[Resenha] A História Sem Fim – Michael Ende

Capa do livro. Ilustração com um fundo azul escuro e diversos pontos de estrelas, simulando um céu noturno. Uma moldura ornamentada com linhas brancas e bege ao redor de toda a capa, e no centro, nas mesmas cores e traços da moldura, duas cobras, uma branca à esquerda e outra escura à direita, mordem o rabo uma da outra, formando algo relativamente semelhante ao Ouroboros. No espaço formado entre as cobras, o nome do autor em bege, e o título do livro em branco com sobra bege.
Capa do livro. Ilustração com um fundo azul escuro e diversos pontos de estrelas, simulando um céu noturno. Uma moldura ornamentada com linhas brancas e bege ao redor de toda a capa, e no centro, nas mesmas cores e traços da moldura, duas cobras, uma branca à esquerda e outra escura à direita, mordem o rabo uma da outra, formando algo relativamente semelhante ao Ouroboros. No espaço formado entre as cobras, o nome do autor em bege, e o título do livro em branco com sobra bege.

Ao ler obras como A História Sem Fim consigo entender melhor o que é a criatividade. Ser criativo não é criar um trabalho artístico sem nenhuma referência. Sendo que, tudo tem um ponto de partida. O criativo tem acesso aos elementos já usados, mas utiliza de uma maneira original. Um livro cheio de criatividade é capaz de ser diferente das obras do passado; não é semelhante a nada do presente e não parece ser uma peça estranha vinda de um distante futuro. Como a história de um garoto chamado Bastian, que vive uma aventura em um mundo mágico, pode ser tão criativa? Michael Ende consegue este feito mesmo com esta premissa comum e utilizando diversos elementos corriqueiros da Fantasia.

Comum e vazio

De início pontuo a calma do autor em dar o protagonismo para Bastian. A história começa com ele roubando um livro de uma livraria. Depois esconde-se para ler e viver as aventuras de Atreyu. É comum obras de Fantasia criarem um cenário cheio de injustiça para logo em seguida jogar o protagonista em um mundo cheio de oportunidades de heroísmo.

O garoto que quer saber como o mundo de Fantasia será salvo perdeu a mãe, mas possui o pai. Não gosta da escola devido a não ter confiança e não pelo ambiente ser um local opressor. Não existe uma construção para dizer que Bastian é especial. Na história não são empilhadas diversas injustiças na vida do menino. Há um vazio gerado pelo sentir-se deslocado e pela ausência do pai que é preenchido pela literatura. Nota-se nestas escolhas narrativas uma forma criativa de diferenciar-se do padrão.

Paredes quebradas

Nos livros tudo é mais fantástico. Heróis são definidos pelas qualidades e é necessário encontrar poucas respostas para resolver todos os problemas. Esta aí uma fórmula para um bom escapismo. A narrativa alemã vai além. O autor não tem só a intenção de fazer o leitor mergulhar no universo fantástico. Ele me colocou ao lado de Bastian acompanhando a história, vendo a importância de fantasiar diante de uma realidade de cores gastas. Neste brincar com a questão do “leitor e livro” gostei de ver a quebra da quarta parede como um convite a reflexão.

Infantil sem ser infantilizado

Na obra há um tom de aprendizado. Em um destes momentos elogio a metáfora de um lobo acorrentado. Uma imagem marcante que faz críticas ao fato dos adultos usarem o poder das histórias como ferramenta de manipulação. É neste mostrar o lado bom e ruim que o autor constrói uma narrativa sobre amadurecimento. A literatura infantil pode contar com críticas mais pesadas e deve ir além do maniqueísmo.

Após o ápice de Atreyu, Bastian assume o protagonismo. Contar como isso aconteceu é estragar a experiência, mas não relatá-lo contribuiria para uma resenha incompleta. O garoto trancado no porão viveu o fantasiar para depois ter o poder da criação. Através de viagens por diversos locais o autor ensina para o protagonista e o leitor o que é responsabilidade: cada mínimo desejo realizado envolve vidas e deve-se encarar as consequências depois de realizá-lo.

Na narrativa de Atreyu o tom é onírico e trafega entre o brando e o assustador. Nesta primeira parte da história Michael Ende consegue entregar uma aventura cheia de emoção sem recorrer constantemente ao bélico. Quando Bastian toma a narrativa para si o tom de fábula aos poucos dá lugar a conflitos que crescem até tornarem-se físicos. O cruzar de espadas não é um recurso trivial e sim uma consequência gerada pelo estado de espírito confuso do personagem principal. Desta forma fiquei mais envolvido porque as lutas tinham um grande significado.

A imaginação é a melhor das fontes

Cada ser fantástico é único na História Sem Fim. Não há uma inserção de seres fantásticos tirados da cultura nórdica e tão presentes em mesas de RPG. Os seres apresentados parecem ter saído da imaginação de Bastian. Isso torna tudo mais original porque nada é mais singular e criativo que a imaginação de uma criança. Até mesmo o dragão, uma criatura comum nas histórias de Fantasia, possui características únicas que remetem ao artístico em vez do guerreador.

Ser diferente é ser criativo

O vazio do protagonista não é preenchido por um objetivo que deve ser alcançado a qualquer custo (ser o melhor, salvar o mundo, conseguir a pedra mágica, derrotar o grande vilão ou ter uma vingança). A obra não se restringe ao escapismo que coloca o leitor em uma situação de conforto e ensina:

Amadurecer é entender que a vida não é só feita de desejos realizados.

O maniqueísmo é deixado de lado. E, por fim, todo embate é cheio de um significado profundo e não um recurso “cinematográfico” para entreter de forma barata o leitor.  Cada um desses pontos me marcou porque diferencia-se das Fantasias Infantojuvenis com um sucesso recente ou até mesmo as consagradas no passado. Além disso, parece ser uma obra à frente do próprio tempo (foi lançada em 1979).

O que aconteceu com o final?

No encerrar a obra possui uma dissonância. O tema central é amadurecimento. Bastian primeiro se projeta no herói, depois adota uma visão fantasiosa sobre si junto com uma vontade de só viver na ilusão e por fim enxerga a si mesmo e valoriza a vida que tem. Seria ótimo se o final só fosse composto desta construção. Entretanto, nos instantes finais há uma inserção sobre amor que destoou de todo o livro. Parece algo forçado para deixar o final mais “meloso”.

Um livro único  

A História Sem Fim é aquela obra que você termina de ler e tem a sensação de não ter lido nada igual! Para quem deseja algo criativo o livro será um deleite. O final pode causar estranheza, mas não arranha toda a jornada. Leia, mergulhe na imaginação de uma criança e veja como fantasiar é literalmente algo mágico. Tem episódios interessantes sobre a obra no Cabuloso Cast e no Covil de Livros . Há muito material para curtir a obra, aproveite!

Nota

Quatro selos cabulosos. A nota mais alta são 5 selos cabulosos.
Quatro selos cabulosos. A nota mais alta são 5 selos cabulosos.

Garanta a sua cópia de “A História Sem Fim”!

Ficha Técnica

Título: A História Sem Fim
Autor: Michael Ende
Tradutor: Maria do Carmo Cary
Editora: Martins Fontes
Páginas: 392
Ano: 2005
ISBN: 9788533613157
Sinopse: “A História sem Fim” é a mágica aventura de um garoto solitário que passa através das páginas de um livro para um reino muito particular, o reino da fantasia. Nesta terra imaginária, numa busca original e cheia de perigos, Bastian descobre a verdadeira medida de sua própria coragem e aprende também que até ele tem capacidade para amar. O texto impresso em duas cores, verde e vinho, as belas ilustrações das aberturas dos capítulos completam o clima de encantamento que envolve o leitor.