Como imaginar a religião em uma realidade em que o estar offline não é uma opção? A cultura pop se aprofunda nesta questão e provoca reflexões sobre a máquina como uma divindade ou visões niilistas. Na obra Olhos de Pixel, Lucas Mota usa o cenário brasileiro para criar um mundo em que a religião com grande adesão na sociedade atual possui grande influência no governo. O imaginar do autor cria uma obra interessante?
Acompanhei a narrativa pelo olhar de Nina e desde o início é demonstrado que ela deseja ir junto com o filho para a colônia espacial Chang’e. Atingir este objetivo não é fácil e a recompensa é, praticamente, uma vaga no paraíso diante de uma sociedade opressora controlada indiretamente pela igreja.
Veia política
Através da narrativa é possível perceber uma visão política sobre Israel e outros aspectos da sociedade. Estes trechos, onde parece que a opinião do autor é colocada na frente da narrativa, são raros. Em sua maioria as críticas são bem construídas a partir de um universo ficcional coeso, provocam reflexão e não são resumidas a discursos. Contestar, lutar e ir de encontro ao conflito com o opressor é a vida da protagonista. Orientação sexual, raça, estilo de vida e família da personagem são impactados pela igreja detentora da opressão. Sendo assim, cada palavra de revolta da Nina gerou impacto em mim. Acreditei em cada palavra dela e torci para que ela conseguisse a fuga. Além disso, a personagem reflete sobre a sociedade em que vive e sobre as escolhas feitas.
“Quando sua ideologia não é capaz de fazer bem a quem você mais ama, é porque ela é uma ideologia de merda. Por isso comecei a questionar o que eu fazia e a forma como eu decidia lutar contra o mundo. Não faz sentido, sabe?”
Peças bem usadas
Lucas Mota gosta de construir belas cenas de ação. Há muitas batalhas ao melhor estilo de Hollywood e é evidente que Nina é muito boa no que faz. Outro ponto a ser elogiado é que o autor sabe criar elementos só possíveis de existir em um universo cyberpunk. Componentes criativos que aumentam o risco para a personagem principal e as coadjuvantes.
Iza e Terra são os amigos de Nina e estão juntos com ela em qualquer serviço. Eles possuem carisma, cada uma tem uma personalidade distinta e há trechos no livro informando o passado deles. Entretanto, o autor sabe que eles são coadjuvantes e desempenham bem este papel. Não há uma tentativa de criar um arco elaborado para os dois e isso faz com que a personagem principal ganhe mais atenção, gerando mais envolvimento no leitor. Esta escolha deve ser aplaudida e na obra Iza e Terra possuem grande importância para a narrativa.
A maior influência
O texto é de linguagem acessível, com diálogos rápidos e com um olhar cinematográfico para ação. A influência da sétima arte é tão grande que os cortes emulam o cinema. Por alguns momentos, entre um corte e outro, fiquei um pouco confuso e só depois de ler algumas frases consegui me situar. Cortes funcionam bem no audiovisual onde a imagem passa todas as informações necessárias. Na literatura há um fluxo contínuo que cria uma imersão. Cortes ou tentativas de acelerá-lo prejudicaram a minha leitura e sempre acho que devem ser feitos com parcimônia.
Ainda sobre a influência cinematográfica, há dois trechos na obra de uma grande sensibilidade. Em um vemos Nina com o filho e no outro um personagem importante falando sobre o passado dele. São trechos que eu senti que poderiam ser alongados para o envolvimento ser maior com a cena descrita e com os personagens. Entretanto, existem os cortes e foi como se eu tivesse sentido a mão pesada de um editor de cinema. Isto não é uma crítica e sim o olhar de quem viu o potencial de dois momentos cruciais não serem extraídos ao máximo.
Perícia ao criticar
O autor brilha ao criar um grande obstáculo para a felicidade da Nina. Em nossa realidade atual qualquer olhar mais atento nota a manipulação realizada por algumas igrejas. Tocar neste ponto já construiria um bom vilão para o livro. Só que o autor vai além. Na obra Olhos de Pixel é demonstrada a manipulação da igreja em todas as esferas sociais e uma “marketilização” de um dos maiores símbolos das religiões. Lucas Mota toca muito bem nesse ponto e dá até para sentir o cheiro do plástico barato dos produtos religiosos e imaginar os comerciais cínicos e idiotas. Toda esta crítica é feita com maestria e o autor deixa claro que a religião ou igrejas não são ruins. O grande problema são aqueles que se aproveitam da religião e da fé das pessoas para ter cada vez mais poder.
O autor sabe o que faz
Livro com uma protagonista excelente, sabe usar elementos cyberpunk, com ritmo rápido envolvido com boas cenas de ação e linguagem acessível. Uma leitura divertida, com contexto social que provoca reflexão onde os “defeitos” são marcas de um estilo de escrita cada vez mais comum na literatura pop.
Nota
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Ficha Técnica
Título: Olhos de Pixel
Autor: Lucas Mota
Editora: Plutão Livros
Páginas: 216
Ano: 2021
ISBN: 9786586692051
Sinopse: Tudo que Nina Santteles — mercenária, queer, habitante do submundo — quer é resgatar o amor do filho adolescente e conseguir passagens só de ida para a colônia espacial Chang’e. Quando é detida pela polícia, recebe a oportunidade de capturar o hacker alvo da maior corporação-igreja do país em troca das tão desejadas vagas no paraíso.
O problema é que o hacker oferece o mesmo negócio, mas com um adendo: ela não precisará ir contra seus ideais se ajudar a enfrentar a igreja que quer banir a existência de pessoas como ela. Nina vai atravessar explosões e realizar feitos super-humanos para decidir se o preço de se redimir com o filho e dar a ele uma vida melhor vale tanto quanto provar para o mundo que sua existência não é um crime.
Ambientado em uma Curitiba futurística e cyberpunk, Olhos de pixel leva o leitor em uma jornada sobre como podemos reafirmar nosso lugar no mundo e enfrentar nossos próprios preconceitos.