“Drácula” é uma história impressionante, escrita em 1897 por Bram Stoker o livro e toda a mitologia do conde e vampiro da Romênia continua inspirando filmes até os dias de hoje nos mais diferentes e possíveis gêneros e estilos do cinema.
Em 1922 a história ganhou as telas pelas mãos do diretor alemão F.W Murnau, mas por conta de questões de direitos autorais o filme foi chamado de “Nosferatu”. Já em 1931 vimos o icônico ator Bela Lugosi interpretando o conde no filme “Drácula” que foi dirigido por Tod Browning.
Ano passado na Mostra MacaBRo assisti ao filme “As Núpcias de Drácula” dirigido por Matheus Marchetti e convidei ele para conversar sobre esse personagem e como foi a experiência de adaptar uma obra como essa.
Entrevista
Euller Felix: Me conta um pouco como é a sua relação com a obra de Bram Stoker e de como foi que surgiu a ideia de fazer um filme sobre Drácula?
Matheus Marchetti: Drácula foi uma das primeiras histórias que me fizeram me apaixonar por terror. Minha primeira introdução ao personagem foi aos 6 anos mais ou menos, com a comédia Drácula – Morto Mas Feliz do Mel Brooks, e isso me fez ir atrás de todas as variações possíveis da história. Assisti aos dois Nosferatus, vi todos os filmes da Hammer, assim como as versões do Tod Browning, John Badham, Coppola, tudo isso entre 8-9 anos de idade. Ironicamente, foi só depois de muito tempo que eu finalmente cheguei a ler o livro. Fiz praticamente o caminho oposto do que qualquer fã do Bram Stoker te diria pra fazer, mas acho que isso deu um distanciamento maior da obra original que me permitiu apreciar melhor as particularidades de cada adaptação. Acho que os charmes dessas adaptações não se encontram na fidelidade ao texto, e sim em como outros autores reapropriaram a obra para contar suas próprias histórias.
Eu também sonhava em contar minha própria história usando o livro como ponto de partida, e principalmente que pudesse focar no subtexto queer que acaba muitas vezes descartado ou passado despercebido por diretores héteros. Nesse sentido, me inspirei muito no maravilhoso Vampyros Lesbos, do Jess Franco – a única versão que realmente explora o potencial romântico entre Jonathan e Drácula, mesmo que trocando os gêneros dos personagens.
No fim, o Núpcias de Drácula acabou acontecendo quase por acidente. Estava reassistindo As Noivas do Vampiro, do Terence Fisher, com duas amigas que também são loucas pelo gênero (a Natt Mazzoni e a Alice Tassara, que eventualmente participaram do filme como atriz e diretora de arte respectivamente), e de repente surgiu a idéia de fazermos nosso próprio Drácula. Tínhamos acabado de fazer dois projetos sobre vampiros – o curta-metragem O Bosque dos Sonâmbulos, e uma montagem independente do musical alemão Tanz der Vampire – então voltar para o “vampirão original” pra fechar essa “trilogia” pareceu meio que o fluxo natural das coisas. A ideia surgiu quase na brincadeira, mas foi com esse espírito de “brincadeira” que embarcamos no projeto. Quando eu era pequeno, brincava com os amigos de colocar uma capa preta e fingir que eu era o Conde Drácula – e foi meio que desse jeito que fizemos o filme… totalmente sem verba, sem recursos, mas com muito amor, muita imaginação, e uma vontade imensa de reinterpretar esses momentos que marcaram tanto a gente.
Euller Felix: Quais foram as maiores dificuldades que você teve na concepção e realização do filme? Tanto esteticamente, quanto em termos de materiais?
Matheus Marchetti: A equipe e elenco do Drácula totalizava em aproximadamente 12 pessoas, sendo que metade do elenco também era parte da equipe. Nossa produtora Isabella Melo fazia a Mina. Meu assistente de direção Henrique Natalio fazia o Jonathan, e por aí vai. Foi todo mundo trabalhando em triplo pra fazer o filme acontecer.
Do momento em que tivemos a ideia inicial até a escrita do roteiro e o primeiro dia de gravação, deve ter dado um mês no máximo. E mesmo o roteiro em si existia de uma forma muito vaga… era apenas uma descrição superficial de cenas, que acabavam mudando diariamente, dando muito espaço para improvisação e experimentação. Todo dia era uma surpresa, e isso era meio assustador mas também muito gostoso. As filmagens eram feitas aos fins de semana, quando estávamos livres de trabalho e/ou faculdade e podíamos mergulhar nesse universo livremente.
Já que não havia de fato um “orçamento”, tivemos que pegar quase tudo emprestado, e nisso fomos muito sortudos. Conseguimos locações lindas através de amigos e parentes. Também não tínhamos dinheiro para equipamento, mas como a Isabella ainda estava se formando em cinema na época, conseguimos equipamento emprestado da faculdade através dela. Por outro lado, isso significava que nem sempre iríamos poder contar com esse material, então a gente sempre acabava filmando com o que tinha à disposição no dia (e metade dos dias estávamos rodando sem nem tripé para a câmera).
A falta de uma pré-produção de fato não parecia um problema no início, mas quando começamos a edição vimos que muitas coisas podiam ter sido melhor organizadas. Haviam muitos buracos no filme, e ficamos um bom tempo editando, remontando, tentando fazer aquelas imagens fluírem, até finalmente resolvermos gravar cenas adicionais quase um ano depois do nosso último dia de filmagem. Toda a cena do Jonathan chegando na hospedaria e sua jornada até o castelo foi gravada nessa segunda fase – não tínhamos mais acesso ao figurino que ele usava na cena, e o cabelo do ator estava completamente diferente, então tivemos que fakear ao máximo pra que essas diferenças não ficassem muito aparentes.
De forma geral, as dificuldades maiores acabaram surgindo mesmo na pós. Foi aí que a falta de verba realmente se fez presente. Finalizamos o filme sem a grana que precisávamos para finalizá-lo do melhor jeito possível, mas sem lapidar de fato. Mesmo assim, os buracos que ficaram, essas falhas, acho que fazem parte desse “grande experimento” – entender o que funciona, o que não funciona. Foi a maior aula prática de cinema que poderíamos ter, muito mais do que qualquer coisa que vimos anteriormente na faculdade.
Euller Felix: Temos muitas adaptações cinematográficas do Drácula, qual a sua favorita e por quê?
Matheus Marchetti: Confesso que sou apaixonado por praticamente todas, mas tenho um carinho especial pelo Nosferatu do Werner Herzog. É o melhor exemplo de como reapropriar o texto original para contar algo muito particular, muito pessoal. Nesse caso não é apenas uma adaptação do livro, como também um remake extremamente fiel do filme de 1922 (muitas cenas são recriadas quase plano por plano) e mesmo assim o filme tem uma identidade muito própria, muito diferente de qualquer outra adaptação. Já partindo de Murnau, ele tira toda a gordura e os mil e um personagens do livro para focar em três figuras básicas e suas relações – o Conde, Jonathan, e Lucy – dando uma tridimensionalidade muito maior a esses personagens, assim como humanizando o menos humano de todos os Dráculas. Klaus Kinsi, Bruno Ganz, e especialmente a Isabelle Adjani estão perfeitos nesses papéis, trabalhando numa linha muito tênue entre o naturalismo de Herzog e o expressionismo de Murnau. É um filme que tem algo novo a oferecer com cada revisão, parecendo só melhorar a cada ano… e ainda se tornou ainda mais assustador se assistido em tempos pandêmicos, toda a sequência da praga que se espalha pela cidade tá um pouco real demais agora. O clima de sonho desse filme, que parece existir num estado de sonambulismo perpétuo, foi uma inspiração fortíssima pro nosso Drácula.
Mas queria também mencionar o filme Jonathan, de Hans W. Geissendörfer (uma livre adaptação que foca especificamente na jornada do personagem título ao castelo do Conde, reconfigurado com uma alegoria à Alemanha nazista), o Sangue para Drácula do Paul Morrissey (que já não é exatamente uma adaptação direta do livro, mas é a dica perfeita pra dias melancólicos que você só precisa levantar o astral) e também a versão do John Badham. Essa última ficou relativamente ofuscada pela versão do Coppola, mas é uma das releituras mais divertidas e coesas do livro, que explora o elemento romântico de uma forma muito mais interessante e cativante que seu sucessor mais famoso (a química entre o Frank Langella e a Kate Nelligan é incrível – e aquela cena de sexo bizarra estilo abertura de 007 é sempre um charme). Também contém uma das trilhas mais lindas do John Williams, e uma das cenas mais assustadoras que eu já vi (o encontro de Van Helsing com sua filha vampira nas catacumbas). Em suma, os anos 70 foi talvez o melhor momento para Dráculas – e talvez para vampiros de forma geral.
Matheus Marchetti está com mais um projeto em vista, “Verão Fantasma” que promete ser um inusitado e colorido musical queer e que segundo a descrição do projeto “combina elementos de romance gay adolescente e o terror dos anos 70/80, com canções originais de André Zappalenti e Nicolas Stenzel.” O seu novo filme está com uma campanha de financiamento coletivo no Catarse.