Beberrão, machista, hedonista, misantropo e, dentre tantos outros adjetivos, sobretudo, genial. Esse é Charles Bukowski, poeta associado aos escritores marginais e malditos, considerado por Jean-Paul Sartre (filósofo francês existencialista) como “o melhor poeta da América”. Nada de muito bom poderia sair de um escritor que ficou comumente conhecido como “velho safado”, correto?
Errado.
Charles Bukowski (1920-1994) nasceu em Andernach, na Alemanha, mas criou-se em meio à pobreza de Los Angeles – fator que determinaria significantemente a formação de sua visão de mundo e também de seus escritos. Foi um dos raros casos literários no qual “o homem tornou-se maior que a lenda”. A vida extremamente transparente envolta em polêmicas, escândalos e controvérsias que levava alavancou sua obra de forma que, muitas vezes, sua imagem pessoal se sobrepunha à de escritor. Sua literatura é de caráter extremamente autobiográfico, não raro, escrita em primeira pessoa, e nela abundam temas e personagens marginais. A exemplo dos escritores do movimento beat, porém de uma forma mais crua, violenta e direta (O “Velho Buk” não gostava muito do uso de adjetivos, visto que eles “inflacionariam os substantivos”), Bukowski extraiu literatura dos recantos mais sórdidos, excluídos e sujos da sociedade e da mente humana. Sua convivência direta e contínua com um universo infernal de perdedores, bêbados, prostitutas, hotéis baratos, fome e desolação, rendeu material para sua prosa e poesia. Em um primeiro momento parece impossível extrair qualquer tipo de verso de uma realidade tão desvairada e insalubre. É muito mais comum fazer poesia sobre a flor, a alegria, o amor. No entanto, Bukowski soube como ninguém extrair um lirismo transcendental do vômito, da náusea, do sexo inescrupuloso, das banalidades e loucuras do cotidiano que não nos mostram nas propagandas de margarina.
bata na máquina
bata forte
faça disso um combate de pesos pesados
faça como um touro no momento do primeiro ataque
e lembre dos velhos cães
que brigavam tão bem:
Hemingway, Céline, Dostoiévski, Hamsun.
se você pensa que eles não ficaram loucos
em quartos apertados
assim como este em que agora você está
sem mulheres
sem comida
sem esperança
então você não está pronto.
beba mais cerveja.
há tempo.
e se não há
está tudo certo
também.
A liberdade formal com a qual escrevia, denotava o caráter de liberdade pessoal – algumas vezes associada com o fluxo de consciência ou com o delirium tremens – do estilo bukowskiano. O autor não se detinha aos paradigmas clássicos da escrita poética. Não nutria grandes preocupações com a organização dos versos e estrofes ao longo do papel, iniciais maiúsculas, pontuação ou esquemas de rimas. A grande maioria de seus poemas são de versos brancos (sem rimas), o que configura ritmos e leituras bastante interessantes.
as pessoas simplesmente não são boas umas com as outras
cara a cara
os ricos não são bons para os ricos
os pobres não são bons para os pobres
estamos com medo.
nosso sistema educacional nos diz que
podemos ser todos
grandes vencedores.
eles não nos contaram
a respeito das misérias
ou dos suicídios.
ou do terror de uma pessoa
sofrendo sozinha
num lugar qualquer
intocada
incomunicável
regando uma planta.
as pessoas não são boas umas com as outras.
as pessoas não são boas umas com as outras.
as pessoas não são boas umas com as outras.
Muitos consideram os versos de Charles Bukowski desesperadores, pessimistas e obscuros. Estão certos. Bukowski reproduz as nuanças frias e desnudas da realidade não como um mero observador alheio, que levanta conjecturas à distância de uma possível vivência – Bukowski está inserido na própria realidade por ele (d)escrita; ele vive o dia a dia de uma existência que beira o niilismo, respira o ar contaminado de fuligem, cheira a urina de rato das paredes de seu apartamento… ele vê “o lado escuro da lua”, um lado inegável, a despeito do incômodo que possa ser para muitos enxergá-lo. Como ele mesmo disse: “os hospícios raramente estão visíveis”. Mas Bukowski não é só todo eclipse; em meio à rispidez de seu ser e de suas palavras há uma imensa vontade de viver, uma pulsão de vida e esperança incrível, mesmo que soterrada em meio ao pó e a lama. Há a sensibilidade de um homem marcado por cicatrizes no rosto e no coração em ver alguma iluminura num quadro borrado. Há um olhar que capta a essência mesmo das dimensões mais vazias. Por isso que jugo o poema “Pássaro Azul” como um dos mais belos por ele já escrito e o que revela verdadeiramente quem é Charles Bukowski:
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar
ninguém ver-te.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu despejo whisky para cima dele
e inalo fumo de cigarros
e as putas e os empregados de bar
e os funcionários da mercearia
nunca saberão
que ele se encontra
lá dentro.
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica escondido,
queres arruinar-me?
queres foder-me o
meu trabalho?
queres arruinar
as minhas vendas de livros
na Europa?
há um pássaro azul no meu coração
que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes
quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso
não estejas triste.
depois,
coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos
assim
com o nosso
pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?
Poetize!