RESENHA: DIGNIDADE! A REALIDADE EM SUA FORMA MAIS BRUTAL

4

Sinopse: Para celebrar os 40 anos dos Médicos Sem Fronteiras, a instituição convidou nove escritores de diferentes nacionalidades para visitar projetos de ajuda humanitária em alguns dos países mais pobres do mundo. Estes escritores cederam seu tempo e talento para contar essa experiência. Os textos transitam entre a realidade e a ficção e chamam atenção para a situação daqueles encurralados por conflitos armados, fome, epidemias, desastres naturais e exclusão social. Eles estiveram lá, testemunharam cenas ora absurdas, ora comoventes, acompanharam histórias fabulosas de gente que vive todo dia, situações-limite, aprenderam sobre superação humana e esperança – mas também sobre a dureza da vida e sobre as consequências da ganância, do ódio, do desprezo, da intolerância às diferenças. Contando suas histórias, esses escritores ajudam a denunciar a violência nas regiões visitadas e a restabelecer a dignidade dessas pessoas no mundo. O livro conta com prefácio de Drauzio Varella.

“O mal prospera não só porque os homens perversos fazem o mal, mas porque os homens bons não fazem nada” – Martin Luther King.

Essa é uma frase dita em um dos contos de Dignidade e que permaneceu em minha cabeça no restante da leitura.

Dignidade foi um livro que peguei por falta de opção, não tinha real interesse nele. Um livro escrito por nove escritores que vivenciaram o trabalho da MSF (Médicos Sem Fronteiras) nos lugares mais remotos do mundo, lugares esquecidos por todos. A primeira coisa que me veio à mente foi: é um livro para impressionar. Um livro que quer me fazer chorar e me mostrar o quanto o mundo é ruim. Estava errada.

É claro que o livro mostra o quanto o mundo é ruim, o quanto algumas pessoas passam dificuldades que você e eu nunca seríamos capazes sequer de imaginar, mas não é um livro para te fazer chorar. O livro me horrorizou. Tentei imaginar como as pessoas conseguem viver nas condições descritas e não consegui. É um livro com poucas esperanças. Mostra que o trabalho da MSF é essencial, mas que é preciso de muito trabalho ainda para realmente acontecer uma mudança. Os finais felizes são temporários.

Vou relatar aqui um pouco dos contos que mais me levaram àquela realidade. São eles:

Viagem ao coração das trevas – Mario Vargas Llosa

“O problema número um do Congo são os estupros – disse o dr. Tharcisse – Matam mais mulheres que a cólera, a febre amarela e a malária. Cada bando, facção, grupo rebelde, inclusive o exército, onde encontra uma mulher procedente do inimigo, a estupra. Ou melhor, a estupram. Dois, cinco, dez, quantos sejam. Aqui, o sexo nada tem a ver com o prazer, só com o ódio.” – Pg. 11

Quantas vezes nós já ouvimos falar que o estupro no Congo é dessa maneira. Algumas. Mas o livro nos leva além. Nos conta casos de estupro que nos revoltam e ao mesmo tempo deixa uma sensação de incapacidade. Como fazer parar uma atitude que os homens consideram um ato de orgulho, algo que os faz mais homens? O estupro é tão cruel que é comum acharem pedaços de facas dentro das mulheres. Algumas nem tem a chance de se sentirem sujas, de sofrerem psicologicamente, pois morrem. Muitas são idosas com até 87 anos de idade. O conto de Mario nos mostra essa realidade e as dificuldades políticas e culturais para mudá-la.

Mulheres bolivianas que sofrem pela doença de Chagas. Mesmo assim encontram motivos para sorrir.

Os Vampiros da Realidade só matam pobres – Eliane Brum

“Noite após noite dona Josefina viu os vampiros se despregarem do teto de palha e caírem sobre seus bebês ainda quentes de suas entranhas. A cada vez que ela via seu ventre espichar sabia que estava criando um filho para a Vinchuca. Seu horror era tamanho que, para sua vergonha e para desespero da família, seus seios secavam. E sem comida para os maiores, don Fanor havia de encontrar leite de vaca para que os recém nascidos não morressem de fome antes que de Chagas.” – Pg. 31

A quanto tempo não ouvimos falar da doença de Chagas? Parece algo tão distante… mas ela ainda existe. Assola 70% em regiões da Bolívia. Eles chamam o bicho de Chagas de Vinchuca e lá ele é tão comum como um pernilongo no verão. Só que lá, ele existe o ano todo. A história de Eliane é uma história de horror. Ela mesmo nos diz que planejava de inicio escrever uma, mas não precisou já que a realidade fez o seu trabalho.

Nível de desnutrição sendo medido.

Phool Gobi quer dizer couve-flor – Paolo Giordano

“Por que não come alguma coisa? Eu trouxe você a este restaurante que custa os olhos da cara, e você está deixando a comida toda esfriar.
Marije olhou em torno, as pessoas sentadas ás outras mesas, comportadas e silenciosas. Havia abajures acesos inutilmente em todos os ângulos. Sentiu-se estranha e desambientada. – Pg. 66

Diferente dos contos acima, Paolo escreveu o seu de forma diferente. Ele usou uma personagem fictícia – ou não, isso não fica claro – que vai como voluntária a um dos postos da MSF em Bangladesh onde o caos e a mortalidade infantil são exorbitantes devido a desnutrição. Mostra como essa dura realidade mudou a personagem Marije.

Khayelitsha, Cidade do Cabo – Catherine Dunne

“Agora mesmo, em todo o mundo, 4 mil pessoas por dia estão morrendo de TB (Tuberculose): a maioria delas na África Subsaariana. Ela causa mais mortes prematuras que qualquer outra doença, e essas mortes triplicaram entre 1997 e 2005. Quatro mil pessoas a cada dia. Todos os dias.” – Pg. 73

Catherine nos recorda nesse conto de outra doença esquecida: a Tuberculose. E pelos cálculos acima ela só está esquecida por nós, mas está muito presente em algumas regiões da África juntamente com o HIV. É uma luta constante contra a doença em si e o preconceito que ela causa, fazendo com que as pessoas soro positivas sejam expulsas de casa, da sociedade.

Tratamento de crianças com mães soro positivas

Em A Proposta de Alicia Gimenez ela nos dá o relato das pessoas presas tentando ultrapassar ilegalmente a fronteira entre a Grécia e a Turquia. A maioria são presas durante meses em condições desumanas, incluindo mulheres e crianças.

Makass de James A. Levine é um dos maiores contos do livro. Ele usa um relato real e nos conta uma história. A narrativa dele é muito boa e por vezes nos esquecemos de que o livro não se trata de somente essa história.

Em Minha vida como uma bolsa de Esmahan Aykol ela nos mostra a realidade do ponto de vista de uma bolsa que tem como dona uma enfermeira que cuida de pessoas com HIV.

Os dois últimos contos são em forma de relato do trabalho da MSF na Índia e Burundi.

Acho que o livro conseguiu me passar o que queria: a realidade pode mudar muito ao redor do mundo. São pessoas que nunca têm o suficiente para comer e que precisam de ajuda urgentemente. Por conseguir passar essa mensagem de forma tão clara e objetiva, ele ganha cinco selos.

NOTA:

Ficha Técnica:
Editora: Leya
Autor: Diversos
Origem: Estrangeira
Título original: Dignitá!
Ano: 2012
Número de páginas: 268
Skoob

Deixo com vocês um vídeo da Eliane Brum falando sobre sua participação no livro: