fosse um alienígena ou coisa parecida.
– Tudo bem, doutor?
– Estou com o resultado dos seus exames.
– E então?
– Marcos, quero fazer um teste antes. Coisa rápida.
Marcos fez muxoxo e revirou os olhos. De nada adiantou, Afonso estava determinado a fazer aquela pequena experiência. O psicólogo põe na mesa uma série de folhas de papel contendo grandes círculos com varias tonalidades diferentes de cinza. No rodapé de cada folha de papel havia um discreto número, que servia para o doutor conseguir se orientar.
– Quero que você arrume os círculos de acordo com sua tonalidade. Indo do mais claro ao mais escuro.
Marcos olhou para Afonso de maneira torta enquanto dava um sorrisinho. Não entendia qual era o proposito daquele teste. Não entendia o porquê de um psicólogo querer fazer um teste de visão.
– Você é oftalmologista também? – Afonso ignorou a piada. O semblante sério do doutor fez com que Marcos entendesse que não era o momento para gracejos.
Com naturalidade Marcos começou a organizar as folhas de papel de acordo com o que Afonso havia pedido. Indo do mais claro ao mais escuro. As dez folhas foram organizadas nessa ordem: 5, 6, 8, 1, 2, 7, 10, 3, 4, 9.
Afonso tira do bolso da camisa um pedaço de papel que vinha com a resposta certa ao desafio. Nesse pedaço estava escrita a sequência: 5, 6, 8, 1, 2, 7, 10, 3, 4, 9.
O psicólogo começa a suar frio não acreditando no que estava presenciando.
– Doutor, o que foi?
– Você nem percebeu o que acabou de fazer, não é?
Marcos fez uma cara de quem não estava entendendo. Sua expressão funcionando como uma resposta a pergunta do doutor.
– Puta que pariu! Daqui a pouco quem vai precisar de remédio controlado sou eu!
– Doutor?! O que foi?!
– Essa não é bem minha área, mas posso fazer uma explicação básica. Nos olhos humanos há o que chamamos de cones, as células que nos fazem enxergar as cores, e os bastonetes, as células que nos fazem reconhecer a luminosidade. Um humano saudável tem três cones.
– Sim? E o que isso tem a ver com..?
– Marcos, esse teste que acabei de fazer com você não foi feito para humanos, mas sim para animais. Qualquer pessoa enxerga esses vários círculos como sendo completamente iguais. Menos você.
A revelação foi tão surpreendente que Marcos se levantou da cadeira de supetão, sem acreditar no que ouvia.
– O que está me dizendo?!
– Como eu disse, um ser humano normal tem três cones nos olhos. Há algumas mutações que fazem esse número variar, mas é sempre para menos, nunca para mais. Nesse caso temos os daltônicos. Finalizando: seus olhos têm pelo menos trinta cones. Esse número supera e muito a quantidade de cones dentre as espécies conhecidas no mundo animal. Quem mais tem cones é o camarão, e mesmo assim ele só tem doze.
Marcos se lembrou de Lorelei. Se lembrou do que ela tinha lhe dito no Mundo Hippie: “duvido muito que você seja sequer humano”.
– Isso não é nem a parte mais alarmante.
– Ainda tem mais?!
– Nossa espécie… A minha espécie, a espécie humana, evoluiu para conseguir enxergar as cores, mas isso veio com um preço. A maior quantidade de cones diminuiu a capacidade dos bastonetes, como resultado os seres humanos não possuem a capacidade de enxergar bem em ambientes com pouca luz. Animais que enxergam em preto e branco, como caninos e felinos, enxergam bem no escuro por causa disso. A lógica diria que você seria muito mais sensível a falta de luz que o resto da humanidade. Mas não. Sabe se lá como seus bastonetes conseguem ser ainda melhores do que os nossos. Bem melhores diga-se de passagem.
– Doutor, deve ter algum engano. Qual é?! Não sou o Superman!
Afonso se levantou da cadeira e fechou todas as janelas. Em seguida apagou todas as fontes de luz: computador, as lampadas, a luzinha do telefone… – Está vendo alguma coisa?
Marcos queria dizer que não, mas estaria mentindo.
Apesar da visão de mundo de Marcos ser muito diferente da do resto da humanidade ele passou a vida inteira sem se dar conta disso. Se não fosse o doutor a revelar esse fato era bem capaz dele morrer sem nunca chegar a perceber. Nós temos a tendência de nos usarmos como padrão para ter uma base do que seria o “normal”. Marcos nunca viu pelos olhos das outras pessoas por isso ele nunca viu como era a “visão normal”. Para ele, até aquele momento, seu mundo cheio de cores era compartilhado por toda a humanidade. Não podia estar mais enganado.
– Ainda não acabei. Esse foi só o resultado do seu exame de vista. O seu exame de sangue e sua tomografia… Misericórdia!
Marcos começou a tremer. Sua boca ficou seca. Parecia que havia um bolo em sua garganta que o impedia de engolir. Ele estava nervoso. Chocado.
– Definitivamente. Você não é humano.
****
Sabe aqueles dias que parecem que não vão acabar nunca?
Marcos estava tendo um deles.
O vidente havia regressado a sua casa. Estava arrasado, a consulta com seu psicólogo o deixou mais quebrado do que a briga que teve com Neide. Marcos entra em sua casa e imediatamente se joga no sofá. Ele vê um vulto passar na cozinha, porém não havia motivo para ficar alarmado. Em sua vida o incomum era não ver vulto nenhum.
– Alex? É você?
– Quem é Alex?
Não era um fantasma, quem estava presente era alguém bem viva. Esse alguém era a mãe de Marcos. Ela tinha uma cópia da chave, logo podia entrar quando quisesse. Ao menos uma vez ao mês ela aparecia para visitar seu filho. O pai quase nunca fazia isso. Só aparecia de vez em quando e mesmo assim deixando claro que só estava ali a pulso.
– Oi, mãe. Como vai a senhora?
– Filho, está tudo bem? Parece triste.
– Eu sou adotado?
A senhora Mignola fez cara de espanto, depois de indignação. – Claro que não, menino! Pirou de vez?! De onde tirou esse absurdo?!
– Por acaso você e pai estavam viajando no interior quando deram de cara com uma espaçonave caindo do céu que carregava um bebê, que no caso era eu? – Marcos fez uma piada que só ele entendia. Uma piada que não era engraçada, mas sim doída.
A senhora Mignola ficou séria. Marcos falou algo que mexeu com ela. – Espaçonave. Como odeio essa tipo de coisa. – De repente Marcos se lembrou que sua mãe detestava filmes de ficção científica. Quando Marcos era criança ela o deixava assistir quase qualquer coisa. O filme de terror mais medonho, o filme de ação mais violento. Até filme pornô era liberado. Mas ficção científica não. Principalmente se envolvesse alienígenas ou naves espaciais. Marcos só veio a conhecer Star Wars quando foi morar sozinho.
– Oi?
– Filho, eu vou te contar um segredo. Mas não diga a seu pai que eu te contei isso pelo amor de Deus.
– Assim você me assusta.
– Sabe quando dizem que nós odiamos o espelho? Odiamos as pessoas que reconhecemos como tendo falhas parecidas com as nossas. Pois bem, você e seu pai são a prova viva dessa história.
– O que a senhora quer dizer com isso?
– Ele tinha o mesmo problema que você, Marcos.
Marcos ficou sem entender o que sua mãe quis dizer com isso. Até que teve uma ideia meio difícil de acreditar. – A senhora está dizendo que pai via fantasmas também?
– Não filho. Seu pai via homenzinhos verdes.
****
– Eu perguntava, Do You Wanna Dance.
– E te abraçava, Do You Wanna Dance.
– Lembrar você.
– Um sonho a mais não faz mauouoououuouou.
– Ai caralho!
Trinta anos atrás, o Senhor Mignola ainda não era conhecido por essa alcunha. Jovem, com pouco mais de trinta anos, ele gostava de ser chamado de Fernandinho. Um apelido carinhoso dado por sua mãe na infância.
Naquela noite Fernandinho estava dirigindo seu possante, um gurgel azul modelo 1970. Ele trafegava em uma autoestrada rumo a casa de sua noiva que morava no interior do estado. A estrada estava deserta, ao seu lado só se via um matagal sem fim.
Ele gostava de ouvir um som enquanto dirigia, estava ouvindo sua música favorita de sua banda favorita. Quando de repente a danada da fita começa a embolar.
Fernandinho perde um tempo ajeitando o aparelho. Por alguns segundos ele tira a atenção da pista. Até que uma luz forte invade seu carro. Temeroso ele esquece do rádio rapidinho, seu instinto dizia que era algum caminhão vindo na contramão. Seu instinto estava enganado.
O farfalhar das folhas havia parado. A leve garoa que caia havia parado. O carro que dirigia havia parado. Tudo estava parado. Menos ele.
Como se o mundo fosse irreal demais para contê-lo o corpo de Fernandinho é puxado para cima, para fora do gurgel. Seu corpo atravessa a chaparia do carro como se não fosse nada. De início Fernandinho ficou maravilhado, achava que estava presenciando um milagre.
Seu jubilo não demora a passar. Não demora a ser substituído por outro sentimento. Medo.
Deitado em algo de superfície lisa e gelada, Fernandinho estava preso. A sua frente criaturas diferentes. Seres com a pele de um tom cinza claro, quase branco. Seres com longos pescoços, com cabeças pequenas e grandes olhos negros.
Começou o exame, essa foi a pior parte. Os dedos dos alienígenas invadiam o interior do seu corpo, causando muita dor. Apesar de invasivo o exame não provocava cortes, não tirava sangue.
Fernandinho só reaparece horas depois, bem distante do seu gurgel, bem distante do local da estrada onde havia sido abduzido.
Fernandinho nunca mais foi o mesmo.
O homem bem humorado que via tudo com leveza pareceu ter morrido. Em seu lugar surgiu um homem ranzinza, cabeça quente. O nome Fernandinho não mais foi aceito. Agora ele só aceitava ser chamado de senhor Mignola.
Dois anos após a abdução sua esposa dá a luz. Na maternidade o senhor Mignola assistiu o seu bebê dormindo no berçário. Novamente o mundo para. As enfermeiras ficaram estáticas, assim como os pacientes e todo o resto. Os únicos que pareciam imunes ao congelamento do tempo eram o senhor Mignola e seu filho recém-nascido.
– Marcos!
Dessa vez não foi o senhor Mignola que foi levado. Impotente ele vê seu bebê sendo puxado por uma força invisível. O bebê atravessa o teto e desaparece por algum tempo. Pouco tempo. Ninguém, a não ser o próprio senhor Mignola, notou que ele havia se ausentado por um período.
Assim como o senhor Mignola, o pequeno Marcos não voltou o mesmo.
Pior.
Não foi o mesmo Marcos que havia voltado.
****
Hoje.
Tudo caminhava de mal a pior. A medida que Marcos ouvia a história contada por sua mãe mais o nó no estômago se acentuava.
– Seu pai dizia que os etês haviam trocado o filho dele. Durante alguns meses foi um inferno, mas graças a Deus ele tirou essas bobagens da cabeça.
– E se ele estivesse certo?!
A senhora Mignola olhou para seu filho sem falar nada, depois de quase um minuto ela quebra o silêncio com uma risada gostosa. – Você não parece um alienígena.
Marcos também acharia graça da hipótese, se não fosse a conversa com o psicólogo momentos antes.
A mãe deixa a casa achando que fez um favor ao filho, mas ao fim da conversa Marcos ficou ainda pior do que estava.
Impressionado, ele vai até o espelho do banheiro encarar seu reflexo. Estava procurando uma anormalidade, qualquer coisa que denunciasse uma possível origem extraterrestre. Após quase cinco minutos nada.
Marcos pega o telefone e liga para alguém que ele considerava ser seu porto seguro.
Seu porto seguro desliga em sua cara. Teimoso, ele tenta novamente.
– Sério, preciso conversar com você. Estou passando por uma barra… Não dá mais! Tenho que… É sério. Não ligaria para você se não fosse.
Era quase madrugada, mesmo assim Marcos foi passar na casa do seu porto seguro.
Ela abre a porta, o recebendo com uma cara fechada.
– Eu devia deixar você se foder depois daquela última.
Marcos já era de casa, sem pedir licença ele senta no sofá da sala.
– Obrigado, Soraia, estou precisando muito da sua ajuda.
Continua…