por Alan Cosme
Marcos Mignola estava deitado no divã enquanto conversava com seu psicólogo. O doutor ouvia as palavras de seu paciente fazendo um esforço tremendo para não cair na gargalhada. Marcos ficou incomodado ao não entender qual era o motivo da graça.
– O remédio funcionou, não foi? – Perguntou o psicologo pondo a mão na boca para conter o riso.
– Funcionou. É incrível. Durante a alucinação basta tomar a Esperiflina e pronto! A alucinação desaparece!
– BWAHAHAHAHAHA!
Marcos de início se sentiu envergonhado, como ocorre quando uma pessoa tem a noção que falou uma bobagem que se tornou alvo de chacota. Depois a vergonha deu lugar a indignação. – Que desgraça de profissional é você? Estou aqui abrindo meu coração e…
– Não estou achando graça de você, mas da situação. Você sabe do que é feito essa tal de Esperiflina?
– Não.
– Nem leu a bula, certo? Esse “remédio milagroso” é usado em experiências para ver até onde vai o efeito placebo. É feito de açúcar e nada mais.
Marcos demorou um pouco para perceber que seu psicologo o fez passar por bobo. – E toda aquela pressão que você fez de que o remédio era proibido e que eu não deveria contar a ninguém?!
– Não resisti. Gosto de ser dramático.
– Você me manipulou!
– Uma criança perdida na floresta e que passa a ser guiada por uma luz que lhe mostra o caminho de volta para casa também está sendo manipulada. Isso não quer dizer que está sendo prejudicada. Essa brincadeira me mostrou uma coisa: quando você foi tratado no Santa Efigênia você foi diagnosticado como esquizofrênico. Bem, nesse momento estou com vontade de dar um murro no “profissional” que fez esse diagnostico. Se fosse esse o caso o placebo nunca daria resultado. O cérebro do esquizo reage as suas alucinações da mesma maneira que uma pessoa saudável reage a elementos do mundo real. Inclusive sentindo o toque de suas ilusões. Você não vive em uma realidade só sua, só acha que vê gente morta. Sem falar que nunca teve problema de perda de memória.
De todo aquele discurso o que mais irritou Marcos foi a menção do nome Santa Efigênia, o nome do manicômio a qual ele passou três meses internado. De longe a época mais complicada da sua vida.
– Você está sugerindo que meu problema é apenas frescura?
– Não. Essa é apenas uma das hipóteses.
***
Dez anos atrás.
Marcos Mignola estava saindo da adolescência, tinha dezoito anos. Seu braço começava a ser pintado, dois meses antes ele fez sua primeira tatuagem. O desenho de um sol com um sorriso macabro no ombro direito.
Histórias de terror tem cenários recorrentes. Mansões antigas e isoladas, cemitérios, orfanatos, hospitais, manicômios… Essas histórias se passam em lugares que a maioria das pessoas não gostariam de visitar. Naquela época de sua vida Marcos entendeu o porquê de manicômios serem considerados lugares ótimos para enredos de terror.
Na realidade os pavores de um manicômio eram bem maiores do que na ficção, principalmente se tratando de um público. A qualidade péssima de atendimento, as condições precárias, a privação da liberdade… Tudo isso era mais aterrador do que qualquer assombração.
Marcos estava sentado em um banco do pátio, seu olhar era vago e sua cabeça não conseguia raciocinar direito. A medicação estava deixando seu cérebro com um nível de processamento muito lento. Próximo a ele os outros pacientes “curtiam” suas loucuras. Dois deles começaram a brigar entre si enquanto um outro arriou as calças e começou a urinar no chão, sem se incomodar de estar a vista de todos.
O lugar era um inferno. A privada do banheiro vivia entupida e o papel higiênico do lugar mais parecia lixa. Os funcionários trabalhavam de má vontade. A comida tinha um gosto estranho. O Santa Efigênia estava longe de ser uma instituição modelo.
Em sua contemplação letárgica Marcos viu um grupo de jovens vestidos de branco que eram guiados por um dos funcionários da instituição. Eles eram estudantes de medicina, psicologia e áreas afins. Ao todo eram nove, homens e mulheres, entre dezessete e trinta anos. Uma das jovens estudantes chamou a atenção de Marcos. Não por ela ser bonita, e era bastante, mas sim por possuir algo familiar. – Será que já a vi antes?
A visita de estudantes era algo comum. Geralmente eles visitavam a ala masculina, muito raramente a feminina. Ao contrário do que possa parecer, as internas tendiam a ser muito mais agressivas e perigosas.
A garota familiar se aproximou de Marcos, sentando ao seu lado no banco. Isso o pegou de surpresa. – Lembra de mim? – Ela perguntou.
Marcos forçou a memória, mas não conseguiu identificar de onde já a tinha visto antes.
– Sou Lorelei, lembra? Filha de Riquelme. – A ficha finalmente caiu, aquela garota era sua prima, filha de um dos irmãos do seu pai.
– Nossa! Mas já faz tempo! Sinto muito por a gente ter se reencontrado assim.
– Não sinta. Todos tem seus problemas, estamos aqui para resolver. – Bonita e compreensiva. O que mais Marcos poderia desejar? – Como você foi parar aqui?
– Promete que não vai ficar assustada?
– Já vi muita coisa nessa vida, duvido que você possa me surpreender. – Lorelei tinha dezenove anos, mas seu físico era mais próximo ao de uma garota de dezesseis. Era difícil imaginar uma pessoa com um rosto tão pueril como experiente, seja lá no que fosse.
– Espanquei um cara pensando que ele era um lobisomem. – Marcos fez aquela confissão sentindo um pouco de vergonha. Lorelei por outro lado não ficou chocada. Achou até graça. – Você deve me achar loucaço certo? Um caso perdido.
– Loucura e sanidade são apenas convenções. Os homens que queimavam bruxas na idade média eram considerados saudáveis no seu tempo, hoje não seriam, ao menos pela maioria.
Marcos arregalou os olhos, não esperava por essa opinião vinda de alguém que estudava a loucura dos outros. – Só não diga isso aos meus professores. – Marcos riu com o último comentário. Cortando o clima dramático e pesaroso da conversa por algo mais leve.
– Ainda moro na mesma casa. Sei lá, quando receber sua alta você bem que podia me fazer uma visita.
Ao ouvir aquela simples frase o coração de Marcos começou a bater mais rápido e ele passou a suar frio. Estava mais assustado do que na presença de qualquer fantasma.
– C-claro.
– Que ótimo! – O guia da turma gritou pelo nome de Lorelei, ela tinha que ir. Antes de deixar seu primo ela lhe deixou de presente um conselho. – Marcos, se você quer sair daqui logo comece a falar o que as pessoas querem ouvir. Esqueça, ao menos por enquanto, esse papo de fantasma, clarividência ou qualquer coisa levemente sobrenatural. Você me promete que vai fazer isso?
– Sim. Obrigado por tudo.
***
Marcos recebeu alta faz duas semanas, como arranjar tempo livre não era problema ele podia ter feito aquela visita muito antes. Marcos estava nervoso, estava protelando aquele encontro o máximo que pôde. Até que enfim resolve dar um basta, tomar coragem e visitar aquela garota que em apenas uma conversa mexeu tanto com ele.
A casa era amarela e bem simples, não mudou nada desde a última vez que Marcos a viu, quando era apenas uma criança que começava a dar problemas para o seu pai. Diante da porta ele precisou respirar fundo antes de apertar a campainha.
– Oi! – Lorelei o recebeu com um grande sorriso no rosto. Marcos não sabia se aquela impressão que tinha era apenas resultado do seu desejo ou se refletia algo real. O garoto tinha a impressão que aquele sorriso não era apenas uma cordialidade social. Será que representava algum interesse?
Marcos abraçou Lorelei e os dois trocaram beijos na bochecha, um gesto comum que não era nada sensual e muito menos erótico, mas que nas condições de Marcos (baixo autoestima, desiludido, triste) já representava muito.
Os dois conversaram trivialidades. Lorelei falou sobre sua faculdade, Marcos falou de sua conclusão do ensino médio. Depois começaram a conversar sobre seriados, filmes, os desenhos que assistiam na infância, a vida de alguns parentes, livros, futebol… O assunto não importava. O que importava era a conversa em si. O que importava era um ouvir a voz do outro e o trocar de olhares.
A conversa só mudou para um assunto que realmente valia a pena ser discutido quando Lorelei veio com a proposta. – Marcos, quero que você conheça alguém.
Esse alguém estava em um dos dois quartos da casa. O velho era tão silencioso que Marcos pensou que Lorelei estava sozinha em casa. Em uma cadeira de rodas, com um olhar aéreo e um semblante incrivelmente abatido o homem era a imagem do que ninguém queria ser quando chegasse ao fim de sua vida.
– Fale baixo, para não assustar ele. – Disse Lorelei sussurrando. – Meu avô é cego e quase não ouve. – Deficiências são terríveis, piores ainda quando vem combinadas. Algo não muito comum, mas que acontece.
Lorelei se aproximou do idoso e alisou seu rosto. O velho sorriu, reconhecia bem seu toque. Lorelei pega a mão direita do velho e faz com que ele segure seu queixo. Como era cego e quase surdo a melhor forma que o idoso tinha de “ouvir” era sentindo a movimentação da mandíbula do interlocutor.
– Vovô, esse é o garoto que eu havia falado. Meu primo Marcos. Lembra dele?
Aquele homem também era avô de Marcos, apesar do garoto não ter se tocado nisso na hora. Ele era o pai do pai de Marcos e do pai de Lorelei. Apesar disso Marcos nunca tinha o visto antes, ou ouvido falar sobre ele. Mais tarde, ao voltar para casa, Marcos irá repensar sobre sua família e chegar a uma conclusão incomoda. – Bosta, parece que ninguém se gosta. – Perdido em sua lamentação Marcos não se dava conta que praticamente toda família é assim.
Marcos se aproximou para que o idoso pudesse “vê-lo” através de seu tato. O toque do idoso era bem úmido, pois ele soava muito nas mãos. Isso deixou Marcos com um pouco de nojo que ficou evidente em seu rosto enquanto estava sendo examinado. Lorelei além de ter percebido isso achou muita graça, dando um sorriso discreto.
– Esse é o menino que fala com fantasmas? Pensei que ele fosse mais velho. Tem cara de garoto. – Como o idoso não conseguia ouvir bem a própria voz ele falava quase gritando.
– Sim, vô. É ele. Você queria tanto falar com o garoto. Pois bem, ele é todo ouvidos.
– Garoto, você não é o primeiro e nem o único especial em nossa família.
– O que está falando?
O vovô não ouviu a pergunta. Lorelei pegou a mão do velho e a pôs no queixo de Marcos, isso o deixou meio desconfortável. O toque do idoso ainda lhe causava um pouco de repulsa. – Pode falar agora.
– Como assim? Eu sempre achei que era o único estranho da família. A ovelha negra.
– “Estranho”?! Você é especial, nunca deixe que te convençam do contrário. Você é igual a sua tataravó, a seu tio-avô, a sua prima.
Marcos se sentiu o super-herói. Alimentava seu ego essa imagem de fazer parte de um seleto grupo de pessoas agraciados com dons especiais. Ele achou tão interessante essa citação de parentes que compartilhavam com ele um dom que ficou cego. O velho estava lhe dando uma baita revelação que simplesmente passou despercebida. Passou despercebida por vinte segundos até finalmente a ficha cair.
– “Sua prima”?
***
Hoje.
Era noite, Marcos Mignola estava no cemitério, descansando sentado em uma lapide. Para muitos a atitude do vidente pode parecer macabra, mas isso porque essas pessoas tem um forte tabu em relação a morte. Marcos sempre enxergou o fim da vida com naturalidade. A convivência com almas falecidas o fez ser assim. O maior causador do medo é a falta de conhecimento. O famoso medo do desconhecido. Marcos conhecia muito bem a morte. Não tinha como ele ter medo dela.
O cemitério costuma ser um ambiente silencioso, isso para a maioria das pessoas, não para Marcos. Naquele lugar ele ouvia muito, via muito. Se não tivesse cuidado seus ouvidos seriam invadidos por uma barulheira mais incomoda do que festa de carnaval.
Aquele era o cenário perfeito para ser realizado um teste. Seu psicologo lhe disse que suas “alucinações” vinham e iam de acordo com sua vontade. Era o momento de por essa teoria a prova.
Marcos fechou os olhos e se concentrou. Tentou abrir a sua mente e seu coração para qualquer coisa que estivesse a sua volta. O resultado não foi muito bom.
O antes tranquilo cemitério de repente pareceu a Marcos lotado, muitas vozes clamavam por ajuda e orientação. Ao abrir os olhos o vidente contemplou uma multidão que ocupava cada centímetro disponível de solo naquele espaço.
Marcos não conseguia entender nada, pois todos falavam ao mesmo tempo. – Chega!
Enfim, a paz. Respondendo ao seu desejo todos os fantasmas sumiram. Não que eles tivessem desaparecido ou deixado o lugar, ainda estavam ali. A diferença era que o vidente bloqueou os seus sentidos, impedindo que eles captassem a presença dos desencarnados.
Marcos gostou da experiência, começou a tentar de novo. Dessa vez, no entanto, ele não abriu tanto assim sua mente. Permitiu o contato com apenas alguns poucos. Cinco fantasmas ficaram visíveis aos seus olhos.
– Hehe. – Marcos sorri, pois teve a ciência de que estava ficando bom naquilo. Seu dom, ou sua loucura dizem alguns, vinha com botão de On – Off.
Marcos ainda não estava satisfeito. Resolveu testar ainda mais os seus sentidos. Novamente ele abriu a mente e o coração. Abertura total. Se expôs ainda mais do que tinha se exposto antes. O acumulo de fantasmas e o barulho que faziam estava muito além do insuportável, mas o vidente persistiu. Continuou ampliando sua sensibilidade ao sobrenatural até chegar ao que acreditava ser o ponto máximo. Eis que o inesperado acontece.
O cemitério foi deixado para trás, Marcos não estava mais no plano terreno. Ou ao menos assim parecia. O céu noturno estrelado deu lugar a um céu vermelho e feio. As árvores frondosas ficaram secas e seus galhos retorcidos. As lapides com anjos e temática cristã deram lugar a lapides tortas com figuras monstruosas e símbolos estranhos.
Marcos não tinha medo da morte, pois a conhecia bem. Aquele lugar, porém, a ele era desconhecido. Ele estava apavorado.
Ao longe, o vidente viu algo que para o seu pavor estava se aproximando cada vez mais rápido. O ser era quadrupede, de início não dava para ver direito o que era devido a sua distância. Só com a sua proximidade é que o monstro ganhou forma. Não parecia com nada que Marcos já tivesse visto antes. Seu cérebro travou só com a tentativa de interpretar o que seria aquela coisa.
Com o medo veio o choque. Para tirá-lo daquela situação seu subconsciente o força a perder os sentidos. Marcos desmaia. Para sua sorte aquele mundo vermelho foi mandado embora. O vidente passou o resto da noite desacordado em uma lapide de cemitério terrena.
***
No dia posterior Marcos não foi trabalhar, apesar de ser dia de semana, aquilo era atípico. Ele estava um pouco nervoso, tinha receio de utilizar seu dom. A memória do mundo vermelho ainda estava nítida em sua mente. Estava impressionado como uma criança que fica amedrontada após assistir a um filme de terror.
Ele tinha muitas duvidas, mas ninguém a recorrer.
Pensando bem, Marcos até conhecia alguém que podia ajudá-lo com aquelas questões. O problema era que ele não queria rever aquela pessoa. O final da relação dos dois não foi muito amigável.
Vencendo o seu orgulho Marcos pega seu telefone e faz a ligação.
– Oi. Sou eu. – A pessoa do outro lado da linha desligou em sua cara. Teimoso, ele liga uma segunda vez.
– Espera! Não liguei para falar sobre nós! Estou com um problema que sei que só você pode resolver. Podemos nos ver?
Marcos foi se encontrar com ela naquela tarde. A moça não aceitou que ele fizesse uma visita social, tipo encontrá-la no shopping ou muito menos em sua casa. Ela só aceitou conversar com Marcos se ele fosse vê-la na condição de paciente. Ou seja, o vidente se viu obrigado a coçar o bolso.
Na sala de espera ele aguardou pacientemente por sua vez, após duas pessoas serem liberadas o seu nome foi chamado. Assim que Marcos entra ele se impressiona. Ela estava mais bonita do que antes. Para a maioria das pessoas ela estava usando uma roupa normal, tipica de qualquer psicologo. Mas Marcos podia ver além das aparências, além das ilusões. Ela na verdade usava um vestido preto cheio de babados vermelhos. Acima dos seios usava um enfeite que simbolizava uma enorme flor vermelha.
– Oi, Lorelei. Há quanto tempo.
Continua…