[Resenha] Condado de Essex – Jeff Lemire

Capa da HQ. Um fundo azul esverdeado. Cinco pessoas de frente para o horizonte sobre um gramado. Um de camisa quadriculada, outro de camiseta e bermuda, o terceiro com uma capa vermelha nas costas, o quarto usando um uniforme de hóquei com o número 9 nas costas e segurando um taco, e o último em uma cadeira de rodas. A metade inferior da capa mostra a parte interna da terra onde eles estão sobre, mostrando uma raiz que se espalha por toda essa metade, do mesmo azul esverdeado do fundo. No topo um passaro preto voa, e um retangulo bege com o nome do autor e o título da obra em vermelho, letras grossas e grandes.
Capa da HQ. Um fundo azul esverdeado. Cinco pessoas de frente para o horizonte sobre um gramado. Um de camisa quadriculada, outro de camiseta e bermuda, o terceiro com uma capa vermelha nas costas, o quarto usando um uniforme de hóquei com o número 9 nas costas e segurando um taco, e o último em uma cadeira de rodas. A metade inferior da capa mostra a parte interna da terra onde eles estão sobre, mostrando uma raiz que se espalha por toda essa metade, do mesmo azul esverdeado do fundo. No topo um passaro preto voa, e um retangulo bege com o nome do autor e o título da obra em vermelho, letras grossas e grandes.

Jeff Lemire, um nome cada vez mais presente nas prateleiras de colecionadores de quadrinhos, através da história de um garoto que será criado por um tio, de um idoso sem noção da própria idade e de uma enfermeira solícita, me fez refletir sobre a vida em família. Ao ler Condado de Essex aceitei que há muitos momentos melancólicos nesta jornada entre o nascer e o morrer. Entretanto, os pequenos momentos de felicidade fazem tudo valer a pena. O artista alcança este feito ao mesmo tempo em que retira as cores dos dramas e do hóquei no gelo.

Identidade

Ao se falar em família é comum pensar na casa, no quarto, na cozinha, na garagem…no lar. Nesta história em quadrinhos o artista demonstra que a relação familiar começa no bairro. A fazenda de frente para uma longa estrada percorrida por um garoto que precisa voltar para o tio. A ponte que atravessa o lago congelado onde gerações de crianças jogaram hóquei no gelo. E o posto de gasolina de responsabilidade de um velho conhecido, alguém familiar. Estes detalhes na vida de um garoto vivendo há pouco dias com o tio praticamente desconhecido, ilustrados como cenários abertos, mostram a solidão do jovem Lester. Com belos quadros e com o personagem pequeno diante da vastidão da cidade do interior, tive uma certeza:

O Condado de Essex nunca vai mudar. Mas o Lester precisa mudar.

Tendo esta verdade dentro de mim, me apeguei ao garoto que deseja respostas sobre a própria origem e libertar o artista dentro de si.

As histórias

Querer saber quem é e ser curioso sobre o passado costuma levar para a família. A primeira história, do garoto, segue de forma sutil para mostrar que a convivência familiar, sempre tão frágil aos incidentes da vida, não é fácil quando se espera a iniciativa do outro.

Na segunda narrativa, onde o idoso Lou LeBeuf conta toda a história dele, o autor escancara a dificuldade de viver entre irmãos. Em uma atmosfera triste marcada por um tom de relato, a segunda parte da HQ encanta ao mostrar todos os conflitos vividos por um homem no final da vida. Jeff Lemire mostra que a dificuldade de viver em família existe porque há sentimentos que são guardados para proteger alguém amado. Da mesma forma, com o passar do tempo, sentimentos são despejados por querer bem, por amar. Esta falta de equilíbrio gera os conflitos.

Guardar, reprimir e avançar marcam a vida do Lou LeBeuf. Nesta segunda história o autor transforma um relato cheio de sentimento em uma narrativa com tom biográfico. Neste momento o Condado de Essex brilha! É como se o personagem tomasse um grande gole de cerveja e dissesse:

Só estou aqui graças a tudo que passei com a minha família. Se prepara, que vou contar todos os segredos de quem esteve próximo de mim.

Acreditei nas tristezas de Lou LeBeuf e nos jogos de hóquei em uma várzea sem gramado e sem traves. O autor consegue transmitir esta verossimilhança porque não há glamour e muito menos um drama exagerado. Não há cores.

Refletir as nossas vidas

As tristezas acontecem, a vida acontece. Sonhos não são realizados, relacionamentos seguem sem ser um amor estrondoso e sem receios de deixar feridas e o fim é a velhice cheia de fragilidades. Este não gritar por um amor perdido e sem uma chance de marcar um gol que mude uma carreira é o viver comum. O autor criou empatia em mim ao transformar este seguir a vida em algo distante do hiper dramático.

Até mesmo do esporte o autor tira o glamour. Lou LeBeuf e o irmão não são atletas que sobem na carreira até alcançar o estrelato. Aliás, todos os jogadores de hóquei retratados jogam um campeonato de bairro. Eles enxergam o esporte como um lazer que entrega umas boas vitórias de vez em quando. Além disso, precisam conciliá-las com outro emprego ou largá-las para sustentar uma família.

Até mesmo o torcer é cinzento, bucólico. Gosto como a obra mostra que um estádio lotado comemorando um título é algo raro. Na maior parte do tempo estamos na frente de uma TV ao lado de alguém que gostamos vendo o nosso time jogar mal para caramba. Estas doses de realidade são construídas para gerar identificação. Então a HQ existe só para refletir o cinzento das nossas vidas? Jeff Lemire sabe que os momentos de felicidade têm mais impacto quando são vividos depois do sofrimento. E esse autor sabe criar pequenos momentos carregados de satisfação.

A terceira

O autor deixa o leitor feliz ao demonstrar que existe amor mesmo em uma vida onde um de dois irmãos sempre se reprimiu e existe afeto apesar de um tio e um sobrinho estarem morrendo de medo da mudança. Não posso esquecer de falar dos anjos presentes em muitas famílias. Eles que ajudam tanto a felicidade acontecer.

Chegou o momento de mencionar os elementos sobrenaturais da HQ? Não, o Condado de Essex é bem pé no chão do começo ao fim. Refiro-me aquelas pessoas próximas as famílias sem ter um laço de sangue. Elas que sempre estão dispostas a ajudar. Falo do vizinho presente em muitos jantares e acostumado a quebrar um galho e não posso esquecer de citar o exemplo da professora que cuida do aluno de perto e fora do período de aula. Este ser, este anjo, está representado na figura de uma enfermeira na terceira história. É maravilhoso ver Anne Quenneville cuidando direta e indiretamente dos personagens. Uma personagem intrigante que faz a última junção entre a história do jovem Lester e do velho Lou LeBeuf.

Por que um destaque maior?

A questão emocional e as ilustrações merecem elogios. Porém, os aplausos ao autor não se restringem a estes dois pontos. Toda a estrutura narrativa é bem feita. O quadrinista insere elementos aos poucos e o leitor descobre a origem deles com surpresa e naturalidade. Outro ponto a destacar é que de forma orgânica as histórias vão se conectando. Mas, há uma dissonância no ritmo que gera um desconforto. O primeiro e o terceiro trecho, cada um com um personagem principal, possuem um ritmo e um volume parecido. Dizer que a segunda história é semelhante as duas é uma inverdade. Na narrativa de Lou LeBeuf o ritmo é mais lento, mais trabalhado e com uma riqueza maior de detalhes. Senti uma preferência por esta narrativa que destoa de toda proposta da obra.

Em certo momento me deu até a impressão que o primeiro e o segundo trecho serviam apenas para completar o do meio. Escolher a redução é tolice, sendo assim, critico a falta de uma maior riqueza de detalhes do primeiro e do terceiro trecho. Esta opção do autor fornece uma aura de protagonismo para o senhor do segundo conto. Uma escolha que destoa da proposta da obra:

“Cada pessoa possui os seus dramas. Nenhum é maior que o outro, são apenas diferentes”.    

Levarei comigo

O Condado de Essex me fez pensar no bairro onde cresci, na minha família e na história que estou vivendo. Jeff Lemire é íntimo da alma humana. Vejo nele um estudioso da melancolia incapaz de perder uma oportunidade de falar da felicidade. Através desta história em quadrinhos percebi que momentos tristes gerados pelo viver revelam não só os caminhos como também os atalhos para as pequenas felicidades. Como não recomendar uma história que gera pensamentos reconfortantes? Posso mudar de bairro, mas sempre levarei o Condado de Essex comigo.

Nota

Quatro selos cabulosos. A nota mais alta são 5 selos cabulosos.
Quatro selos cabulosos. A nota mais alta são 5 selos cabulosos.

Garanta a sua cópia de “Condado de Essex”!

Ficha Técnica

Nome: Condado de Essex
Autor: Jeff Lemire
Tradução: Dandara Palankof
Editora: MINO
Ano: 2017
Páginas: 512
ISBN: 9788569032267
Sinopse: O que um garoto faz quando seu mundo todo se dissolve na frente dos seus olhos? O que transforma dois irmãos que já foram um time imparável em dois estranhos solitários e amargurados? Como o cuidado e o carinho de uma simples enfermeira de meia idade podem abrir portas pras cicatrizes de uma história de mais um século de dificuldades atravessado por toda uma comunidade?
Essex County, a louvada obra máxima de Jeff Lemire (premiado autor de Soldador Subaquático e Sweeth Tooth) finalmente chega ao Brasil pela Editora Mino. Aqui, nessas três histórias que se completam, um jovem e intenso Lemire revisita suas raízes no condado de Essex, no Canadá para abordar sensivelmente temas como família, memórias, luto, segredos e reconciliação – criando assim uma obra densa e poética, impactante o suficiente pra ter sido considerada essencial para a história da literatura canadense.