Saudações, caros leitores! Continuando com a “festa de aniversário” para José Saramago, aqui está a resenha feita por um fã do escritor.
Bio: Edilton, além de criador do StephenKing.com.br, é Estudante do curso de Letras da UEG (Universidade Estadual de Goiás – UnUCSEH), amante da literatura fantástica/terror/suspense, viciado em seriados e Hq´s e fã incondicional do mestre King.
Primeiro acontece o baque inicial: “Estou cego”. Simples assim. Em seguida instala-se o sentimento de perda de identidade, a sensação de ser um ponto sozinho em meio a multidão que tenta acelerar seus carros, outrora parados, esperando pelo sinal verde para que possam dar prosseguimento a suas vidas, em grande parte, superficiais e sem significado. A premissa inicial de “Ensaio sobre a Cegueira” do autor português José Saramago é tão perturbadora quanto eficiente no que se diz respeito a “enxergar a vida sobre outra perspectiva”. No romance uma epidemia de proporções assustadoras se espalha numa cegueira generalizada que logo é apelidada de “Cegueira branca”, devido ao fato de, diferente da cegueira comum, esta ser uma onde as pessoas passam a “enxergar” um mundo completamente branco ao redor delas, como se, nas palavras de um dos próprios personagens, “estivessem todos mergulhados em um mar de leite”. Não demora para que a cegueira generalizada transforme completamente o mundo como nos o conhecemos. Seres humanos são reduzidos a um estado de primitivismo quase animalesco, onde o caos e a desordem imperam e apenas os mais fortes (ou seriam os mais adaptáveis?) sobrevivem. Partindo desse pano de fundo inicial, Saramago constrói um mundo onde valores éticos são constantemente questionados e revistos, estereótipos são desconstruídos e a própria noção de cegueira, como a conhecemos, recebe uma nova conotação, aqui bem mais aprofundada. A cegueira em “ensaio sobre a cegueira” é muito mais moral do que física e padece de um negativismo quase palpável, já que se caracteriza pelo excesso de luz e não pela falta dela, como se não houvesse luz no fim do túnel, como se essa própria luz é que fosse responsável pelo sentimento de alienação generalizado…
Logo nas primeiras páginas somos apresentados, no melhor estilo literário Saramaganiano, (trechos repletos de parágrafos intermináveis e a constante ausência de travessões e demais sinais de pontuação, que num primeiro momento podem soar um tanto quanto confusos para um leitor de primeira viagem) aos personagens que, diferente de outros romances, aqui não tem nome. Suas profissões ou graus de parentesco são as únicas coisas que os definem. Eles são sempre “o taxista”, “o oftalmologista”, “a mulher do oftalmologista”, “a rapariga dos óculos escuros” e etc… Essa ausência de nomes específicos acentua o tom de generalidade da epidemia. É como se ninguém, independente da etnia, grau de escolaridade, idade, sexo e até mesmo nome, estivesse imune ao mal da cegueira branca. Além disso, o fato de não nomear seus personagens também extrapola os limites da cegueira para além do livro, afetando-nos quase que diretamente. Como leitores nos sentimos tão perdidos quanto os personagens, graças a essa falta que faz a necessidade de nomeá-los ou até mesmo de descrevê-los fisicamente.
Quando os doentes são isolados da sociedade nas dependências de um manicômio abandonado, um dos primeiros problemas oriundos da epidemia de cegueira vem a tona: Como reorganizar-se socialmente em meio a um amontoado de pessoas que não conseguem enxergar e que, graças a imprudência governamental, são logo desprovidas de necessidades básicas, (como a alimentação e cuidados médicos, por exemplo) de sobrevivência? Não demora para que a situação piore e para que a falta de respostas para essa pergunta reflita num verdadeiro “circo de horrores”. Passamos de seres humanos a uma massa de carne com pernas, perambulando pelos corredores de um manicômio superlotado, enquanto fazemos nossas necessidades fisiológicas e sexuais ao ar livre. É como se ao perdermos a visão também tivéssemos perdido com ela nossa humanidade. Saramago nos joga na cara que não passamos de um amontoado teoricamente organizado de desejos primitivos, reprimidos por uma convicção lógica socialmente estabelecida. Ao perdermos a capacidade de ver, também perdemos essa lógica e cegamos como um todo. O pouco de dignidade que ainda nos resta reside nas costas da mulher do oftalmologista, a única personagem do romance que não perdeu a capacidade de enxergar e que, em um atino premeditado, mas perfeitamente compreensível, de egocentrismo, resolve omitir essa informação dos demais cegos. Entretanto, não demora para que ela mesma passe a se questionar sobre o real significado e a responsabilidade que é ter olhos quando ninguém mais vê. Em seu papel de redentora (e aqui talvez eu tenha abusado um pouco da imaginação, percebendo uma certa alfinetada alegórica ao cristianismo) ela, além de perdoar a traição do marido que dorme com a rapariga dos óculos escuros, entrega-se a humilhação, como uma das primeiras a voluntariar-se a manter relações sexuais com os cegos da outra ala em troca de comida. Como se não bastasse, ela ainda lava suas companheiras de ala após o estupro generalizado e comete, ainda que em condições extremas, o que em uma sociedade civilizada como conhecemos, seria o pior de todos pecados, o assassinato.
Conceitos como ética, dever e religião são postos de lado. Nas ruas o coletivo não existe mais. É deixado de lado em prol da lei de sobrevivência. Um ótimo exemplo do quão grave é o nível de alienação das pessoas que estão passando por aquela situação é o trecho onde, após escaparem do manicômio onde haviam sido isolados, os cegos chegam até a casa da mulher do oftalmologista. Lá, após se acomodarem, ela encontra água potável e serve para todos em suas melhores taças, numa tentativa quase desesperada de resgate de sua humanidade. Outro trecho que faz menção a essa alienação, agora de maneira bastante irônica, é quando o personagem que passaríamos a conhecer como “o cachorro das lágrimas”, ao se deparar com o desespero da mulher do oftalmologista, que chora desconsolada, sentada na calçada, vai até ela e lambe suas lágrimas. Enquanto o mundo lá fora explode em seres humanos se tornando animais, nesse ínterim um animal é capaz de demonstrar um sentimento quase humano, numa completa inversão de valores que Saramago praticamente esfrega na cara do leitor, de maneira simples e direta.
Pouco antes do final do romance há outra alfinetada ao cristianismo, essa apresentada de maneira mais descarada, quando, ao chegarem em uma igreja, a mulher do oftalmologista se depara com o interior dela repleto de estátuas de santos com vendas nos olhos. A amplitude da cegueira branca, enfim, havia ultrapassado todas as fronteiras, éticas, morais e até mesmo religiosas. É como se nem os santos, com seus pés de barro na visão de Saramago, estivessem imunes a esse processo de perda de identidade, ao mesmo tempo animal e tão naturalmente humano.
Ensaio Sobre a Cegueira – O Filme: Em 2008 o diretor brasileiro Fernando Meirelles levou a obra para o cinema, em um adaptação que mostrou-se bastante fiel ao romance de Saramago, com a ressalva de algumas sutis reinterpretações poéticas, como, por exemplo, a questão do taxista, o primeiro a cegar, e sua esposa serem de origem oriental. A comunicação deles em outra língua, sem legendas, acaba deixando o telespectador tão perdido quanto os cegos do romance. Além disso há a questão do ponto de vista pelo qual a história é apresentada. No livro Saramago nos transporta para a pele dos cegos, que, sendo cegos, possuem uma visão limitada dos fatos. No filme Meirelles tenta, por diversas vezes, simular essa situação, reproduzir a percepção dos cegos que é passada nos livros, através de efeitos de luz, mantendo a tela toda branca ou negra. Ao também privar os telespectadores da visão Meirelles tenciona muito provavelmente transpor artisticamente a ideia de cegueira generalizada passada no romance, que, de outra forma, seria imaginativamente inviável, a menos que fossemos todos realmente cegos.