“Catarina não tem coração, mas uma pedra no lugar.” – Essa é uma das frases memoráveis que Dona Mimosa, a governanta da casa do banqueiro Batista, recitou quando a filha mais velha do banqueiro, Catarina, A Fera, nega veemente sua vontade de se casar.
A novela O Cravo e a Rosa reprisada pela segunda vez em Vale a Pena Ver de Novo pela Rede Globo enche o começo da tarde com poesia, humor e dramas delicados. Escrita por Walcyr Carrasco, o enredo traz referências literárias, além de se inspirada em outras novelas como A Indomável (1965) e O Machão (1974), ambas tendo como base a peça teatral A Megera Domada de Willian Shakespeare.
Percebemos que Walcyr bebe de uma fonte literária clássica para compor seu drama. Se estudarmos com calma e lermos certos artigos, constatamos que Walcyr apenas faz uma releitura de A Indomável, escrita por Ivani Ribeiro, autora de telenovelas brasileiras, ela também escreveu O Machão, cujo enredo não diferencia muito do primeiro.
Em A Megera Domada de Shakespeare a história se passa num pequeno núcleo de personagens, Batista estabelece uma condição para que sua filha mais nova, Bianca, pudesse casar com um jovem forasteiro, Lucentio, que chega à cidade de Pádua. Katherine, a filha mais velha, uma mulher insubmissa, deveria casar-se primeiro e torna-se uma esposa obediente, o tal casamento acontece à força, e seu marido Petrucchio, um nobre falido, impõe uma série de privações da esposa afim de “amansá-la”, o que acontece no final da trama. Entrementes, Bianca e Lucentio se casam escondidos, mas Batista acaba aceitando quando percebe que a filha mais velha tornou-se ainda mais doce do que a nova.
Essa é a premissa que inspirou Ivani Ribeiro e posteriormente Walcyr Carrasco. A Megera Domada foi colhida através de uma tradição oral, Shakespeare apenas a passou para o papel ao seu modo particular, então, podemos crer que esta história não pertence somente a um autor.
Existem pequenas diferenças entre as sinopses A Indomável, O Machão e O Cravo e a Rosa. Nas novelas de Ivani Ribeiro, Batista já fora um rico fazendeiro de café, como também um banqueiro. Julião Petruchio, um fazendeiro rude e falido, que na iminência de perder suas terras, tem a missão de conquistar Catarina, uma jovem feminista que abomina a ideia de casamento e despreza todos seus pretendentes. Dinorá aparecerá na trama aproveitando da situação para aproximar Petruchio, sobrinho do seu marido Cornélio, de Catarina, a fim de casar seu irmão, Heitor, com a filha mais nova de Batista, Bianca.
Em O Cravo e a Rosa, Walcyr também investiu na mesma estrutura das novelas de Ivani, além disso, não se esqueceu de outra referência literária da dramaturga – Cyrano de Bergerac, uma peça de teatro, escrita por Edmond Rostand, em 1897. Cyrano é apenas um herói romântico. Ele é apaixonado por sua prima, Roxane, que gosta de ser cortejada com palavras bonitas. Mas Cyrano é um homem muito feio, acovardado ajuda o jovem Cristiano, que também ama Roxane, a cortejá-la com palavras doces e líricas. Cyrano era um poeta, tinha o dom da palavra, ao contrário de Cristiano. E a prima passa a amar palavras do primo, como se amasse o próprio locutor. Porém, Cristiano é convocado a uma guerra e morre. Roxane se tranca num convento. Certo dia, Cyrano é mortalmente ferido e vai de encontro a sua amada, contando seus sentimentos por ela, morrendo em seguida. O final do livro é trágico, mas existem passagens cômicas e belas, e sempre imagino Cyrano como Gerard Depardieu, que interpretou o personagem para o cinema.
A premissa da peça de Edmond Rostand não lhe é familiar quando assiste O Cravo e a Rosa? Walcyr Carrasco soube transferir com sucesso o enredo de Cyrano de Bergerac para seu drama. Podemos ver o feioso Cyrano personificado na figura do frágio professor Edmundo, Cristiano no sedutor esportista Heitor e Roxane na romântica Bianca. O triângulo amoroso vai crescendo durante a trama, e o espectador de ver torcendo para que a filha mais nova do banqueiro Batista encontre o amor verdadeiro que tanto deseja. Antes que isso se concretize, o professor de vê apaixonado pela aluna, mas incapaz de confessar seus sentimentos, renuncia seu amor ao ajudar Heitor, seu rival. Edmundo é o Cyrano do século XX, querendo ver sua amada feliz, cede as súplicas de seu inimigo para reconquistar Bianca, e aí que o personagem deixar aflorar todo seu lirismo em cartas de amor. A filha caçula do banqueiro ao receber as cartas de Edmundo assinadas por Heitor, crer que finalmente encontra seu amor verdadeiro, mas com o andar dos capítulos, ainda está longe da mocinha descobri a identidade do verdadeiro autor. E não se preocupem, o final de Bianca não é nada trágico como a ideia original do triângulo amoroso. Continuem acompanhando a novela e saberão.
Creio que esta foi uma das novelas mais bonitas gravadas pela Globo, tanto pela essência da história, quanto pelo aproveitamento dos atores, nunca se foi usado tão bem o talento e biótipo de cada um para compor as personagens. Toda uma gama de fatores contribuiu para o sucesso de O Cravo e a Rosa. A primeira vez que assisti a novela foi na sua primeira reapresentação em 2003 e desde então torcia para que reprisassem, o que aconteceu dez anos depois.
Para quem gosta dos textos clássicos de Shakespeare e de Edmond Rostand, esta novela é um belo convite para reviver histórias com outros olhos, ou melhor, é uma excelente forma de incentivar a leitura!