Por Andrey Lehnemann
Na semana passada, José Pepe Mujica discursou na ONU. E isso, em muitos casos, seria o bastante para classificar um texto político em um desses encontros sócio-mundiais: algo sem inspiração, superficial, sem coragem, pragmático, apenas uma chamada dizendo que foi feito um discurso em tal local. Na maioria dos casos, o necessário acaba sendo o cumprimento à risca de um lead jornalístico: o que, onde, quando e por que. As matérias tendem a serem tão coniventes com o pragmatismo quanto os textos que são frutos de análise. Criou-se um mundo em que apenas o cronista ou colunista possui algum tipo de voz. Muitos jornais seguem essa cartilha.
Mas estou fugindo do assunto.
O que quero dizer é que, bem, Pepe Mujica discursou na ONU durante a 68ª Assembleia Geral, ocorrida em Nova York, no dia 24 de setembro. E isso me fez lembrar uma velha questão: qual é a historicidade de um discurso? Como consideramos algo instantaneamente histórico, algo atemporal? Acredito que isso vem de uma miscigenação de vários fatores: quem fez, por que fez e em qual período fez. Aquela velha questãozinha insistente chamada período histórico. Martin Luther King, por exemplo, estava inserido em um. Numa época – não tão longínqua assim – em que a segregação racial ainda era uma realidade, o pastor simbolizou belíssima e simbolicamente o momento em que o mundo vivia em seu memorável discurso. O famoso texto de Churchill proferido em 1940 retratava uma época de guerra – sangue, suor e lágrimas eram pré-requisitos de um líder. E será que o próprio imaginaria que, apesar de ser um exímio orador e articulador, seus discursos seriam frutos de análises nos anos que viriam? Talvez nem Hitler soubesse a importância histórica de seu discurso de posse e arrisco que nem Gandhi sabia onde estava se metendo.
É um assunto interessante: o eco de nossas palavras no espaço-tempo. Como sabemos que nossas falas ou escritos serão estudados em escolas futuramente ou que, numa perspectiva mais ingênua, seremos homens que fazem a história acontecer. Nesse sentido, Mujica não quer ser esse homem – está lá, em seu discurso. “Obviamente, não somos tão iludidos, nada disso acontecerá; nem coisas parecidas”. O objetivo é indicar e refletir nossos próprios erros como ser humanos através da história. E clamar por uma mudança de rumo. Mujica busca um comprometimento social significativo, científico e, além de tudo, humano. Não político. Algo que diz muito sobre o que sua figura se tornou em esfera mundial. Não subestimem o pequeno senhor que vem do sul, lá daquelas planícies suaves e temperadas, não. Classificar o discurso como um ataque direto aos Estados Unidos apenas serve para assinalar algo que o próprio texto do uruguaio aponta: não conseguimos pensar puramente no coletivo, que o pensamento globalizado é uma farsa e que cada um pensa em seus próprios esbanjamentos, nada mais.
O discurso do agricultor e presidente uruguaio não difere muito daquele que Martin Luther King ousou pronunciar um dia. Está apenas atualizado. Se antes a luta era contra a segregação racial, agora passa a ser contra a segregação social. O sonho mudou. Talvez Mujica também não tenha ideia da importância histórica de seu discurso, mas isso a própria história se encarregará de assegurar.