Certa vez, estava relendo alguns poemas de Fernando Pessoa. Pra ser mais correto, folheava aleatoriamente a obra completa de Álvaro de Campos, o heterônimo mais intimista dentre aqueles que o poeta português assumia. Em se tratando de livros de poemas, especialmente antologias, sempre gostei de folhear as páginas ao léu, sem preocupações em ler as composições na ordem, esperando pelas surpresas líricas que as próximas páginas podiam me trazer quando corria os dedos por entre as folhas – experiência que, aliás, recomendo. Claro que, para fins de estudo, é válido percorrer as obras do autor em ordem cronológica, percebendo suas diferentes nuanças, as mudanças estilísticas e temáticas, etc. Mas, na ocasião, como apenas me deleitava com a leitura do livro que também me lia, fui pulando por entre páginas, rebelde. Foi então que me debrucei sobre o poema Cruz na Porta da Tabacaria. Assim diz ele:
Cruz na porta da tabacaria!
Quem morreu? O próprio Alves? Dou
Ao diabo o bem-estar que trazia.
Desde ontem a cidade mudou.Quem era? Ora, era quem eu via.
Todos os dias o via. Estou
Agora sem essa monotonia.
Desde ontem a cidade mudou.Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.Meu coração tem pouca alegria,
E isto diz que é morte aquilo onde estou.
Horror fechado da tabacaria!
Desde ontem a cidade mudou.Mas ao menos a ele alguém o via,
Ele era fixo, eu, o que vou,
Se morrer, não falto, e ninguém diria.
Desde ontem a cidade mudou.(Álvaro de Campos)
Ao me deparar com a leitura, um assombro me sobreveio, um daqueles espantos dignos de um dejà vu, seguido da alegria de quem encontra compreensão em um mundo cada vez mais incompreensível.
Em meio a tanta beleza e a um mar de significados e leituras, cinco versos me chamaram a atenção de maneira especial.
[…] “Desde ontem a cidade mudou.
Ele era o dono da tabacaria.
Um ponto de referência de quem sou
Eu passava ali de noite e de dia.
Desde ontem a cidade mudou.” […]
Ao final de cada estrofe o poeta insiste em nos dizer, não sem certa melancolia, que desde ontem a cidade mudou, logo após descobrir que Alves, dono da tabacaria, havia falecido. Um evento aparentemente banal em tempos em que morrer e viver é quase nada. A morte não mais nos assombra com a mesma força de outrora. Ela aparece nos jornais, nas capas de revista, ganha status de pop star e protagoniza os filmes e a vida real. Não mais tememos a morte, mesmo que tenhamos medo de morrer. Um ser que se vai é só mais um ser que se vai e ponto. Pronto. Sem pranto.
Por que, então, o poeta parece tão afetado por uma “simples morte”, pela partida de alguém tão corriqueiro como o dono de um estabelecimento comercial que sequer era seu familiar? Lamentaríamos da mesma forma se o dono da mercearia, da padaria ou a atendente da loja do shopping falecesse? Ficaríamos tão abalados a ponto de escrevermos um poema ou a impessoalidade de tudo mais uma vez nos abraçaria reconfortante e antinatural? Como é percebido no poema Cruz na Porta da Tabacaria, o eu-lírico não enxerga o evento fúnebre como mera ocorrência mundana. Seu interior é abalado drasticamente a tal ponto de todo o mundo à sua volta também se abalar. De repente as coisas pareciam diferentes, o mundo era outro pela simples ausência de Alves, o dono da tabacaria. Um homem que talvez só fosse visto rapidamente, no apressado ritmo do cotidiano, mas que de alguma forma havia se tornado parte integrante e indissolúvel desse mesmo cotidiano; algo assim como um marco, um monumento. Não apenas uma referência do que era o Alves, a tabacaria, a cidade onde a loja existia, mas uma referência do próprio ser do eu-lírico.
[…] “Ele era o dono da tabacaria.Um ponto de referência de quem sou.” […]
No outro também nos definimos. O importante não é aquilo que fazem de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que os outros fizeram de nós, dizia Sartre.
Modificada essa estrutura tão familiar, modifica-se a própria alma e por conseguinte, tudo ao redor. De repente o mundo também não era mais o mesmo com aquela ausência. Uma lacuna fora aberta em um grande maquinário de diversas peças que agora não funcionaria mais da mesma maneira.
Fato semelhante aconteceu comigo, por isso declarei que os versos destacados me chamaram atenção. Desde a minha infância até meados da adolescência, havia no meu bairro uma daquelas vendinhas muito típicas do interior do nordeste que vendem de tudo, desde cachaça caseira a doces, pipocas e picolés. Chamavam-na Vendinha do “Seu” Antolhia, pois esse era o nome do dono, que por sinal, era avó de um dos meus melhores amigos e vizinho. Quando pequenos, antes de irmos à escola, sempre passávamos por lá e ganhávamos algumas guloseimas para o lanche. Era só alegria!
Uns anos depois, a vendinha passou para as mãos do neto de “Seu” Antolhia. Retiraram as cachaças caseiras de catálogo, mas mantiveram as guloseimas e acrescentaram sorvetes caseiros – os tempos eram outros. Quase todas as tardes eu ia pra vendinha; lá, meu amigo e eu comíamos mais do que vendíamos. Nos verões abafados de quentura, devorávamos sorvetes com deleite dobrado, mas com cuidado pra “não acabar com tudo” e dar prejuízo geral. Eram dias bons, aqueles. Tardes e manhãs agradáveis batendo papo, sem maiores preocupações com a vida presente ou futura. Jogos de damas ou de adedonha nos sábados bem cedo, festival de piadas, damas improvisadas e toda sorte de diversões que fazem os jogos online de última geração parecerem estúpidos e tediosos, enquanto escrevo. O melhor talvez fossem as conversas sobre mulheres. Naquele tempo o pudor era mais presente entre nós, em alguma escala, e conversávamos sobre o sexo feminino com aquela típica inexperiência e curiosidade de garotos de 12 ou 13 anos, embora isso não seja tão válido assim de uns tempos pra cá (perceberam que eu falo igual um velho? E eu de fato o sou, por dentro, mas nasci em 93, façam as contas). Foram tempos bons, aqueles. Na vendinha do “Seu” Antolhia construí boas vivências e lembranças da minha infância e juventude. Guardo com carinho e nostalgia aquelas tardes e manhãs de sábado.
Acontece que a vendinha não existe mais. Primeiro foi fechada – acho que o negócio não estava dando tanto retorno assim, mas vá lá… nem comíamos tanto, pensando bem. Depois ficou quase que em ruínas e me doía o coração passar pela vendinha, um lugar de alegrias e brincadeiras irrecuperáveis, e vê-la daquele jeito. Mas, ainda estava feliz por ela continuar lá, de pé, lembrando que tinha feito parte da minha vida. A tristeza logo tomou conta de mim, porém, quando a vendinha foi demolida por completo. Vê-la só escombros foi terrível, o playground das minhas memórias só nas memórias ficariam, de agora em diante. Não demorou para que alguém comprasse o terreno; o novo dono do local abriu uma loja de material de construções em pouco tempo. Eu deveria ter ficado feliz com o progresso, como a maioria de nós, não? Ora, um estabelecimento novo, que certamente impulsionou a economia local, ofereceu praticidade e comodidade é maravilhoso. Agora não era mais preciso andar quadras e quadras pra comprar pregos, parafusos, ripas, caibros, galões de água mineral e canos PVC. Afinal, pregos são mais necessários e vendidos do que doces, dizem.
Mas não, não fiquei nem um pouco contente com a mudança, algo imperceptível e até positivo para muitos. Sobrou apenas a dor compartilhada dos versos de Álvaro de Campos. Senti-me como o poeta incompleto e triste que perdeu seu ponto de referência no mundo, sua tabacaria, a construção que o construiu em distintos aspectos. Isso porque o poeta é um ser sensível, sua alma é afetada pelas minúcias diárias que surtem efeito no macrocosmo de seus universos – ou do próprio universo em si. As platitudes douradas quando param de reluzir implicam em um brilho tênue da alma lírica. Essa alma, cuja sensibilidade sofre abalos sísmicos em sua mais profunda camada geológica, que sofre e se encanta de forma sublime pelas coisas mais banais, que verte sangue e pena com os quais serão escritos poemas. E dores, amores, alegrias e lembranças.
Poetize!