Lendas de Ekahnin – O nascimento (parte 1)

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Jonah estava parado do lado de fora do quarto. Podia ouvir os gemidos de dor e eles o incomodavam. Mudou a lança de uma mão para a outra e trocou o peso do corpo para o pé direito. Escutou mais um grito e bufou impaciente. A ordem fora dada pelo próprio rei e ele não ousava desobedecê-la.

Ninguém poderia entrar no quarto. Só foi permitido ficar ao lado da rainha o próprio rei, e, é claro, Zaphar. A idéia de deixar Zaphar junto com o rei em um quarto fechado incomodava Jonah. Embora não tivesse motivos para isso, já que Zaphar, médico da realeza e irmão do rei, se mostrara totalmente leal e eficiente durante todos aqueles anos. Alguma coisa incomodava Jonah, alguma coisa em Zaphar. Mas ele não poderia desobedecer ao rei com esse pretexto. Além de rei, Rahff era seu tio o que significava que tinha dupla autoridade sobre ele. Se soubesse que cada ato naquele dia fora planejado lenta e calculadamente por Zaphar desde o momento em que soubera que a rainha estava grávida, Jonah teria entrado no quarto e enfiado a lança no peito do médico, ali mesmo com a cabeça entre as pernas da rainha. Mas ele ainda era jovem e com seus dezesseis anos não haviam lhe ensinado a confiar em seus instintos. Ficaria sabendo disso tudo somente anos mais tarde.

Escutou outro grito e pediu aos céus que a criança nascesse logo.

O rei observava de um canto do quarto sua mulher gritar. Ele estava ansioso, claro, mas acima de tudo estava assustado, embora nunca fosse assumir se lhe perguntassem.

Zaphar falava pacientemente com Aghar, lhe encorajando a fazer um esforço que sempre prometia ser o último. A rainha respondia-o xingando com nomes que nem o próprio Rahff conhecia.

Olhou para as mãos do médico vermelhas com o sangue que jorrava de sua esposa. Teve medo de que ela não sobrevivesse, ou pior, de que seu filho, o primogênito morresse. Fechou os olhos e rezou em silêncio. Seu pai havia lhe ensinado que um rei não sente medo e ele acabou descobrindo o contrário de várias formas. Prometeu a si mesmo que ensinaria ao seu filho que um rei tem medo, que é normal ter medo e é isso que nos faz corajosos. Ele poderia sentir medo. Poderia sentir medo até da esposa parindo. Sorriu e a rainha gritou. Ele afastou um passo como se ela tivesse gritado com ele e tratou de manter no rosto uma expressão desolada, embora sua participação no nascimento do filho não tenha sido nada além de prazer.

E então o choro veio. Forte e abençoado. Assim que o ouviu soube que era um menino. Só um menino podia gritar daquele jeito. Viu as pernas da mulher relaxarem e Zaphar aninhar algo em seu braço. Algo um tanto roxo e sujo de sangue. Aproximou-se para ver o filho. Quando estava próximo, tentando adivinhar se teria as feições dele ou da mulher – torcia para que o segundo caso acontecesse – a faca atingiu-lhe o peito.

Zaphar não tinha muito tempo. Sabia disso, mas planejara aquele momento durante meses, então estava tudo bem. O rei tombava perigosamente para trás e o irmão engordara bastante depois que havia casado, sendo que se caísse no chão, poderia chamar uma atenção que não desejava. O puxou pelo cinto preto rendado com fios de ouro e o rei, seu irmão, caiu em cima da esposa, já morto. A faca era recheada com um veneno mortal, o favorito de Zaphar. Ele tinha um nome muito bom também, chamava-se “O terror da Realeza” porque era um veneno muito usado entre estes, com histórias de inveja e ganância. O mesmo motivo de Zaphar.

O menino ainda gritava nos braços do médico e ele estava um pouco assustado com sua força. Não era para aquele garoto ser forte daquele jeito, na verdade, nem era para ter nascido. Enfiou a mão no bolso e tirou pedaços de uma erva verde escura. A amassou entre os dedos, ainda usando a luva de couro para o parto e logo a erva ficou preta. Colocou na boca do bebê que a aceitou de bom grado. A sua primeira e última refeição.

A rainha ainda gemia na cama. Zaphar pegou a faca que matou o rei, depositada no chão ao seu lado e fez um pequeno corte entre as pernas da rainha. Seria o suficiente.

Aghar não conseguia ver muita coisa. Estava tão cansada que era difícil abrir os olhos. Haviam se passado quantas horas desde a primeira contração? Duas, três, dez? Não sabia. Para ela parecia uma semana. Ouviu o choro da criança e tentou sorrir aliviada, mas os músculos em volta da boca estavam cansados de gritar. Pelo choro forte e alto era um menino. Ela queria muito que fosse um menino. Ele demorou muito para vir e ela duvidava que pudesse ter outro. O marido aproximou-se de Zaphar, mas por algum motivo caiu aos seus pés. Ela ficou um pouco assustada. Teria algo de errado com a criança? Ou talvez ele tivesse desmaiado de felicidade. Por que Zaphar estava demorando tanto para mostrá-lo? Queria ver com que intensidade seus olhos verdes brilhariam. Sentiu uma pontada de dor e sabia que não ficaria consciente por muito mais tempo. Tentou chamar o irmão de seu marido, mas não precisou. Ele levantou. Ela reuniu toda a força que lhe restava e ergueu os braços pedindo o tão esperado filho. Zaphar sorriu e virou-lhe as costas.

Assim que tirou os olhos da rainha Zaphar perdeu o sorriso. Colocou no rosto uma expressão desolada, triste e profunda. A criança em seus braços havia parado de chorar. Estava de olhos fechados e perdia o calor. Ainda estava um pouco roxa, o que era natural. Só não seria natural passar para pálida em vez de corada. A enrolou em um lençol já coberto de sangue. Ninguém poderia vê-la. Fazia parte do plano.

Abriu a porta e teve o cuidado de fechá-la às suas costas rapidamente. O imbecil do sobrinho do rei, pálido como cera, veio em sua direção.

— Zaphar, tudo bem? Cadê o rei? Essa é a criança?

Ele tentou manter a expressão de profunda tristeza, mas não conseguiu. Aquele garoto o irritava profundamente.

— É o garoto. Está morto.

A boca de Jonah se abriu lentamente e Zaphar teve de segurar um sorriso ao ver as pernas do garoto terem dificuldades de se manterem.

— Morto? Oh, por Braher. E o rei? Ele está bem?

Zaphar fez uma careta.

— Você acha que ele está bem?

— Não… Claro que não. Eu preciso ajudá-lo.

Antes de Jonah dar o segundo passo em direção a ala real, Zaphar o segurou pelo braço. E ao olhar a expressão desolada no rosto do garoto, a mesma expressão que ele não conseguiu manter, teve muita vontade de matá-lo. De simplesmente enfiar a faca venenosa em sua garganta e vê-lo cair no chão contorcendo-se, a expressão de tristeza sendo substituída por surpresa, horror e medo. Seria maravilhoso, seria muito prazeroso. Quando se deu conta de que começava a ficar excitado demais, desviou os pensamentos. Já havia mortes o bastante por hoje. Podia cuidar do menino mais tarde. Agora podia fazer qualquer coisa. Era rei. Teve de segurar o sorriso mais uma vez.

— Não. Deixe-o. Deixe-o chorar suas tristezas ao lado da mulher. Eles não precisam de mais lágrimas por agora, já têm o suficiente. Se quiser mesmo ajudar, faça o seguinte: avise a todos sobre a tragédia. Peça para mudarem as decorações e as vestimentas. Tudo deve ser negro, como esse dia, o mais negro de Hannah. Vá. Você terá a oportunidade de lamentar mais tarde.

Jonah consentiu vagarosamente e partiu. Zaphar teve a liberdade de finalmente sorrir.

Essa história poderia ser bem diferente se não fosse por Zaphar. Se ele tivesse decidido enterrar a criança, conforme o costume dos Brahcas, para que ela descansasse junto de Braher esta história terminaria agora. Mas Zaphar tinha medo.

Não haveria perguntas sobre o rei ou a rainha. Achariam uma tragédia sem precedentes, mas natural devido às circunstâncias. Mas o garoto… poderia haver questionamentos, fofocas. Estava morto, mas por quê? O menino havia chorado tão forte quando nasceu que Zaphar duvidava que Jonah fosse o único a ouvi-lo. Ele seria rei agora, mas tinha total conhecimento de que nem todos os seus súditos seriam leais. Muitos não gostavam dele. Muitos viam quem ele realmente era. Poderiam chamar um especialista de venenos e desenterrar o corpo da criança. Qualquer especialista ao ver como os dedos dela estavam tortos não pensaria duas vezes em relação à causa da morte. Os dedos tortos eram um triste sintoma que apareceria depois de dois sóis. Com o rei e rainha não seria problema, já que em dois dias estariam enterrados e esquecidos. Zaphar via o povo como um bando de ovelhas que seguiria qualquer um que lhe dessem ordens e que logo esquecia quem deu ordens anteriormente se o novo pastor lhe desse o suficiente para viver.

Mas a criança poderia ser um problema. Havia ovelhas espertas que não esqueciam tão facilmente. E por esse motivo Zaphar seguiu o costume dos Inzis em vez do costume de seu povo.

Andou rapidamente e sorrateiramente como um verme. Passou por corredores pouco acessados e por passagens secretas pouco conhecidas. Saiu nos fundos do castelo com o sol já descendo para seu descanso. O entardecer deixava uma cor de melancolia no cenário. As árvores ao redor da trilha que levava a uma pequena ponte à frente estavam com as folhas amareladas. Zaphar olhou para o céu coberto de nuvens e soube que iria chover. O céu de Hannah iria chorar assim como o povo. O seu povo.

Correu em direção ao rio que circundava o castelo. Normalmente haveria guardas naquela pequena ponte, mas não hoje. Eram tempos de paz e nesses tempos seu irmão era um tanto relapso. Ele com certeza mudaria isso, mas hoje agradeceu pela estupidez de seu antigo rei.

Parou no meio da ponte e descobriu o rosto do bebê. Deu-se um tempo para olhá-lo. Os lábios eram a única parte roxa agora. Não tinha cabelo, mas estava claro que os teria negros como o pai. Seria muito parecido com ele. Tinha os braços longos, era um bebê grande. Poderia ser um grande guerreiro. Mas não seria. Procurou ao redor uma pedra grande o suficiente e logo encontrou. A enrolou junto do menino e o jogou no rio.

Mal sabia que aquele ato mudaria todo o futuro. Que ao jogar a criança no rio Zaphar dera vida ao seu maior inimigo.

by Priscilla Rúbia