[Resenha] Coisas Frágeis (Vol. 1) do Neil Gaiman

8

Neil Gaiman é um dos maiores escritores de ficção em atividade, reconhecido pelos seus romances (Lugar Nenhum, Filhos de Anansi) e pelo seu trabalho em quadrinhos (Sandman). Em Coisas Frágeis, Gaiman mostra que seu talento como contador de histórias funciona perfeitamente no reino das narrativas curtas. Neil Gaiman escreve com desenvoltura sobre os mais diversos universos – sejam criados por outros autores (com contos que aludem aos mundos de Sherlock Holmes, Matrix e Nárnia) quanto seus próprios, como no conto “O Monarca do Vale”, que tem como protagonista o personagem Shadow, de Deuses Americanos.

Os nove contos de Coisas Frágeis trazem Gaiman abordando os mais diversos temas, misturando puberdade, punk rock e ficção científica em “Como Conversar com Garotas nas Festas”; combinando o Sherlock Holmes de sir Arthur Conan Doyle com o terror de H. P. Lovecraft em “Um Estudo em Esmeralda”; extrapolando o mundo de Matrix em “Golias”, inspirado no roteiro original do primeiro filme; ou mesmo presenteando a filha mais velha com um conto fantástico sobre um clube de epicuristas em “O Pássaro-do-Sol”. Coisas Frágeis é um tratado prático de como escrever boas histórias – histórias que, como diz a introdução do livro, “duram mais que todas as pessoas que as contaram, e algumas duram muito mais que as próprias terras onde elas foram criadas”.

Hoje vou apresentar-lhes Coisas Frágeis do Neil Gaiman (da editora Conrad). Um livro de contos que traz toda a versatilidade deste escritor/roterista (de quadrinhos e filmes) e mostra por que ele é considerado por muitos como o grande narrador dos tempos modernos. Suas histórias caminham por diversos gêneros sem titubear em nenhum momento. O livro conta com 9 (nove) contos escritos por vários motivos diferentes (todos apresentados e justificados na introdução onde o próprio autor relata o que o levou a escrevê-los). É importante dizer que Coisas Frágeis até parece um ponto de fuga para escoar a criatividade exacerbada de Gaiman.

Quero a princípio dizer que gostaria que um post tivesse sons como um podcast para que você pudesse me ouvir bater palmas para o senhor Neil Gaiman. Seus textos têm um efeito de infância sobre mim, pois sabe qual é a magia da criança? Não? Achar que seu mundo é uma grande aventura. A imaginação de uma criança está livre de dogmas, leis, hipóteses e de probabilidades; sua imaginação voa sem asas, ela sabe que algo extraordinário se esconde em cada canto; num beco escuro monstros espreitam, criaturas (místicas) vivem invisíveis em nosso mundo…, e o senhor Sandman jogou-me de volta neste mundo de possibilidades infantis. E é assim que o leitor se sentirá ao ler os contos que ele escreveu (não apenas neste livro, mas no conjunto de sua obra).

Existe uma sutileza em seus textos e no modo como a história se desenvolve. A magia está lá é só você abrir bem os olhos que ela estará ali no velinho que atravessa a rua, na dona de casa que faz compras tranquilamente no supermecardo, no estudante que caminha para o colégio. Sim! estes são os seres mágicos que Gaiman usa para construir suas narrativas e é por escolher elementos tão crives do nosso mundinho mundano que temos aquela sensação de vivermos num mundo mágico disfarçado de normal. Por isso agradeço: Obrigado Neil Gaiman, por me transportar para minha infância sem me chamar de retardado ou abusar de uma inocência já perdida; você faz o concreto ficar abstrato, o sólido ficar líquido, o certo ficar duvidoso… Muito obrigado por através de uma simples leitura conseguir me trazer tantas sensações que somente uma criança compreenderia e acharia normais.

O livro é uma coletânea de contos, como dito na introdução, cada um possui um estilo bem diferente, sem, contudo, deixar de ser Neil Gaiman. É como comentei no Drops Cabuloso #03: ele se adapta a história, mas não perde seu estilo. Se temos uma história que se assemelha aos contos de Arthur Conan Doyle (o escritor de Sherlock Holmes), ele nos transmite toda a ambientação necessária que uma boa história de detetives deve ter, sem, obviamente, deixar de lado o misticismos/sombrio que todas as suas histórias possuem. É como se Sherlock Holmes soubesse que nos esgotos sujos e becos escuros de Londres houvesse fadas, duendes, demônios, anjos e uma série de outras criaturas soturnas, mas que Arthur Conan Doyle se esquecera de nos avisar. E o tempo não é empecilho para o autor, seja na Londres vitoriana ou na atual, comandada sobre os olhos da rainha, todos nos sentimos próximos de suas ruas nebulosos e seus becos estreitos. Há uma enorme vontade de visitar a terra da rainha para tentar vivenciar um pouco mais o mistério de suas histórias. Gaiman parece convidar: “Venha a Londres, mas saiba que estará sendo vigiados pelos olhos da cidade”.

Outro ponto a destacar, e que sempre faço questão de ressaltar quando resenho um livro dele, é quanto ao estilo de sua escrita. Como é fluido e limpo. Narração e descrição num casamento perfeito. Os personagens são descritos como estereótipos, ponto negativo? JAMAIS! Ele ressalta uma característica da personagem e todas às vezes que ela aparece sabemos quem é, pois já há vimos num filme, num seriado, num desenho, numa HQ, num mangá… Confuso? Explico-me: já os vimos e isso traz um conforto para a leitura, uma sensação que também já vivemos aquela história ou de que ela poderia, sim, ter acontecido e agora  ouvimos aquele velho amigo contar suas aventuras após retornar de uma bela volta ao mundo.

É estranha escrever esta resenha com tanto sentimentalismo e saudosismo, mas caso duvide de minha palavras vá ler Coisas Frágeis ou qualquer outra obra de Neil Gaiman e veja se não é esta a impressão que temos. Estamos cansados de ver os clichês por ai. Batizamos de “herói”, “vilão”, “mocinho”, “mocinha”, “nerd”, “loser”, “canastrão” e ao identificarmos já sabemos o que vai ocorrer. Pois Gaiman faz o contrário. Ele coloca os estereótipos lá, todos eles, mas os lança num universo de possibilidades infinitas: “e se o mendigo fosse imortal a ponto de desprezar a riqueza?”, “e se o loser do colégio fosse filho de um feiticeiro e que só descobre isso quando o pai morre?”

Vamos à análise dos contos:

UM ESTUDO DE ESMERALDA é um conto no estilo Sherlock Holmes. Temos todos os ingredientes de um interessante trilher policial, um assassinato, um detetive querendo encontrar o assassino…, mas com um final inusitado.

A VEZ DE OUTUBRO transforma os seres elementais, necessariamente a partir do título as estações do ano, em personagens que se juntam ao redor de uma fogueira para contar histórias. Conto interessante, pois mostra que mesmo seres místicos, como as estações do ano, também possuem seus mitos e lendas.

LEMBRANÇAS E TESOUROS conta a história de Smith um jovem que nasceu num manicômio e que é adotado por um homem “que tem dinheiro a ponto de ninguém saber que ele existe, pois somente alguém com muito dinheiro faz isso”. Para quem achar uma história boba, ou no estilo gângster, lembre-se de quanto falo dos estereótipos.

OS FATOS NO CASO DA PARTIDA DA SENHORITA FINCH faz menção ao circo dos horrores e o mistério de seus integrantes. Tem um tom de humor negro, mas é bastante divertido.

O PROBLEMA DE SUSAN lembra muito As Crônicas de Nárnia, o próprio autor admite na introdução, e mesmo não tendo lido este livro consegui identificar todo o questionamento levantado sobre a personagem Susan. Fico a me perguntar se quando ler As Crônicas de Nárnia e, em seguida, reler este conto sentirei vergonha deste breve comentário.

GOLIAS excelente conto de ficção científica ambientado no universo de matrix (spoiler?! Jamais o autor também explica na introdução). Atenção para a noção de tempo que é desenvolvida na narrativa. Esta é a sutileza do conto. Gaiman não perde nenhum detalhe mesmo.

COMO CONVERSAR COM GAROTAS EM FESTA uma história que me lembrou muito os filmes dos anos 80 onde tínhamos o amigo “pegador” e o amigo nerd/loser que não conseguia se dar bem nas festas, contudo o conto tem um tom místico tão descarado que o final não seria outro.

O PÁSSARO DO SOL conta a história de uma sociedade alimentícia. Seus membros acham que já cometeram de tudo (com exceção de seres humanos, pois isto é proibido, afirma, com certa frustração, um dos personagens) e decidem ir à Cidade do Sol comer o Pássaro do Sol. Um conto muito simples, mas com uma pitada de humor negro fantasmagórico.

O MONARCA DO VALE é um problema para quem não leu Deuses Americanos. Ao lê-lo fiquei constantemente me perguntando se quem não lera o livro compreenderia este conto. A resposta fora um saudoso, mas relutante sim! Contudo, há muitos elementos que se perdem no conto sem a leitura prévia do romance; principalmente o seu final. A grande pergunta que norteia a história é: o que aconteceu com Shadow depois da aventura de Deuses Americanos? A conclusão me foi satisfatória.

Nota:

05-selos-cabulosos

Coisas Frágeis é um livro muito gostoso. Sua leitura é muito prazerosa, daquela que você sente orgulho de ter concluído. É interessante a sensação de “ler uma obra que poucos lerão” (falo das pessoas que não gostam de ler, obviamente). A narrativa lhe dá milhões de idéias e possibilidades ao seu término. Existem muito “sés” que quase me derão uma vontade gigantesca de sentar na frente do computador e começar a escrever, mas por enquanto prefiro escrever resenhas a romances. Leitura recomendadíssima para quem gosta de aventura, fantasia, ficção científica, histórias de detetive e tantos gêneros que estão presentes neste livrinho fino (205 páginas) e aparentemente despretensiosos, porém sublime e mágico!

Trecho que o Lucien o Bibliotecário:

“O senhor Alice é um dos dez homens mais ricos do mundo. Vou contar uma coisa: você também nunca ouviu falar dos outros nove. Seus nomes não aparecem em nenhuma lista dos cem homens mais ricos do mundo. Nada de Bill Gates, nem do sultão Bulnei. Estou falando de dinheiro de verdade. Tem gente por aí que ganha mais dinheiro do que você vai ver na sua vida toda para garantir que não saia nada sobre o senhor Alice na TV ou nos jornais.”

Pág. 62

“Acho que posso afirmar sempre ter suspeito que  o mundo fosse uma farsa barata tosca, um péssimo disfarce para algo mais profundo, mais esquisito e infinitamente mais estranho, e de alguma forma sempre ter sabido a verdade. Mas acho que isso é apenas o que o mundo sempre foi. E mesmo agora que sei a verdade – como você vai saber, meu amor, se estiver lendo isto – continuo achando o mundo barato e tosco. Um mundo diferente, tosco diferente, mas é o que me parece.”

Pág. 105

“- Você já esteve lá – disse o médico.

 –  Lá?

 – Na prisão. Você já esteve preso. – Não era uma pergunta.

 – Sim.

 – Então sabe brigar. Pode machucar alguém, se for preciso.

 – Se precisa de alguém pra machucar pessoas, acho que não sou o cra ideial.

O homenzinho sorriu com lábios engordurados.

 – Tenho certeza de que é. Eu só perguntei. Perguntar não ofende. Bem. Ele é um monstro – disse, apontando para o outro lado do salão com a costela toda mordicada. O careca estava comendo um tipo pudim branco com colher. – A mãe dele também.”

Pág. 171