[Resenha] O Deus das Avencas – Daniel Galera

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Capa do livro. Uma pintura de óleo sobre tela chamada Protea, de Allison Schulnik, que mostra entre diversos elementos quase irreconheciveis uma flor numa garrafa, em uma superficie e um fundo azul claro. Na lateral superior da capa o nome do autor, e logo abaixo o título do livro, em branco.
Capa do livro. Uma pintura de óleo sobre tela chamada Protea, de Allison Schulnik, que mostra entre diversos elementos quase irreconheciveis uma flor numa garrafa, em uma superficie e um fundo azul claro. Na lateral superior da capa o nome do autor, e logo abaixo o título do livro, em branco.

Olá cabulosas, cabulosos, cabuloses! Espero que todos estejam bem. Hoje trago um livro bem bacana que me surpreendeu bastante: O Deus das Avencas,  escrito por Daniel Galera e publicado pela Companhia das letras.

O premiado autor trouxe neste livro três novelas de ficção especulativa, distintas entre si e ao mesmo tempo ligadas em suas temáticas: mostrar as emoções humanas diante das mudanças incontroláveis. Todos os protagonistas das novelas se deparam com mudanças que despertam neles a crueza das emoções que parecem adormecidas e que são despertadas pelo instinto de sobrevivência, seja através do humor (como no primeiro conto que dá título ao livro) no luto (Tóquio) ou na luta (Bugônia).

A resenha foi escrita por Priscila Saatamam.

O Deus das Avencas

A primeira novela se passa nos tempos atuais, ou melhor, em um passado bem recente, nas eleições de 2018. Manuela e Lucas estão esperando a chegada de seu primeiro bebê. E é nesse clima de expectativa sobre algo ou na melhor das palavras, sobre alguém chegando que o autor desbrava as emoções da insegurança com o cenário atual do mundo no sentido de sociedade.

Manuela obviamente experimenta as mudanças drásticas que a chegada de uma criança trará para sua vida, não apenas no sentido físico ou emocional. Ela sente o peso da responsabilidade de trazer ao mundo um agente de transformação social, pois a cada ser humano vindo ao mundo, ele muda o mundo com a sua vinda e vida durante sua permanência nesse mundo.

Lucas por outro lado, também experimenta as mudanças sob um sentimento de questionamentos sobre ser ou não capaz de administrar a sua existência com outra existência que dependerá da sua mais do que sua própria existência requer dele mesmo.

“Constataram em silêncio a sua inocência perdida, o fim da ilusão de que ainda detinham algum controle sobre o que vinha pela frente, de que uma certa dose de conhecimento, de boas intenções, de expectativas razoáveis e de crença no mecanismo de causa e efeito poderia ajudá-los no duelo com as forças obscuras e viscerais que iam exercendo cada vez mais à vontade, sua dominação.”

Acompanhar o trabalho de parto e as reflexões sobre as mudanças sejam sutis ou gritantes que o casal vivenciam tece reflexões bem importantes sobre os desastrosos apontamentos que as situações político-sociais presentes no texto (e hoje quer queira ou não é nossa realidade). Com bom humor e doses de drama na medida, essa novela é uma ótima porta de entrada para as emoções. O Deus das Avencas poderia ser definido pelo sentimento de esperança, ainda que o percurso e o momento não seja tão animadores. Porque cada nova vida é uma infinita possibilidade de novos desdobramentos para os rumos do mundo.

Tóquio

Se no texto anterior lia-se sobre a expectativa da vinda de uma pessoa, em Tóquio o autor trabalha a outra extremidade da linha da vida: a morte. Nesta novela o ambiente é uma São Paulo distópica, digamos pré-apocalipse. O título remete uma lembrança do protagonista que no início do texto está em uma reunião terapêutica com outras pessoas que estão na mesma situação que ele, no contexto, os avanços tecnológicos permitiram que as pessoas pudessem guardar suas memórias/existências em dispositivos, denominados de cópia, como por exemplo, na série Carbono Alterado e o filme Avatar. 

Mas o mundo entrou em colapso e as empresas que guardavam os dispositivos não tiveram mais condições de manter a armazenagem e a manutenção dos dispositivos, e em cláusulas do contrato do procedimento é dito que se algo ocorrer o dispositivo deve ser dado para a pessoa a qual o cliente pediu para ser dado. Isso faz com que as pessoas que se submeteram ao procedimento de armazenagem da memória quando tem seus dispositivos ligados possam interagir com os outros. Algumas pessoas incluindo o protagonista que recebeu sua mãe com a qual não tinha contato a muito tempo e que estava morta, eles não conseguem lidar com essa novidade e buscam na terapia uma solução, manter ou não esses dispositivos se a escolha é por manter, aquelas pessoas naqueles dispositivos são as pessoas que eles conheceram? Se não querem manter o dispositivo estão matando de novo a pessoa? 

Todas aquelas pessoas na reunião têm a mesma dificuldade, aceitar que ainda que dentro de um dispositivo eletrônico/digital há uma existência quase que completa, quase porque algumas cópias possuem problemas. No caso do protagonista, a cópia guarda a sua mãe, ou o que era a sua mãe já que a tecnologia só arquiva a consciência humana até o ponto em que ela estava ao se submeter ao procedimento de escanear o seu cérebro. 

Através daquele contato com a mãe que já está morta e se faz presente por meio de um objeto que lembra uma Alexa da Amazon, ele é levado a relembrar sua viagem à Tóquio, a cidade japonesa onde as últimas memórias com a mãe foram construídas, o que levaria a lembrar de seu primeiro e talvez grande amor Cristal, que estava com ele na viagem e as coisas que desenrolou o término de ambos e o término de suas relações com sua mãe. Ou seja, todas as perdas, e que de modo algum a presença súbita da mãe em um objeto resolveria o que quer que tivesse ficado em pendência entre eles. É por meio dessa memória que o personagem encontra as primeiras respostas e se permite caminhar para outras perguntas indo a lugares dolorosos. Ele encara um segundo luto, afinal, a cópia não é sua mãe ainda que pareça.

“Memórias, perceba, não são apenas dados sem contexto. (…) Memórias sozinhas não podem produzir uma identidade. É a identidade que permite a existência das memórias.”

Ao reconhecer a si mesmo em suas memórias com a mãe e a ex, o protagonista entende a sua identidade pode assim seguir em frente para construir novas memórias da sua vida.

Bugônia

“A Velha diz que a morte e o nascimento são pontas de um caminho que dá voltas mas sempre se fecha. Que a diferença entre estar vivo e não estar vivo é um pouco como sonhar sabendo que está sonhando  e de repente acordar e não ter certeza se ainda está sonhando ou não.”

A última novela do livro é brilhante. Bugônia, trata sobre uma comunidade isolada em um mundo que ruiu, um texto pós-apocalíptico que usa muito bem os conceitos que estudamos nas aulas de biologia sobre um organismo. Como todo organismo, esse vive naquilo que eles denominam de Topo; o Topo é o lar, o local onde as coisas se desenvolvem e ondes eles nascem e morrem. Aliás, aqui a morte tem um papel fundamental para a vida do organismo, ou seja, da sobrevivência da comunidade.

“Porque para ela nascimento e morte são menos uma espécie de ciranda ou brincadeira de ilusionismo e mais uma briga.”

Como toda comunidade que funciona como um organismo fechado, cada pessoa dentro do Topo tem sua função, cada um existe e morre para cumprir a missão de manter aquele grupo vivo até que a última célula dali morra. É através do olhar de Chama, uma protagonista que percebe que sua função pode mudar para que a vida deles permaneça, quando um corpo estranho entra em contato com o organismo/comunidade que já está habituado às mazelas e que criou mecanismos muito inteligentes de proteção. 

Quando isso acontece com a comunidade que vive sossegada no Topo, acostumada com os poucos atritos resolvidos pela consciência de que ninguém sobrevive sem o outro, a comunidade enquanto organismo se abala, fazendo com que Chama pela primeira vez encontre outros sentimentos para lidar com uma violência até então desconhecida que se faz presente em sua pacata comunidade. O sistema imunológico da comunidade é ativado, mas como se sabe quando a imunidade perde o controle ela também ataca o corpo e quando as emoções afloram no Topo, as coisas saem de controle gerando uma onda de violência entre eles, é preciso restaurar o sistema, ou criar um novo organismo a partir do que restar daquele que está ruindo. 

“Existe uma violência de sobreviver e existe uma violência que não tem a ver com sobreviver, ensina a Velha. Essa que não tem a ver com sobreviver é uma desforra contra um sentimento de injustiça baseado no engano de que algo nos é devido só por existirmos.”

Chama faz jus ao seu nome, ela ascende e guia o organismo, sua comunidade para ao menos voltar a um estado de racionalidade e descobre que como comunidade precisam se mover, porque não são um organismo unicelular, que não pode sair do lugar, que para sobreviver e manter a vida é preciso arriscar morrer. 

Considerações finais

Refletir sobre tudo o que Daniel Galera escreve em O Deus das Avencas é engraçado. É aquele tipo de livro que te faz pensar muito sobre as coisas abordadas e expandir esses pensamentos para outras coisas. É um livro que pessoas que amam a ficção especulativa vão gostar muito, justamente por especular tantas coisas sobre a complexidade das emoções humanas diante de três aspectos tão intensos da vida: novidade, perdas e sobrevivência ante a novidade e as perdas. 

Nota

Cinco selos cabulosos. A maior nota do site.
Cinco selos cabulosos. A maior nota do site.

Garanta a sua cópia de O Deus das Avencas!

Ficha Técnica

Título: O Deus das Avencas
Autor: Daniel Galera
Editora: Companhia das Letras
Ano: 2021
Páginas: 248
ISBN: 6559210510
Sinopse: Daniel Galera expande as possibilidades da literatura nas três novelas reunidas neste livro.
Em “O deus das avencas”, que abre este volume, um casal se fecha em casa à espera do nascimento do primeiro filho, e mergulha numa incerteza crescente, tanto pelo destino deles quanto pelos rumos do país.
Em “Tóquio”, Galera abandona a narrativa mais realista ao retratar a vida de um homem solitário, obrigado a enfrentar o passado em um mundo que atravessou um desastre ambiental e tecnológico.
E, por fim, em “Bugônia”, ele dá um passo além ao recriar a história de uma comunidade pós-apocalíptica em simbiose com a natureza, que, pressionada pelas ameaças externas de um planeta devastado, precisa se transformar de forma radical.
O deus das avencas é um livro especulativo e por vezes sombrio, mas extremamente humano.