O que é preciso para construir um universo ficcional? Parágrafos gigantescos detalhando os tons de azul do céu e características de uma folha? Ao ler A Canção dos Shenlongs de Diogo Andrade fiquei com a sensação de que é fácil criar um mundo literário. Onde está o mérito do autor?
Escrever e desenhar
Um olhar bobo, de um jovem longe da vida adulta, procura na arte um detalhamento excessivo. Não estou falando das minúcias que formam algo belo. Refiro-me a vários detalhes que não deixam nenhum espaço para o vazio, para a imaginação. Um desenhista precisa de poucos traços para fazer um desenho com identidade. Diogo, tendo em mãos um teclado em vez de um pincel, constrói um universo com características chinesas. Através do bom uso dos nomes dos personagens, das descrições bem elaboradas e do criar tradições em um templo de monges é fornecido ao leitor um universo encantador. Há cuidado, não existe desperdício de frases e nota-se que o autor é íntimo da cultura que referencia.
O livro possui como cenário um templo em uma montanha chamado Shanjin e é narrado pelo monge Mu (protagonista). Um jovem que tem um irmão de criação chamado Ruk. A união dos dois é demonstrada na voz do monge que conduz a história. De início o narrar é triste porque um acontecimento de grande impacto para as tradições do templo separa os dois. No decorrer da narrativa o personagem se questiona sobre Ruk, porém, a vida dele continua. Neste viver, nesta rotina, o leitor é apresentado a cultura dos Shenlongs. A vida segue até ocorrer um evento de proporção muito maior que a separação de uma longa amizade. Tal evento coloca em risco todo o templo.
Há o bom e o excelente
Através das tarefas de Mu, e dos amigos dele, as descrições do templo são feitas. Para mim, uma boa descrição não é curta e nem longa, ajustando-se perfeitamente ao tom do texto e o olhar do personagem. Em uma descrição excelente também há o equilíbrio, mas há algo a mais:
Na excelência o leitor não imagina só a cena em si descrita. É possível imaginar todo um local. Caso esteja sendo descrito uma sala, é possível imaginar a cozinha; o banheiro; os quartos…a casa toda. Na Canção dos Shenlongs pude imaginar todo o templo. Foi uma experiência imersiva onde construí na minha mente com cores e textura o local de dormir, o refeitório e até mesmo um pequeno cômodo onde as roupas eram costuradas pelos próprios monges com agulhas grossa. O terceiro exemplo citado surgiu na minha mente graças as excelentes descrições.
Além dos cenários
Uma história não se faz só com belos cenários. Sem bons personagens e um ritmo agradável as construções feitas com o poder do narrar não passam de quadros lindos com personagens que podem facilmente substituir estátuas. É necessário elogiar o avançar constante que funciona bem com a apresentação do universo ficcional. Além disto, sempre há algo acontecendo ou alguma informação importante é passada. Todas estas qualidades tornam a leitura rápida e prazerosa.
Sobre os personagens, Mu, até o momento do clímax da narrativa, é passivo. Este fato não o torna alguém sem personalidade ou opinião própria, muito pelo contrário. Ele quer saber o que está acontecendo e isso faz a trama avançar. Entretanto, o agir é de responsabilidade dos monges superiores. Esta hierarquia contribui para a verossimilhança da cultura do templo Shanjin e fornece destaque para os personagens secundários. Durante a leitura senti a força de Shinzu, a sabedoria de Sarujin e a vivência de Abade Kame. Tanto na forma como Mu se comporta como também na fala sobre estes personagens existe respeito. Esta admiração passa para o leitor, gerando apego aos líderes do Templo da Montanha.
Cercado por aqueles que vivem
Falei dos superiores e não posso esquecer de Nili e Aga, os amigos mais próximos do protagonista. Cada um deles possui uma personalidade e são independentes. Eles possuem uma vida própria e é fácil imaginá-los com histórias só deles e com uma visão particular sobre os eventos ocorridos. São parte importante no templo e na história.
Elemento Mágico
Os personagens são distintos e uma das características que os diferenciam são as Yantras (tatuagens feitas de Chi, que é uma energia espiritual). Trata-se de um detalhe que fornece um tom fantasioso a obra. Não espere por textos gigantescos explicando o sistema de magia ou capítulos dedicados a criar uma convivência do personagem principal com recursos mágicos. No narrar está nítido que o Chi é parte importante da cultura dos Shenlongs e o autor o introduz de forma gradual no livro. Fiquei animado com o poder cheio de identidade dos monges e corri para ler Folhas Secas ao Chão (continuação da Canção dos Shenlongs). Fiquei deslumbrado tanto por vê-lo ser usado de uma forma diferente como também por receber mais informações. É inspirado em animes, mas possui uma identidade forte.
Referência
Em cada linha nota-se a inspiração e o respeito pela cultura oriental. Isso é bom porque a referência não é colocada a frente da história. Assim permaneceu até os momentos finais da obra. No grande embate final, notei o Diogo Andrade escritor e o Digo Andrade fã de anime. Fui capaz de ver com evidência um recurso narrativo utilizado com certo exagero em muitos animes e filmes de ação. Para muitos leitores é algo bom que pode passar desapercebido e ser elogiado. Está lá, não compromete a narrativa, mas me fez desconectar do texto por um breve momento.
Bom traço, bom escritor
Ler A Canção dos Shenlongs é um oportunidade de criar um templo de monges guerreiros dotados de poderes inumanos na imaginação. Uma narrativa curta, precisa e que incentiva o leitor, através de um ritmo encantador, a criar histórias com os personagens secundários. Obra que desperta curiosidade por toda cultura criada. No final confesso que não me contive e logo li Folhas Secas ao Vento. Não vejo a hora de falar de outra aventura de um Shenlong aqui no Leitor Cabuloso.
Nota
Garanta a sua cópia de “A Canção dos Shenlongs”!
Ficha Técnica
Título: A Canção dos Shenlongs
Autor: Diogo Andrade
Editora: Cuscuz Studio
Páginas: 136
Ano: 2020
ISBN: 9786599081576
Sinopse: Os tempos mudaram. A ascensão do Império de Housai obrigou os monges guerreiros shenlongs a se isolarem cada vez mais. Com o passar dos anos, os Quatro Templos sagrados se tornaram seu último refúgio. Os Antigos se foram. Seus descendentes desapareceram. Aqueles que resistem à nova ordem estão enfraquecidos.
Por mais de mil anos, o Templo da Montanha, Shanjin, se manteve firme em Linshen. E para Mu, Shanjin é sua casa. Chegou ao templo ainda criança junto de seu irmão, Ruk. E, quando Ruk é expulso da ordem monástica, Mu vive o conflito entre a dor da perda e se manter como um shenlong, fiel aos ensinamentos e o caminho de retidão.
Os problemas se agravam quando um espadachim misterioso traz a notícia da grande ameaça que pode abalar os Quatro Templos. O exílio não durará. Agora, os shenlongs de Shanjin devem reforçar suas defesas e se preparar para o combate. Pois, desta vez, nem a Barreira será suficiente para protegê-los.
Em a Canção dos Shenlongs, Diogo Andrade introduz um universo ficcional elaborado com suas próprias regras, leis, deuses, religiões e relações de poder, que transportam o leitor para uma realidade de grande imaginação.