Que tipo de leitor me tornei? Procurava promoções e ficava contente quando uma obra, longe de ser o trabalho de um aspirante, ficava gratuita na Amazon. E já que estou falando desta empresa, deste sinônimo de monopólio, confesso sem muito orgulho que o meu navegador entre redes sociais ficou viciado no site cheio de promoções. Virou um passatempo verificar se um grande calhamaço de Fantasia havia entrado no Kindle Unlimited. Caso encontrasse, seria uma oportunidade de conhecer uma nova história, de estudar personagens, construção de mundo e embarcar em uma nova franquia literária.
Eu não era só um vassalo das produções estrangeiras, sempre aprisionadas em um curral chamado algoritmo e sobre o olhar lupino de algum serviço de streaming querendo encontrar o novo GOT. No Twitter, divulgava ou até mesmo gastava algum tempo para ler uma sinopse de uma obra nacional. Tantos meios de consumir literatura que estava me fazendo esquecer o mais importante. Foi a A Sombra do Vento que me fez enxergar o óbvio. Graças a Zafón me lembrei que livros são criados por pessoas.
Escritor criando um escritor
Na obra, Daniel Sempere é levado pelo pai para o Cemitério dos Livros Esquecidos e encontra A Sombra do Vento, uma obra de Julián Carax (tem podcast sobre a série aqui). Em meio a uma escrita charmosa de quem usa com elegância um tom poético para descrever um amor, e não só uma admiração pela Espanha, conhecemos a história de um escritor. Através de um jovem que ganhou cada centímetro de altura na companhia das páginas voltei a perceber que muitos livros são fruto do amor, de desilusões, de desejo, de medos… de vida.
Não sou inocente, sei que a literatura por muitas vezes são peças encaixadas em um grande processo motivado pelo lucro e conduzido pelo marketing. Porém, o otimismo em mim afirma que sempre existirá os autores que consideram a própria voz um instrumento incapaz de despejar todos os sentimentos gerados através de um relacionamento com a vida. Sim, eles esquecem as tendências de mercado, encontram editores insanos e entregam tudo para o leitor sem retroceder e moderar a escrita.
Todos esses que se confessam para a arte em vez de um padre possuem talento para lidar com as palavras? Perdoem a minha arrogância, mas acredito que não. Fiquei me perguntando se já encontrei algum deles em alguma promoção na internet. Não precisei pensar muito para lembrar do local onde sempre encontrava livros e autores esquecidos.
Cemitério dos Livros Esquecidos
O que são os sebos se não um “cemitério de livros esquecidos”. Volto a falar do ato de comprar e digo com toda a sinceridade que comecei a frequentá-los devido a um ato mesquinho. Eu procurava encontrar um Carax? Um autor esquecido, mas com grande talento? Digo que não.
Entrava naqueles locais onde o excesso de lombadas desgastadas nas prateleiras tampava as paredes e o cheiro do amarelar das páginas provocava um estufar do peito para pagar pouco por algo de grande valor. Considerava-me esperto e tinha a convicção de que compraria um livro importado ou um quadrinho esgotado por uma pechincha. Para o plano ser completo, sempre pensava em comprar livros a esmo para compensar a minha “esperteza”. Imaginava uma sacola cheia e um sorriso abafado por uma das mãos. Esse era o plano e ele sempre se modificava para algo melhor. A procura se transformava em curiosidade a cada folhear cuidadoso de páginas que conviveram com muitos leitores. Olhava obras com capas modestas, publicados por editoras que morreram sem ao menos ter um site próprio e ficava encantado. O protagonista de A Sombra do Vento sentiu o mesmo?
Às vezes, é preciso voltar
Ao terminar de ler a obra de Zafón deixei de ver apenas os livros como números: quanto custa, quantas páginas, quantos já leram e gostaram. Voltei a ver uma vida por trás das palavras. Comecei a ver tanta vida nos livros que até pensei que eles deveriam ser feitos de carne e escritos com sangue. Vi e me lembrei das aventuras pelos sebos no início da minha jornada literária, muito antes de pensar em escrever. Voltei a ser criança, mas não me imaginei como um guerreiro ou mago. Imaginei-me como Daniel Sempere, um leitor.
Leia a obra de Zafón, imagine quantas histórias um autor viveu antes de sentar e misturar o imaginado que flui na vastidão da mente com os sentimentos que escorrem do coração castigado pela realidade. Leia e, se como eu você já foi em um sebo, se imagine como Daniel tocando um livro esquecido e se perguntando o que aconteceu com aquele autor publicado por uma editora morta. Queria ter comprado tantos livros esquecido e agora me pergunto se peguei algo criado da mesma forma como Julian Carax criou A Sombra do Vento.