[Resenha] Cidades afundam em dias normais – Aline Valek

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Capa do livro. Fundo laranja, à esquerda em azul, uma ilustração mostra um animal semelhante a um coiote, composta por rachurras e sem preenchimento deixando-o da mesma cor que o fundo. As extremidades de suas patas se esticam em pontas escuras até a base da capa. À direita o titulo do livro em branco ocupando toda a altura.
Capa do livro. Fundo laranja, à esquerda em azul, uma ilustração mostra um animal semelhante a um coiote, composta por rachurras e sem preenchimento deixando-o da mesma cor que o fundo. As extremidades de suas patas se esticam em pontas escuras até a base da capa. À direita o titulo do livro em branco ocupando toda a altura.

Quando uma cidade inteira afunda, levando com ela tudo o que as pessoas conheciam como vida, as memórias são a única maneira de guardar o que a água levou. E é nesse mote que Aline Valek desenvolve seu ótimo livro “Cidades afundam em dias normais”.

Quando a cidade de Alto do Oeste, no cerrado brasileiro, reaparece depois de anos embaixo d’água, a fotografa Kênia e o jornalista Facundo vão ao local fotografar as ruínas e colher depoimentos dos antigos moradores que voltaram assim que a cidade reapareceu do fundo do lago. E é por meio das memórias dessas pessoas e de objetos recuperados em meio à lama vermelha que é reconstruída a trajetória de Alto do Oeste, de cidade esquecida, à fama depois que afunda, a destino turístico religioso ao retornar à superfície.

Histórias fragmentadas

Da mesma forma como funciona a memória, a história é contada de maneira fragmentada, em que se junta pedaços de informações para tentar chegar a um resultado com algum sentido. Assim, a trama vai e volta no tempo, mostrando como era a vida dessas pessoas antes da cidade afundar e o que elas pretendem fazer agora que Alto do Oeste ressurgiu.

“Todo mundo que voltou deixou alguma coisa aqui. É por isso que se volta. Para buscar.”

Contada dessa forma, a narrativa ganha uma forca extraordinária ao nos envolver na tentativa de preencher as lacunas. Por isso, uma das personagens mais fortes da narrativa no presente é a professora de história Érica que, assim que voltou à cidade, começou a recolher os objetos que achava para montar uma espécie de museu.

Um desses objetos e o diário de Tainara, que registrou, como um trabalho para a escola, seus momentos marcantes, que acabaram sendo também o registro da cidade afundando aos poucos. Essas são as memorias mais genuínas que se poderia ter, uma vez que eram registradas à medida que os acontecimentos se desenrolavam.

Misturados a esses registros, há também a relação de Tainara com as outras pessoas, incluindo Kênia, que também foi moradora de Alto do Oeste. Ao ter contato com o diário de sua antiga amiga, a fotografa mergulha em suas memorias para contar sua versão da história.

É muito interessante como Aline Valek explora essa volta da protagonista à cidade que jurou nunca mais querer ver. Ao decidir pisar naquele solo novamente, Kênia se vê obrigada a lidar com questões que havia deixado no passado, dores não curadas que vieram à tona junto com a cidade.

O importante é a jornada

“Cidades afundam em dias normais” não é um livro sobre grandes reviravoltas que te fazem querer saber logo o que vai acontecer. A força da história está em acompanhar essa jornada com calma e, nas entrelinhas, ir entendendo o que foi para aquelas pessoas ver seu lar ser engolido pelas águas e depois cuspido de volta sem mais nem menos.

Apesar disso, a narrativa do livro está longe de ser cansativa. É, sim, densa, porque o peso das memorias está impregnado em cada página. Porém, os capítulos muitas vezes curtos dão certa agilidade à leitura sem abrir mão da profundidade do que estava sendo contado ali. Esse é um livro para ler, não esperando como vai terminar, mas aproveitando cada parte do caminho.

Com “Cidades afundam em dias normais”, Aline Valek mostra, mais uma vez, que a força dela enquanto escritora está nas narrativas sobre relações e toda a complexidade e profundidade que envolve a troca entre as pessoas. Esse é um livro com a cara de um Brasil não muito explorado na literatura, o que deixa a obra ainda mais rica.

Nota

Cinco selos cabulosos. A maior nota do site.
Cinco selos cabulosos. A maior nota do site.

Garanta a sua cópia de “Cidades afundam em dias normais”!

Ficha Técnica

Nome: Cidades afundam em dias normais
Autora: Aline Valek
Edição:
Editora: Rocco
Ano: 2020
Páginas: 256
ISBN: 9786555320077
Sinopse: Da mesma autora de “As águas vivas não sabem de si”. Alto do Oeste é uma cidade no meio do Cerrado, que, no início desse século, afundou inexplicavelmente dentro de um lago. Apesar de insólita, essa submersão foi acontecendo de forma lenta e gradual, de modo que também foi aos poucos que seus habitantes foram “expulsos” pelo avançar das águas e obrigados a abandonar à cidade.

Anos depois, uma seca extrema no cerrado voltou a revelar Alto do Oeste, e todos os resquícios da vida das pessoas daquele lugar antes da inundação vieram à tona novamente, como se fossilizados pelo barro que agora encobre todas as coisas. Ao saber da notícia, Kênia Lopes, uma antiga moradora da cidade, decidiu que precisava fotografar as ruínas, como se em busca da resposta para uma questão jamais respondida: o que faziam os moradores enquanto aquele pequeno apocalipse se aproximava?