De Graciliano Ramos até Nelson Pereira dos Santos: Vidas Secas da Literatura ao Cinema

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Como o cinema tentou expressar contos com imagens, primeiramente sem som e mais tarde explodindo em sonoridade? Antes do cinema a literatura permitia ao escritor gerar um texto dotado de detalhes para mais tarde tais detalhes serem absorvidos pelo leitor, ajudando-o na criação mental do desenrolar da trama. O cinema, por sua vez, condensou nas telas a visão do diretor e sua equipe, até certo ponto de forma manipuladora, talvez. Na narração fílmica, os espaços já foram concebidos, os corpos já apresentam uma forma concreta, entardecer e noite já estão prontos, sem que a liberdade imaginativa do leitor pudesse arquitetá-la. “As câmeras filmaram o que o diretor do filme quis, o projetor do cinema joga-as na tela, para você seguir o olhar do filme como se fosse o seu.” (ALMEIDA, 1999, p. 25)

baleia_vidas_secas[1]De certo modo a literatura regionalista apresentou ao brasileiro um Brasil totalmente desconhecido. Os romances que surgiram na década de 1930 ofereceram aos leitores um mundo distanciado da metrópole, que mergulhava em cenários rurais e rudimentares, cenários que marcaram o início da história de nosso país. Alguns livros de autores dessa década, consagrados em nossa literatura, inspiraram as gerações vindouras e mais precisamente aos intelectuais da década de 1960, chegando até as telas de cinema.

O Cinema Novo da década de 60 foi buscar originalidade em sua temática nas obras literais da década de 30, o romance Vidas Secas (1938) de Graciliano Ramos nos interessa aqui como norteador de nossa breve análise, partindo do livro até chegar às telas. Segundo José Carlos Avellar:

O que Vidas secas filme trouxe do Vidas Secas livro não foi só o que a obra devidas_secas Graciliano provocou no imaginário do leitor Nelson, mas principalmente o impulso gerador da obra, sua idéia, seu ponto de partida tal como intuído por Nelson, a imagem (mental, não necessariamente visual) que gerou o livro, o que na obra existia antes da obra existir – sua vontade de ser, o que ela era antes de se fazer por intermédio do autor. (AVELLAR, 2007, p. 45)

O cineasta paulistano Nelson Pereira dos Santos foi buscar inicialmente no Rio de Janeiro um cenário que favorecesse a sua busca por uma paisagem que figurasse como reveladora do Brasil, o cotidiano carioca que evidenciamos em Rio 40 Graus (1955) e Rio Zona Norte (1957), dois de seus primeiros filmes, nos permite perceber a forte associação do cineasta com a estética neo-realista italiana, e como a câmera de filmagem opera quase que de forma documental entre os diferentes personagens que brotam das vielas por entre os morros, em rodas de samba e feiras populares, a zona norte e a zona sul em constante conflito. Já em Vidas Secas, somos transportados para um novo cenário, extremamente distante das praias e belezas do Rio, numa terra calcinada vemos andarilhos mortificados pelo sol.

O cineasta nutriu seu imaginário com a obra do Mestre Graça a fim de gerar um roteiro que fosse válido para o cinema, a falta de diálogos existente na obra revelou uma característica do escritor alagoano, a de escrever como um roteirista. Em Rio 40 Graus de 1955, que é o seu primeiro longa-metragem, é possível perceber a forte ligação com a obra Capitães de Areia (1937) de Jorge Amado, os panoramas da cidade do Rio de Janeiro, que aos poucos vão mostrando os moradores em seu cotidiano, é extremamente semelhante à trama desenvolvida pelo literato baiano que apresenta a cidade de Salvador da década de 30, onde um grupo de crianças abandonadas vai buscar um tipo de liberdade que emana das ruas. Em meio à corrupção e forte repressão da polícia assistimos o amadurecimento dos jovens em um cenário desafiador e extremo.

O cinema foi buscar inspiração na literatura, o cineasta escreve com imagens, mas antes de se criar imagens em movimento é necessário escrevê-las. A definição como cinema, se dá depois do tramite realizado entre o roteiro escrito e a montagem fílmica, pós-definida, o cineasta constrói sua história identicamente ao escritor romancista. Ainda segundo Avellar:  “o que leva o cinema à literatura é uma quase certeza de que é impossível apanhar aquilo que está no livro e colocá-lo, de forma literária, no filme” (AVELLAR apud JOHNSON, 2003, p. 41). Porque o filme inaugura uma nova leitura, mesmo tendo sido baseada numa obra literal, não é a fidedignidade com o livro que vai encantar, ou que deve ser preservada, o que se busca é tão somente gerar uma nova visão baseada no conto.

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Graciliano Ramos

No romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, temos mais uma vez esta aproximação com o horror da falta de recursos de uma terra devastada pela seca. Tendo crescido no interior de Alagoas, a ligação com tal realidade se fazia presente em seu cotidiano, as peculiaridades deste cotidiano são ressaltadas em seus escritos. Caatinga e retirantes são símbolos nestes contos, eles traduzem o espírito de uma época, ao passo que viriam a se transformar em expoentes das modificações políticas na década de 1960, os leitores esquerdistas apoiavam seus discursos com base nas reflexões feitas em livros como estes.

A incerteza do amanhã prossegue expulsando o sertanejo, o enfatizar desse aspecto torna-se claro com a discrição das paisagens em que as personagens são inseridas. Em Vidas Secas, a terra rachada onde antes era o leito de um rio é descrita por Graciliano, assim como os pássaros negros que passeiam pelos galhos das árvores secas, como que espreitando os visitantes que tramitam pelo deserto. “Estavam no pátio de uma fazenda sem vida. O curral deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e também deserto, a casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente o gado se finara e os moradores tinham fugido.” (RAMOS, 2012, p. 12). Esse tipo de discrição dramática que é criada pelo autor traçou um tipo de perfil do sertanejo-nordestino na década de 30, que vigorou no imaginário do brasileiro.

O encontro entre as linguagens literal e cinematográfica conciliaram um equilíbrio que favoreceu o surgimento de diferentes obras no cinema de extrema importância. Os livros que tratavam de mostrar aspectos distintos de um Brasil desconhecido, alimentando o imaginário dos cineastas da primeira fase do Cinema Novo. O sertão, que foi tão ricamente detalhado em escritos por autores que vivenciaram sua mais íntima face, imperou durante a primeira fase do movimento. O filme Vidas Secas foi consagrado em seu tempo, ganhou status e relevância até os dias de hoje, tendo tido o poder de transfigurar os escritos para a tela poeticamente. Os caminhos traçados nesta empreitada são pouco conhecidos até hoje.

Assista ao filme completo:

REFERENCIAS

ALMEIDA, Milton José de. Cinema arte da memória. Campinas, SP: Autores Associados, 1999.

AVELLAR, José Carlos. O chão da Palavra: cinema e literatura no Brasil. Rio de Janeiro: ROCCO, 2007.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 117º Ed. Rio de Janeiro: Record, 2012.

FICHA TÉCNICA DO FILME ANALISADO

Título original: Vidas Secas

Gênero: Drama

Duração: 103 min.

Lançamento (Brasil): 1963

Distribuição: Sino Filmes, Rio filme e Sagres Vídeo

Direção: Nélson Pereira dos Santos

Roteiro: Nelson Pereira dos Santos

Produção: Luis Carlos Barreto, Herbert Richers Nelson Pereira dos Santos e Danilo Trelles

Música: Leonardo Alencar

Fotografia: Luis Carlos Barreto e José Rosa

Desenho de produção: João Duarte

Edição: Nello Melli e Rafael Justo Valverde

Elenco: Átila Iório (Fabiano), Genivaldo Lima, Gilvan Lima, Orlando Macedo (Soldado Amarelo), Maria Ribeiro (Sinhá Vitória), Jofre Soares (Fazendeiro), Pedro Santos, Maria Rosa, José Leite, Antônio Soares, Clóvis Ramos, Gilvan Leite, Inácio Costa, Oscar Souza, Vanutério Maia, Arnaldo Chagas, Gileno Sampaio, Manoel Ordônio, Moacir Costa, Walter Monteiro.